Foi preciso existir uma pandemia, em pleno século XXI, para forçar os patrões a depositarem mais de confiança nos seus subalternos. A necessidade de saúde pública que nos empurrou a todos para casa, há 15 meses, fez com que quem mande passasse a dar um pouco mais de liberdade a quem tem de obedecer. “Se antes os gestores mediam a produtividade em função das horas de trabalho, com o trabalho remoto passou a ser por objetivos, para que o trabalho remoto seja saudável”, explica Miguel Costa, um dos fundadores da Remote Portugal, plataforma que visa ajudar pessoas e empresas na transição digital para o trabalho feito à distância, fora do escritório, em casa, num espaço de coworking ou num café.
E, se do lado das empresas “confiança” é a palavra-chave, do lado dos funcionários é a “qualidade de vida” que marca o dia-a-dia. “O que se está a viver durante a pandemia está longe do potencial máximo do trabalho remoto”, afirma Miguel Costa, um empreendedor ligado ao Marketing Digital, há quatro meses a morar e a trabalhar numa vila na Bulgária, para onde se mudou atrás do snowboard, pelo custo de vida baixo e pelas poucas restrições face à pandemia. Daqui a um mês rumará para a Grécia por causa das praias, sem nunca parar de trabalhar.
“As pessoas são forçadas a serem trabalhadores ao mesmo tempo que são pais e educadores. Com mais e maiores responsabilidades, um dos principais desafios é encontrarem um equilíbrio entre a vida e o trabalho.” Não ser preciso trabalhar numa urbe nem passar horas no trânsito, faz poupar tempo e dinheiro e ganhar a tão desejada qualidade de vida.
“Antes de 2020 víamos um conjunto de vantagens, reais ou imaginadas, que quando surge a pandemia e com ela o confinamento, leva a que se faça uma reavaliação desses riscos e benefícios”, explica Ricardo Vargas, CEO da Consulting House, empresa de consultoria, formação e coaching na área de desenvolvimento de líderes e gestão da mudança. Como em qualquer processo de mudança há sempre um receio e uma resistência. Muitas vezes é preciso algo externo para pressionar essa nova experimentação. “As principais diferenças prendem-se na análise de custo benefício feita por empregados e empregadores. Surgem benefícios novos para os patrões, como a proteção da saúde das pessoas, a nível individual e coletivo. Qualquer risco que o empregador visse que poderia ter causava preocupações com os níveis de produtividade. A partir do momento em que surge a pandemia percebem rapidamente que não adianta ter as pessoas juntas na empresa ou na fábrica porque se adoecerem o prejuízo será maior”, analisa o psicólogo. Outro fator de resistência prende-se com a formação para ser mais eficiente, com a tecnologia certa, o software certo e as pessoas com as competências ajustadas a essa transição digital. “O confinamento e a crise apanharam muitas empresas em dificuldade financeira e os apoios do governo vieram de forma demasiado lenta”, lembra Ricardo Vargas.
No espaço de um ano, “o que eram benefícios em dúvida já se materializaram como pontos positivos. Mas, ainda não se viram alguns lados menos bons do teletrabalho e ‘longe da vista, longe do coração’. Há ligações emocionais que ficaram mais ténues. Temos menos frequência de contactos, contactos menos pessoais, não há pistas físicas de como lidar com as pessoas e isso está a afetar a sua saúde mental. Estar em teletrabalho em situação de confinamento, sem plenas liberdades, pode ser uma escapatória para o medo e a ansiedade geradas.”
Esta semana, a Remote Portugal apresentou o seu 1.º Relatório Anual do Estado do Trabalho Remoto em Portugal e as conclusões são um bom barómetro para planear o futuro. O inquérito realizado entre janeiro e março de 2021 conseguiu 237 respostas válidas, de profissões de diferentes setores: 28% tecnologias de informação e comunicação, 28% serviços empresariais (banca, seguros, serviços financeiros, comunicação, marketing e publicidade, consultoria e similares), 16% serviços gerais (educação, saúde e serviços farmacêuticos, viagens e turismo), 8% indústria e agricultura e 6% comércio.
“Foi difícil chegar a gestores para que também haja uma participação de cima para baixo, mas, no próximo ano o objetivo é chegar às mil respostas”, salienta Miguel Costa.
Com mais mulheres (69%) do que homens (31%) a responderem, 46% eram do Centro, 23% do Norte e 16% do Sul. Quase a totalidade (93%) frequentou o ensino superior, tendo a maioria entre 30 e 39 anos (43%) e 40-49 anos (27%). Uma larga fatia está efetiva nas empresa (82%) e 17% com contrato de trabalho a termo. Também mais de metade (62%) trabalha há menos de cinco anos na empresa.
Antes da pandemia, 60% indicou que a sua empresa já permitia o trabalho remoto (31% em situações excecionais, 17% num número de dias limitado por semana e 12% sempre que o funcionário quisesse). A Adaptação foi considerada por 71% como bem sucedida por parte da empresa, apesar de 44% nunca ter experienciado este modelo de trabalho antes. No entanto, são apontadas algumas melhorias necessárias para uma transição mais eficaz, como o apoio financeiro para adaptar o espaço em casa (38%), uma melhor orientação sobre as expectativas em relação ao trabalho (22%) e melhores ferramentas para comunicar e colaborar (17%).
A Satisfação atual pode ser determinante para o futuro: 85% dizem estar satisfeitos com a situação, incluindo a quantidade de tempo que trabalha remotamente (43%) e que gostaria de trabalhar neste regime com mais frequência (42%). Cerca de metade das respostas (49%) indica que o trabalho remoto ocupa, em média, as oito horas diárias de trabalho, enquanto 35% indica ocupar mais do que as oito horas por dia, sendo o período da manhã o mais cobiçado para um melhor desempenho (61%).
Entre os fatores que permitem o bom funcionamento do trabalho à distância, destacam-se a velocidade da Internet (20%), o espaço dedicado ao trabalho em casa (20%), o trabalho por objetivos (18%), uma boa cadeira de escritório (16%), a desmaterialização de documentos (13%) e o silêncio (11%).
E como aproveitam as horas extra por não terem de se deslocar para o escritório? 19% com tarefas domésticas, 16% a dormir mais, 15% em projetos pessoais, 14% com mais tempo em família e com amigos, 13% a praticar exercício físico, 13% em atividades de lazer e 10% continua a trabalhar.
Entre os cinco principais benefícios de trabalhar remotamente as pessoas valorizam não precisar de fazer deslocações (17%), flexibilidade para trabalhar em qualquer lugar (13%), possibilidade de trabalhar a partir de casa (12%), equilíbrio entre vida pessoal e profissional (12%), poder ter um horário flexível (10%).
Quanto às tão faladas reuniões por videochamada, 73% respondeu existir uma maior frequência de reuniões por videochamadas; 42% considera que as reuniões não são produtivas. Cerca de 20% das reuniões realizam-se fora do horário de expediente e 26% das pessoas diz haver um maior número de contactos por parte dos superiores para saber o estado de tarefas. O Microsoft Teams foi o mais usado nas videochamadas (32%) e na gestão de projetos (34%) e o WhatsApp na comunicação escrita (38%).
É sabido que desde a primavera do ano passado houve um aumento das despesas de casa (52%), nos artigos para adaptar o espaço em casa (25%) e na alimentação (23%). O lado positivo é a redução nas despesas com deslocações (44%) e vestuário (37%). Cerca de 22% precisaram adquirir equipamento como uma cadeira adequada (25%), phones (25%) e mesa de trabalho (17%). Mais de metade (52%) pagou os equipamentos na totalidade, mas 43% gostaria que tivesse sido a empresa a comparticipar as despesas na totalidade.
No Futuro, quase metade (49%) gostaria de manter um regime misto, com a ida ao escritório e dois a três dias por semana em casa; 39% gostaria de ter total flexibilidade para escolher o regime de trabalho pretendido; 11% prefere trabalho remoto a tempo inteiro e menos de 1% quer voltar para o escritório “das 9 às 5”.
Na hora de planear os próximos anos de vida, 64% consideraria mudar-se para uma zona diferente do País se tal permitisse trabalhar apenas em modo remoto; 65% pensaria em mudar de emprego se lhe oferecessem as mesmas condições atuais com a possibilidade de trabalhar 100% remotamente; 39% equacionaria aceitar um emprego 100% remoto, mesmo reduzindo o seu rendimento atual. Aliás, Miguel Costa não tem dúvidas que nas atuais entrevistas de recrutamento as condições do trabalho remoto já são discutidas e fazem parte das propostas e das negociações. “Quem tiver duas ofertas de trabalho, prefere receber menos se tiver mais liberdade.”
Para Ricardo Vargas, CEO da Consulting House, mesmo antes de 2020, antecipar uma tendência para o panorama do trabalho já passava por um modelo híbrido, em que “o teletrabalho resolve alguns dos problemas, como um maior equilíbrio entre a vida profissional e a vida familiar, ou o foco total num tema que as distrações de um open space às vezes não permitem, mas o trabalho presencial resolve outras, como o envolvimento emocional e algum tipo de produtividade.”
Também o Barómetro da Vida Digital dos Portugueses, realizado pela seguradora francesa Celside Insurance concluiu que 81% dos portugueses gostaria de continuar em teletrabalho após a pandemia, e destes, 33% gostaria de o fazer todos os dias, 25% só metade da semana e 16% apenas um ou dois dias por semana.
Foram feitas 800 entrevistas online, entre 12 e 17 de fevereiro de 2021, a pessoas com 18 e mais anos, residentes em Portugal. Três em cada quatro portugueses prefere o teletrabalho, mas para 19% este novo regime está a ser uma má experiência: 69% são mulheres e 53% tem filhos.
No que à produtividade diz respeito, 61% dos que estão em teletrabalho consideram que rendem mais do que antes de março de 2020. São principalmente as mulheres que dizem render mais em teletrabalho (68%), sendo também as que consideram que a empresa lhes exige mais neste regime (31% face a 15% dos homens).
Conselhos simples e práticos, como separar os lugares de trabalho dos lugares de tarefas domésticas ou de lazer, ter mobiliário ergonómico favorecendo uma boa postura ou desativar notificações e colocar o telemóvel em silêncio para conseguir uma maior concentração no horário de expediente, nunca são demais relembrar. Porque o teletrabalho veio para ficar.