“Se eu soubesse que não ia voltar a vê-la tinha-lhe dado um beijo e um abraço.” Este é o único arrependimento que Márcia Silva, 33 anos, tem hoje, duas semanas após a morte da avó. Quando a deixou no centro de saúde da Povoação, de onde a levaram para o Hospital do Divino Espírito Santo, em Ponta Delgada, São Miguel, estava convencida de que seria apenas mais uma estada para estabilizar e o omnipresente coronavírus obrigava a restringir os afetos.
Germana Silva sofreu muito a vida toda. Teve um marido que não a merecia, morreram-lhe dois dos dez filhos, que criou com esforço, padeceu de várias maleitas. Uma vida dura da qual não se queixava, mas que era visível no preto com que se vestia desde que enviuvou. No guarda-roupa, a exceção era o vestido cor de vinho, que já escolhera para a última viagem.
No dia seguinte, no entanto, o hospital avisava que Dona Germana, 73 anos, estava com uma septicemia, e Márcia, formadora na área da higiene e segurança no trabalho, percebeu que desta vez seria diferente. Quarta-feira, 1 de abril, o telefonema da Medicina 1, a confirmar que o fim estava próximo. E a angústia a crescer. Márcia e a família vivem na Povoação, o primeiro concelho micaelense a ficar isolado, num cerco sanitário. A pergunta imediata de Márcia, que até aos 32 anos viveu com a avó, a quem via como mãe, foi “podemos despedir-nos dela?” O hospital contactou a autoridade de saúde, a autoridade de saúde deu instruções à PSP e ainda antes do meio dia, menos de uma hora depois, estava a autorização concedida. “É daquelas exceções que está prevista, mediante autorização do Diretor Regional de Saúde”, admite à VISÃO o médico Magno Silva, que exerce as funções de autoridade de saúde na ilha há quatro anos. “O mais complicado foi estipular um limite de pessoas, respeitando a vontade da família sem comprometer a segurança”, confessa.
Coube a Márcia o papel de mediadora e apesar de ser uma escolha natural, pela proximidade à avó e ao papel que sempre teve no acompanhamento da sua saúde, deu o lugar à mãe, que tinha assuntos por resolver, perdões para acertar. “Se a minha mãe não tivesse ido, ficaria o resto da vida com aquilo na cabeça”, justifica. A conta certa ficou nos três: as três filhas, que passaram pela polícia tendo como salvo conduto a SMS enviada por Magno Silva, com os nomes e número de cartão de cidadão de cada uma. Márcia ficou em casa, à espera da videochamada para se despedir e agradecer tudo o que a avó fizera por ela. Dona Germana, já moribunda, ia reagindo com os olhos, sobretudo quando ouvia a palavra “mãe.” Umas horas depois, no dia seguinte de madrugada, lá partiu.
Não pôde ter a última homenagem que a família queria dadas as limitações impostas pela pandemia: Seis pessoas na cerimónia, caixão fechado. ”Uma mulher como ela merecia outro tipo de despedida”, lamenta a neta-filha. “Mas teve de ser”, resigna-se.
Felizmente, um dos filhos de Germana vive no concelho de Ponta Delgada e conseguiu ir com a mulher vestir o vestido cor de vinho que a mãe deixara escolhido. “Não a vimos no caixão, mas pelo menos temos a certeza de que ela foi vestida como quis.”