André, Filipe e Filipa estão sentados numa mesa a comer arroz com atum. Foi Filipe quem cozinhou. É janeiro, está um frio de rachar em casa. Mas só a palavra chega para os fazer sorrir: casa. Um T2 em Algés, com um quintal. Filipe e Filipa têm o seu quarto, agora equipado com móveis para casal que lhes foram oferecidos. André tem também o seu quarto.
O frigorífico foi comprado numa loja em segunda mão; o fogão já lá estava; falta-lhes um esquentador para poderem tomar banho de água quente. Um tacho veio daqui, outro dali; ajeita-se uma roupa de cama, arranjam-se umas toalhas. Os “miúdos” estão a embelezar o lar que lhes foi cedido por Joaquim Lico, presidente da imobiliária Vogue Homes. “Sensibilizou-me a reportagem [publicada na VISÃO 1397, de 12 de dezembro de 2019 – leia aqui a reportagem completa], o que me levou a pensar que o que, por vezes, é pouco para uns (financeiramente falando), enquanto para outros é só o suficiente para alterar o curso de uma vida. E nessa perspetiva senti-me moralmente obrigado a ajudar estes jovens”, explica.
Sempre discreto e sem querer ser fotografado, Joaquim não deixou os jovens à mercê dos temporais que se levantaram uns dias antes do Natal. Nessa altura, André, 22 anos, vivia numa tenda debaixo de um viaduto junto a Santa Apolónia. Já Filipe, 25 anos, e Filipa, 24, moravam na rua no bairro de Telheiras, também numa tenda que montavam e desmontavam todos os dias. O empresário pagou-lhes quarto num hostel de Lisboa e estava disposto a suportar, depois, as despesas de um quarto alugado, mas deu de caras com preconceitos vários em relação aos sem-abrigo. Resolveu, então, disponibilizar-lhes um ativo da própria imobiliária, o T2 em Algés, num prédio devoluto. “Com tantos edifícios e infraestruturas abandonadas que tem espalhados pelas cidades, o Estado podia criar um dinamismo, em conjunto com a sociedade civil, e apelar assim um pouco mais à participação de todos, mas existe uma grande ineficiência aliada ao eterno problema que, apesar da promessa, o concretizar normalmente fica para depois”, continua o presidente da Vogue Homes, que diz sentir “uma grande satisfação e bem-estar interior” ao saber que mudou a vida de alguém para melhor.
André arranja os dentes
Depois da publicação da reportagem na VISÃO, vários leitores escreveram-nos com vontade de ajudar. Um deles foi Ângela Marques, médica dentista a exercer numa clínica no Centro de Lisboa, que se sensibilizou com o relato de André. Um acidente de bicicleta, quando tinha 13 anos, estragou-lhe dois dentes da frente. “Na altura, os meus pais não quiseram saber, deixaram andar. Anos mais tarde, fui tratado num hospital, mas ‘à carniceiro’. Por exemplo: o dentista queimou-me o lábio! Nunca acabei o tratamento e julgo que é pela falta dos dentes que não consigo encontrar trabalho a fazer o que mais gosto, que é empregado de restauração”, conta o jovem.
Ângela Marques está a tratar-lhe a boca toda pro bono, pagando-lhe também os medicamentos de que necessita em cada fase do tratamento. É um processo moroso e, antes de se fazerem os tão desejados dentes, é preciso tratar cáries e extrair raízes já com quistos e em risco de infeção. André não esconde o “trauma” da cadeira do dentista, mas aguenta enquanto sonha com a luz ao fundo do túnel: um emprego num café ou num restaurante para poder pagar as contas. Enquanto isso, não espera e entra em cada estabelecimento que encontra perguntando se não é preciso alguém. “Ficam com o meu número de telefone e dizem-me que depois ligam. Mas até agora nada”, conta o rapaz.
André foi criado por irmãos enquanto os pais estiveram presos. andou de mão em mão, sentiu-se rejeitado
Quando o conhecemos, André tinha chegado à rua nem fazia ainda um mês. Foi criado por irmãos, enquanto os pais estiveram presos. Andou de mão em mão, sentiu-se rejeitado em criança e negligenciado na adolescência. Tornou-se sem-abrigo para fugir ao que tinha em casa, ele, que deixou a escola sem o 9º ano e trabalhava no café dos pais, em Guimarães. Mas sentia-se “o escravo da família”. E, um dia, acordou, pegou numa mochila, meteu lá cobertores e alguma comida, e apanhou o intercidades para Lisboa. Tinha conhecido a capital com 9 anos, numa visita ao Oceanário.
Entramos com ele no cabeleireiro masculino Top, em Algés. Os meses que passou na rua já se notam no cabelo desgrenhado e na barba por aparar. O barbeiro Rony Araújo, brasileiro a viver em Portugal há 15 anos, oferece-lhe de imediato os seus préstimos ao saber da sua história. Não cobra nada pelo corte. “Há pessoas boas”, sorri André. “E outras nada compreensivas. Às vezes, ando a pedir e mandam-me ir trabalhar. Isso queria eu, um trabalho!”, lamenta. Mas não perde a esperança. Um dia, promete, vai bastar-se a si próprio e retribuir o bem que já recebeu.
O sustento de Filipe
Filipe e Filipa passaram a consoada no Hotel Solplay, em Linda-a-Velha, numa iniciativa da Associação Conversa Amiga, a mesma que disponibiliza os cacifos solidários para os sem-abrigo. Aí, além do jantar, foi-lhes oferecido um vale de compras do Pingo Doce, no valor de 50 euros. Filipa aproveitou para comprar presentes para os filhos, de 3 e 4 anos, que vivem com o pai.
Filipa passou a infância a viver ora em casa da mãe, ora em casa do pai. Engravidou nova, com 19 anos, e tentou construir uma família com o companheiro. Mas a relação não resultou. Quando dormiu pela primeira vez na rua, há uns anos, com Filipe, estava grávida do seu segundo filho. Conta-nos que não teve o apoio da família quando decidiu separar-se do ex-companheiro. “Eles não aceitaram a minha relação com o Filipe, e em casa da minha mãe o ambiente com o meu padrasto não era o melhor”, explica. Sem alternativas para viver com os filhos debaixo de um teto, deixou-os com o pai das crianças. “Abdiquei delas porque não tenho estabilidade e, para assegurar o seu bem-estar, entreguei-as ao pai. Foi um ato de amor. Custa-me muito”, garante.
Filipe tem trabalhado na entrega de publicidade. Em meses melhores, chega a tirar mais de 400 euros
Já Filipe foi para a rua com 14 anos, atrás de um irmão sem-abrigo que ocupava uma casa abandonada. Tinha sido retirado aos pais, várias vezes, e metido em colégios, de onde fugia constantemente para voltar à casa dos progenitores. “Em casa, não me dava muito bem com o meu pai. Houve maus-tratos, sim, e ele esteve preso. Mas a razão pela qual me tiraram dos meus pais foi porque eu deixei a escola. Não era para mim. Contas feitas, estudei até ao quarto ano”, descreve.
Agora tem trabalhado na entrega de publicidade. Em meses melhores, chega a tirar mais de 400 euros. Além disso, com uma bicicleta e um smartphone que lhe foram oferecidos depois da reportagem da VISÃO, consegue fazer entregas de comida ao domicílio, trabalhando para uma conhecida plataforma. É ele quem mais contribui para o sustento da casa, uma vez que Filipa continua à procura de emprego. Até já lhe tinham oferecido um, como copeira numa junta de freguesia, mas uma dívida de cento e poucos euros que tem às Finanças impede que trabalhe para o Estado. Ironicamente, como a dívida é pequena, as Finanças não permitem que esta seja paga em prestações. E a vida continua…