Há três décadas, Lau Zanchi trocou o Brasil por Portugal. Naturalmente, não perdeu a ligação a São Paulo, a sua cidade de origem. Visita com frequência o país e, em particular, a Amazónia.
Fundou, há meia dúzia de anos, a associação Sentir a Amazónia em Portugal, que promove a partilha de conhecimento sobre a floresta brasileira e sobre os caminhos para uma relação sustentável entre o ser humano e a natureza. Doutoranda em Ecologia Humana, na Universidade Nova de Lisboa, considera a intervenção cívica a sua forma de contribuir para um planeta mais sustentável. Uma missão que abraça também em nome dos três filhos.
A floresta Amazónia tem 5,5 milhões de quilómetros quadrados (é a maior floresta do mundo) e ocupa cerca de 60% do território brasileiro (mas estende-se por outros oito países). Em agosto, arderam mais de 24 mil quilómetros quadrados – foi o pior mês em termos de área ardida desde 2010.
Lau Zanchi defende a necessidade de exigir que os incendiários da Amazónia sejam encontrados e responsabilizados. Alerta para o risco de vida que enfrentam os indígenas, mas consegue ser surpreendentemente otimista em relação ao futuro.
A jovem ambientalista Greta Thunberg, o discurso neocolonialista sobre a floresta ou a diminuição do consumo de carne foram outros dos temas de uma conversa em que a ambientalista se confrontou com o facto de a maioria da comunidade brasileira residente em Portugal ter votado no presidente Jair Bolsonaro – que chegou a acusar as ONG de serem responsáveis pelos incêndios na Amazónia. Portugal, acredita, poderá ser um parceiro sustentável privilegiado do Brasil.
No último ano, a Amazónia perdeu quase 6 mil quilómetros quadrados de área florestal, uma subida de quase 40% do ritmo de desflorestação. Ainda vamos a tempo de recuperar o que já foi destruído?
De acordo com os cientistas, ainda não chegámos a um ponto de não retorno, mas temo que algumas áreas já estejam perdidas. Quando sobrevoamos a Amazónia, vemos clareiras enormes, e aí será muito complicado recuperar o que já foi perdido… Talvez a tecnologia possa ajudar a contrariar o problema. Espero ou acredito – não sei bem qual dos verbos usar – que ainda vamos a tempo.
Acredita que os responsáveis pelos incêndios na Amazónia serão encontrados?
Os responsáveis estarão a ser apurados. Agora, se a acusação irá avançar ou não, não sabemos. Neste momento, os jornalistas são muito importantes para “cobrarem” e trazerem a público o que estiver a ser realmente apurado. Todos nós temos de pressionar para que seja feita essa busca. A floresta é húmida, ela tem de ser deliberadamente queimada, tem de haver ação humana.
Que relatos lhe chegam do Brasil?
O Brasil está muito polarizado, a situação política está extremada… A questão do estado laico ou não laico já está interferindo na agenda moral e não só… Os brasileiros sempre foram muito otimistas, é uma característica do povo, mas não sinto que estejam tão positivos como antes.
O Brasil já não é um Estado laico?
Em princípio, é. Agora, o presidente está minando um pouco isso. É preocupante. O Brasil é muito espiritualizado, existem muitas religiões, mas essa questão dentro do Estado precisa de ser avaliada. A religião não pode afetar as decisões políticas. Hoje os evangélicos são um terço dos brasileiros, de acordo com o Censos, é muita gente. Essa questão tem um certo peso no país.
Há muita pressão sobre as ONG que atuam na Amazónia?
Sim, a repercussão dos incêndios foi enorme. Por outro lado, aconteceram no início do novo ciclo político, que se iniciou em janeiro [com a entrada em funções do presidente Jair Bolsonaro], e funcionaram como um despertar. Foi um momento importante porque muita coisa que estava em andamento foi travada.
Considera, então, que os incêndios podem ter sido um alerta importante?
Exatamente. Foram uma tragédia, claro, mas o momento em que aconteceram foi interessante. Provocaram um momento de reflexão. Se fosse mais para à frente, várias políticas públicas poderiam estar já em curso e seriam mais difíceis de reverter. Agora, ainda é possível discutir.
Consegue ter um discurso otimista…
É a minha veia brasileira [risos]. A Amazónia trouxe para a discussão a relação entre o homem e a natureza. Fico muito feliz com isso. Vamos cuidar do homem para o homem cuidar da terra.
Os 20 milhões de pessoas que vivem na Amazónia são os seus principais guardiões? Porquê?
Os indígenas usam o que é necessário, caçam agora o que vão comer logo. Mas também estão a aprender a ser guardiões. Na primeira vez que eu fui à Amazónia, eles jogavam sujeira no rio, hoje em dia já é diferente. Antes parecia-lhes que tudo era infinito e hoje sabem que não é. Estamos todos a aprender juntos. A educação é a chave. A educação dos jovens e dos adultos, eu não ponho a pressão toda sobre os mais novos, a juventude trouxe uma energia fantástica, mas todos nós temos muito para fazer.
Como funcionam as “máfias da floresta tropical”, como lhes chama a organização Human Rights Watch? Há um clima de impunidade?
Eu já ouvi relatos… Depende do Estado, há Estados piores do que outros… A máfia do garimpo ilegal, isso é terrível… Há pouco controlo – diminuíram os funcionários do IBAMA [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis] – isso traz uma sensação de impunidade. Não podemos dizer que essa sensação não exista.
O Ministério Público brasileiro já pediu ação urgente para evitar ataques a terras de indígenas. Quais são as ameaças que os indígenas enfrentam?
Um líder indígena foi assassinado há pouco tempo… Correm um grande risco de vida. O Mato Grosso é um dos piores locais, e há um documentário que mostra os fazendeiros a chegarem e a atirarem contra os indígenas. Quando falamos em indígenas pensa-se em pessoas que vivem no meio da floresta, mas muita gente com identidade indígena vive na cidade, onde enfrenta muito racismo. O terceiro setor é muito forte no Brasil, há muitas ONG, se não fosse isso seria ainda mais complicado.
Nos últimos 15 anos, morreram mais pessoas a defenderem o ambiente do que militares britânicos e australianos em conflitos militares. A defesa do ambiente será, cada vez mais, uma luta de vida ou de morte?
O Brasil é o campeão dessas mortes. Talvez nas áreas mais remotas, como as florestas, seja mais perigoso. A floresta da Amazónia é uma floresta bandeira, faz parte do imaginário coletivo, já sabemos que não é o pulmão do mundo, mas é o refrigerador do mundo. Para mim, é o coração do mundo, a relação com o ambiente está pulsando ali. Por isso, sou otimista e acredito que esse perigo tenha tendência para diminuir porque agora há muita gente olhando.
Bolsonaro demitiu o diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, responsável por medir a desflorestação da Amazónia. Em breve, a comunidade internacional poderá deixar de saber qual é a situação real na Amazónia?
Hoje existe o Google Maps que nos permite ver tudo. Há outros mecanismos técnicos que estão fora do Brasil capazes de monitorizarem tudo. Acho muito difícil que isso venha a acontecer. Não adianta tentar esconder, não há nada que cubra a floresta inteira.
Por cada quilograma de carne produzida na Amazónia são destruídos 214 metros quadrados de floresta. A solução é deslocalizar a produção? Ou faz sentido limitar o consumo de carne?
Essa discussão está a acontecer inclusivamente em Portugal, a propósito do refeitório da Universidade de Coimbra [que eliminou a carne de vaca da ementa]. O melhor caminho é o consumo sustentável. Vamos consumir carne, sim, mas carne sustentável. Só comer soja ou abacate também tem custos ecológicos. Nós estamos num momento de analisar tudo, todos os paradigmas estão a ser quebrados. Agora, nada pode ser imposto, algumas coisas sim, mas a nível de ambiente é preciso procurar o bom senso.
A comunidade internacional tem um discurso neocolonialista em relação à Amazónia?
Em alguns momentos, acho que sim. A abordagem em relação à Amazónia precisa de ser outra. Tem de ser elaborado um plano internacional mais diplomático. Em alguns momentos, acredito que talvez no inconsciente esteja o pensamento “vamos lá que vocês não sabem como se faz”. Era preciso uma abordagem técnica e diplomática que perguntasse “como podemos ajudar?”. Não é o momento para interferir na soberania, sobretudo com o governo atual, a opção deverá ser sempre pela via do diálogo. E acredito que Portugal poderia ter um papel importante.
Qual poderia ser esse papel?
Seria interessante que Portugal fosse um parceiro ao nível do suporte técnico. Há muitos brasileiros a estudarem aqui e muita difusão de ideias. Falamos a mesma língua histórica com Portugal. Com o acordo entre o Mercosul e a União Europeia, que correu riscos por causa dos incêndios, Portugal poderia ser a porta de entrada do Brasil na Europa. Poderia facilitar, por exemplo, a entrada de produtos sustentáveis. Chegou a ser pedido, no clamor dos incêndios, o boicote dos produtos brasileiros, seria uma tragédia social e económica. Faz mais sentido uma agenda positiva, como facilitar a entrada de produtos sustentáveis.
A maior comunidade estrangeira a residir em Portugal é a brasileira. Consegue identificar os motivos deste movimento transatlântico?
Eu já estou aqui há muitos anos, esse movimento é mais recente. A segurança é sempre um dos principais motivos, sobretudo para as pessoas com maior poder aquisitivo, que vieram também para investir. A polarização política será outro dos motivos. A língua é a mesma, Portugal fez muita publicidade no Brasil, convidando as pessoas a virem, e algumas pessoas vieram muito desinformadas, com umas expetativas muito elevadas, mas a maior parte está muito feliz.
Que expetativas eram essas que não foram correspondidas?
Quem não tem tanto poder aquisitivo talvez esperasse mais ao nível do mercado de trabalho. Depois, também há o problema que todos nós que cá vivemos estamos a atravessar que é o da especulação imobiliária, provocada pelo boom turístico. Mas as pessoas com quem eu converso estão todas felizes, dizem que a qualidade de vida e o custo de vida em Portugal são maravilhosos.
Surpreende-a que a maioria dos brasileiros a residir em Portugal tenha votado Bolsonaro?
Isso é certo? Você está-me dando um facto novo. Na verdade, não me surpreende. Foi feita alguma pesquisa sobre o poder aquisitivo dos votantes? Acho que esse é um elemento que deveria ser avaliado. Quem tem mais poder aquisitivo tem mais preocupações com a segurança e terá mais tendência para votar no atual presidente. O empresariado votou muito nele, sabemos disso.
Como avalia a reação do governo português à calamidade na Amazónia? Portugal tem investido o suficiente no combate às alterações climáticas?
Os jovens têm dado um exemplo fantástico, mas eu não acho que se deva colocar o peso nos ombros dos jovens. Mesmo na campanha eleitoral, nota-se que os cidadãos vão exigir que Portugal faça cada vez mais. A questão das energias é a base de tudo. Há que substituir o sistema dos combustíveis fósseis. O momento é agora. Temos de mudar os paradigmas. Portugal também está despertando para isso.
Como podemos envolver o cidadão comum na defesa do ambiente?
Há uma expressão no Brasil que aqui não tem que diz “temos de sair de cima do muro”, significa que chega o momento em que temos de escolher para que lado caímos, há situações em que ficamos no meio, mas as alterações climáticas já não permitem mais isso. Mas vamos falar de alterações climáticas com as pessoas que ganham pouco e saem do trabalho exaustas usando o modelo eco chato? Todos nós temos de encontrar na nossa agenda pessoal formas de abordar o problema. Não é preciso ser ativista, podemos simplesmente consumir produtos sustentáveis e já estaremos a contribuir. É a educação que faz a diferença, sempre. E também há medidas que têm mesmo de ser do Estado e doer no bolso. É um momento em que todos temos de sair de cima do muro.
O crescimento económico deveria estar indexado a indicadores de sustentabilidade?
Totalmente. É a economia que move o mundo, não há como fugirmos disso. Hoje, é preciso dar um preço ao capital natural. O líder da Amazon [Jeff Bezos] diz que vai reduzir a pegada ecológica das encomendas enviadas, ou seja, será pela economia que se fará a diferença. Há quanto tempo se fala de moda sustentável? O consumidor já está atento e estará cada vez mais. Nós estamos a viver uma revolução. Os meus netos vão viver num outro mundo. Houve a revolução industrial e, agora, haverá a revolução ambiental. O modo de vida dos indígenas era coisa de hippie, hoje, é cada vez mais certo que é esse o caminho para a nossa relação com a natureza.
A natureza passará a ser um sujeito com personalidade jurídica?
Esse é um passo necessário. A Colômbia já tem na sua Constituição que a natureza é um sujeito dotado de Direito, isso possibilita a entrada de ações judiciais em sua defesa. Se as empresas estão capacitadas para exercer o seu direito, porque não a natureza? Nós, as pessoas, temos a possibilidade de interagir com um corpo de lei e está a trabalhar-se para que isso venha a ser igual para a natureza. Assim, será possível mover ações para a proteger.
Quem poderá mover essas ações?
Esse é um mecanismo que tem de ser decidido junto dos governos e das Nações Unidas, no âmbito do Direito Internacional. Mas a natureza tem de ser beneficiada como uma entidade merecedora de um corpo legal.
O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, tem sido firme o suficiente nos alertas sobre a crise climática?
Eu gosto muito dele, mas acho que ele está com uma bomba nas mãos. Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável [estabelecidos pelas Nações Unidas] são uma coisa maravilhosa. Acho que Guterres acordou para a urgência e tem feito um bom trabalho, mas é sempre possível fazer melhor.
Como vê o mediatismo em torno da jovem ativista Greta Thunberg? Pode dar frutos?
Eu queria saber dos pais dela… Eu sou mãe e gostava de saber como eles estão a aguentar tudo isso. O trabalho dela é fenomenal, não é fácil ter a coragem dela. Nós estamos sempre em busca de um salvador, é essa a questão das religiões… Mas o mediatismo também pode atrapalhar. No top de notícias lê-se “por que razão odeiam Greta”, acho isso terrível. O problema é quem vai rodeá-la, ela é só uma miúda de tranças, estão com ela os pais e mais quem? Mas acho que ela faz um trabalho de alerta muito interessante.
As greves climáticas são uma forma interessante de luta?
A greve é um direito conquistado e é uma forma eficaz de chamar a atenção para o planeta. É um alerta necessário. A [jornalista] Naomi Klein considera que as ações individuais não fazem a diferença, mas eu acho que são as ações individuais que fazem o coletivo. E cada um, dentro das suas possibilidades, deve contribuir. Às vezes, as pessoas não têm consciência do que podem fazer. Nós, que temos mais informação, temos a obrigação de dar o exemplo porque há pessoas que não têm mesmo noção do que se passa.
Quais são os principais critérios que devem nortear as nossas escolhas no sentido de sermos mais sustentáveis?
Procurar informação é a chave. Eu fico abismada com os mitos que circulam no imaginário coletivo. Quais são as consequências para o ambiente de comer carne, soja ou abacate? Temos de nos informar. É um momento de revolução climática trabalhosa. Exige uma busca constante de conhecimento. Dá trabalho, mas não há outra solução. Afinal, informação é poder.