Quando pôs na cabeça que queria participar numa competição de fitness, Sofia percebeu que os treinos intensos de musculação, as refeições cuidadas e um sem-fim de suplementos dificilmente seriam suficientes para chegar ao pódio. Aconselhada por um amigo (que viria a ser seu treinador), iniciou um ciclo de esteroides anabolizantes, que incluíam Deca-Durabolin (nandrolona) e Stanozolol.
Passado pouco tempo, a assistente de marketing via os resultados: os músculos mais preguiçosos começavam a desenvolver-se, as gorduras iam desaparecendo, os glúteos já prometiam fazer capas de revista. Mas também começava a sentir outros efeitos: a voz engrossara, a menstruação deixara de aparecer, os pelos não paravam de se multiplicar. Preocupada com os efeitos secundários, Sofia – que pediu para usarmos nesta reportagem o seu segundo nome, por vergonha de assumir que consumiu esteroides – desistiu das competições. “No dia em que comecei a investigar e vi imagens de mulheres que tinham ficado sem cabelo e com um micropénis pensei: ‘não quero isto’. Pouca gente compreendeu porque queria parar, acharam que exagerava, que estava a dar desculpas. Hoje treino todos os dias, sem obsessões. Nunca mais vou conseguir aquela forma, mas também não vou virar um extraterrestre.” Ao fim de 12 anos de treinos, que tinham começado em adolescente, Miguel continuava a olhar para os colegas no ginásio e a não compreender por que razão não conseguia atingir aquele patamar. Até ao dia em que tocou pela primeira vez numa seringa. “Começas a ver que todos os teus companheiros do ginásio estão maiores, mais secos e mais fortes. Não interessa o que comes ou treinas, eles vão estar sempre uns passos à frente. Queria ser como eles, com formas fantásticas. Um amigo arranjou-me alguns produtos, mas não eram de confiança e não tomei. Só mais tarde, já com contactos de confiança, usei algumas drogas.”
Fê-lo durante cerca de dois anos, em ciclos de oito a dez semanas, alternados com alguns “orais de vez em quando”. “O problema é que aquilo é mesmo bom. Ao contrário dos suplementos, que por mais marketing que tenham não passam de comida. Ao fim de uma semana estava a ver resultados.” Ganhou “acne nas costas e nos ombros”, ao mesmo tempo que foi tentando controlar outros efeitos secundários mais graves. “Não tive muitos porque controlei sempre bem os níveis de estrogénio. Mas isso custa dinheiro. E, a dada altura, uma pessoa anda dependente dos esteroides e das suas semividas e das substâncias que inibem os seus efeitos secundários.”
Um atleta com grandes preocupações com a sua forma física e performance desportiva gasta facilmente, segundo Miguel, “de 300 a 600 euros por mês” entre um esteroide base (testosterona), um esteroide acessório, um oral, insulina e GH. Esta última, conhecida por hormona de crescimento, é das substâncias mais caras: custa entre 200 e 400 euros, dependendo se é comprada nas farmácias ou no mercado negro.
Há dois anos, Miguel decidiu parar de consumir. “Tenho a minha boa forma através de treino e alimentação. Além disso, morro de medo de perder o cabelo. Já não tenho muito”, ironiza. “É claro que o volume vai à vida, por mais que continues a treinar. Mas o fitness é um mundo podre. Conheço, experimentei, não me enquadro ali. Por isso nunca competi, nem me senti bem a viver à base de um cocktail de super-homem. Por mais que goste de treinar e de estar em forma, e até dos efeitos que a droga me proporciona, não compensa nem os riscos, nem a recuperação, nem o desequilíbrio, nem a dependência que cria na tua vida.”
Quando se entra no universo da alta competição, mais difícil do que encontrar alguém que nunca tenha tomado esteroides é encontrar quem esteja disposto a assumi-lo. Um dos elementos da seleção nacional de culturismo admitiu à VISÃO haver “muita, muita gente, a consumir”, mas não quis adiantar mais: “É um assunto muito sério. No nosso caso existe controlo antidoping, o consumo é punido pela federação.”
Rodrigo, que também participa em concursos da modalidade, torna-se uma exceção ao aceitar falar. Começou a treinar aos 17 anos, aos 21 decidiu que queria participar numa competição de culturismo e ouviu logo que, se queria vencer, devia tomar esteroides. Se alguém tem culpa disso, diz, são os adeptos, que não querem atletas medíocres: “Querem sempre mais e melhor. Uma coisa acaba por ser consequência da outra.”
Atualmente, três anos depois de ter começado, Rodrigo gasta cerca de 200 euros por mês em esteroides e outras substâncias dopantes, despesa que vê como mais uma do dia a dia, “como se fumasse ou tomasse o pequeno-almoço fora todos os dias”. Quando começou, comprava a alguém que tinha acesso. “Hoje basta ir à internet e vê-se de tudo. Já não é só coisa de culturistas. Passou a ser algo normal para qualquer pessoa ou desportista que queira aumentar a sua performance.” Para já, e apesar de se dizer consciente dos riscos, não tenciona parar. Afinal nem tudo é mau, diz: “Tem os seus efeitos positivos. Dá-nos uma sensação de super-homem.”
Ainda são escassos os estudos com amostras significativas que mostrem quantas pessoas em Portugal consomem esteroides anabolizantes – substâncias que permitem aumentar os músculos, reduzir a percentagem de gordura corporal, aumentar a força ou reduzir o tempo de recuperação muscular. Mas quem anda no meio e tem os olhos bem abertos nos ginásios e nas praias não tem dúvidas de que o seu consumo disparou nos últimos anos.
“Em termos de desportos profissionais, há doping no futebol, no ciclismo, no atletismo, no andebol. Desde há uns três ou quatro anos, o uso de EAA’s (esteroides anabolizantes) aumentou muito”, diz Miguel, com base em mais de uma dezena de anos em ginásios “do ferro” e de muitas amizades no meio desportivo. “Hoje toda a gente quer ser estrelinha do fitness e estar preparado para a praia, há muitos a usarem substâncias do mercado negro. Nas competições de culturismo abriram novas classes que levaram pessoas com menos desenvolvimento físico a poder competir. Algumas pessoas que trabalham na televisão e no cinema também os usam para as suas transformações, inspirados pelas capas de revistas. Conheço várias.”
O acesso é hoje mais fácil do que nunca. “A história passa normalmente por alguém querer saber por que razão não tem os mesmos resultados que o amigo A ou B, e a informação passa de boca em boca. A internet está cheia de informação e de vendedores mais ou menos escrupulosos.” E os esteroides, como a história que abre esta reportagem comprova, já não são só coisa de homens. Miguel vê cada vez mais mulheres a consumi-los: “Basta ver as competições de Bikini Fitness [uma variante do culturismo]. Ter músculos e ser seco não é fácil, muito menos para as mulheres, que têm menos capacidade de perder gordura. Quem não usa algum tipo de droga não brilha.”
Doses de Hulk
Luís Horta, médico, professor e ex-presidente da Autoridade Antidopagem de Portugal (ADoP), entende que não só o consumo se generalizou como há gente a tomar doses exageradíssimas – e “preocupantes” – de esteroides anabolizantes. “Doses que podem chegar a 50 até 100 vezes mais do que as que são legítimas para fins terapêuticos”, afirma. E com isto, a probabilidade de desenvolverem efeitos secundários graves também aumenta.
Os esteroides anabolizantes são compostos sintéticos que imitam os efeitos das hormonas produzidas naturalmente pelo corpo – como a testosterona – e permitem aumentar a síntese proteica e o crescimento muscular. Prescritos por médicos para tratar doenças como a anemia, problemas de crescimento ou desequilíbrios hormonais, mas proibidos pela Agência Mundial Antidoping. No seu site, a ADoP avisa estar cientificamente comprovado que os seus efeitos secundários podem causar sérios riscos à saúde.
Um adulto jovem que faça um tratamento com esteroides anabolizantes “tem uma diminuição do número e da qualidade dos seus espermatozoides, o que aumenta a dificuldade em procriar. Pode ter atrofia testicular e ficar estéril”, explica à VISÃO o especialista em medicina desportiva Luís Horta. Os anabolizantes são uma espécie de veneno lento, pelo que os mais graves efeitos secundários só aparecem a médio/longo prazo, “dez ou 20 anos depois da toma”. São eles uma “maior incidência de problemas cardiovasculares, tumores do fígado e da próstata, hipertrofia do miocárdio que vai muito além do chamado coração do atleta, porque não é natural”.
“Estas substâncias causam danos sistémicos em vários órgãos e levam à formação de anticorpos que vão causar danos no próprio tecido muscular cardíaco. Se tomados ad eternum, também produzem dependência psíquica.”
Luís Horta está convencido de que, em Portugal, para cada três ou quatro homens que tomam esteroides anabolizantes há uma mulher que faz o mesmo. Nelas, os efeitos mais comuns são “alterações do ciclo menstrual, menorreia, esterilidade, diminuição do volume dos seios e hipertrofia clitoriana, podendo ficar com um minipénis e terem de ser submetidas a cirurgia plástica”. O único estudo em Portugal entre frequentadores de ginásios foi feito em 2011 pela associação europeia Health and Fitness, com o apoio da Comissão Europeia (abrangendo oito países): 4,2% dos inquiridos em Portugal confessaram consumir substâncias dopantes, contra a média europeia de 2,7%. Ainda assim, “estes números devem pecar por defeito”, diz Luís Horta.
A amostra era curta – cerca de 800 utentes – e abrangia apenas frequentadores dos ginásios integrados na Associação de Empresas de Ginásios e Academias de Portugal (AGAP), pelo que ficaram automaticamente excluídos os utilizadores dos chamados ginásios de garagem e “do ferro”. Além disso, para os números serem fidedignos era preciso contar que todos respondiam ao questionário com honestidade. Quando se tenta fazer um trabalho como este percebe-se: a maioria continua a não querer assumir que os seus músculos não foram feitos só à base de ovos, peito de frango e batidos de proteína.
Ex-atleta de corridas de fundo e de corta-mato, Luís Horta prometeu dedicar-se ao combate ao doping quando leu um estudo feito no Canadá, em 1997, sobre o consumo de anabolizantes entre os jovens dos 11 aos 16 anos. Os resultados, recorda, eram “assustadores”. Mostravam que 2,8% já tinham tomado e que, entre esses, 29% partilhavam agulhas no momento da injeção, ficando altamente vulneráveis ao risco de propagação de doenças.
Em Portugal, nunca foi estudado o consumo de esteroides nessas idades. Mas, como “sabia que o problema existia”, quando estava no Conselho Nacional Antidopagem (hoje ADoP) Luís Horta pediu ao Ministério da Educação endereços das escolas do 2º e 3º ciclos e enviou brochuras sobre o tema em linguagem simples. Se umas houve que aproveitaram para discutir o problema, de outras recebeu respostas como esta: “O senhor é louco. Esta realidade não existe.”
Não é preciso ir muito longe para descobrir países onde o consumo de esteroides já é visto como um problema de saúde pública: são feitas campanhas de prevenção, é dada formação nas alfândegas e a lei pune severamente quem vende estas substâncias. É isso, por exemplo, que acontece em Espanha. “Aqui ainda há muito a fazer”, assume o médico.
O especialista diz ser preciso falar mais sobre o assunto; trabalhar junto daqueles que “ainda não têm o culto do corpo mas querem resultados rápidos, pelo que são os mais facilmente aliciados quando entram num ginásio”; e estudar a fundo o que se passa em ambiente prisional e nas Forças Armadas e de segurança.
Luís Horta já foi chamado por um diretor de uma prisão que não compreendia o número exagerado de ecografias mamárias e de nódulos malignos entre os reclusos. Um dos efeitos secundários dos esteroides é precisamente a ginecomastia (aumento dos seios nos homens). Pela primeira vez, em 2014, um estudo do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD) sobre o consumo de substancias ilícitas nas prisões incluiu o consumo de esteroides anabolizantes e revelou “uma transferência de consumos das substâncias mais tradicionais” para os esteroides. Dos 1486 reclusos inquiridos, 7% admitiram já ter consumido anabolizantes.
Luís Horta também já foi chamado a ações de formação “devido a um problema detetado nas Forças Armadas” e garante que nesse mundo o tabu é ainda maior. “É muito preocupante. O aumento de agressividade está bem estudado entre utentes de ginásio que tomam esteroides e estes homens deviam estar calmos, dada a necessidade de serem eles a manter a ordem.”
Um antigo aluno da Faculdade de Medicina de Lisboa estudou o caso clínico de Pedro (nome fictício), motorista da Carris de 35 anos e levantador de pesos amador, que tinha sido internado duas vezes em serviços de psiquiatria por depressão, agressividade e ideias suicidas.
Pedro consumia esteroides desde os 30. Aos 33, confessou ter intensificado a toma, recorrendo a um maior número de substâncias em simultâneo, e abolindo o intervalo entre o fim e o começo de um novo ciclo. Durante a primeira fase do ciclo, dizia sentir-se como “um Deus todo-poderoso”. Na segunda fase, sentia instabilidade emocional e agressividade, chegando a atropelar intencionalmente um peão que circulava de skate na estrada só porque estava irritado. À medida que os efeitos secundários aumentaram, Pedro acabou a vender o carro para conseguir comprar um novo stock de anabolizantes.
“No início, isto dá um bump na autoestima e na boa-disposição pelo aumento da testosterona. Nessa fase, há alguns que vivem como se fossem invencíveis, tal é o aumento do ego”, explica Miguel. O problema vem depois, na fase do desmame. “Há pessoas que ficam com dependência e sofrem de depressão pós-ciclo. E, depois, as doses habituais deixam de fazer o mesmo efeito, é preciso mais e não conseguem parar.”
Portugal a exportar para o mundo
Um dos sinais de que o problema estava em crescendo foi dado por Espanha, em 2012: toneladas de esteroides anabolizantes estavam a chegar àquele país vindas de Portugal. Em cooperação com a Guardia Civil espanhola, a Unidade Nacional de Combate à Corrupção (UNCC) da Polícia Judiciária (PJ) começou a investigar e, em 2016, montou uma megaoperação que desmantelou seis redes de produção e comercialização de esteroides no Minho, Margem Sul e região Oeste. Foi a maior apreensão de sempre no País.
Numa rajada, os inspetores descobriram 750 mil comprimidos e 50 mil ampolas prontos a entrar no mercado, além de máquinas de produção, testosterona em estado puro, óleos, frascos e medicamentos contrafeitos adquiridos em mercado paralelo e que, no total, valeriam 2 milhões de euros. De forma quase silenciosa, Portugal deixara de ser um consumidor tímido para passar a ser um dos principais exportadores europeus de esteroides. Daqui, os produtos seguiam para Espanha e outros países europeus, Brasil, Canadá e Estados Unidos.
O cenário que a PJ encontrou e registou em imagens poderia ser reproduzido e usado em campanhas de combate ao consumo dos anabolizantes. Os laboratórios improvisados funcionavam em garagens, caves ou cozinhas sem higiene, ao lado de gorduras ou de beatas de cigarros. Mais de 80% do material era contrafeito. Havia testosterona misturada com insulina – “é algo que nós médicos nem sabemos que efeitos provoca porque esta mistura nunca foi testada”, diz Luís Horta –; havia substâncias vendidas como se fossem outras coisas mas que eram apenas testosterona (o que fazia com que os clientes, sem o saber, aumentassem brutalmente a dose de testosterona consumida); substâncias sem qualquer princípio ativo (simples placebos); substâncias normalmente administradas em cavalos (e de uso exclusivo por veterinários) e até testosterona fabricada com óleo vegetal de fritar batatas.
Lei pré-histórica
Para que os clientes não duvidassem da autenticidade dos produtos, as redes usavam frascos, rótulos e hologramas que davam às drogas uma aparência credível. O Facebook era o maior ponto de venda. Uma página com o nome “Best-Pharma” – decorada com imagens de um laboratório e de pessoas vestidas com batas – funcionava como uma autêntica farmácia online de esteroides e outros produtos para emagrecimento e para a disfunção erétil. Só uma destas redes produzia 30 mil cápsulas por semana.
Ao todo, 19 pessoas – algumas com antecedentes ligados ao tráfico de droga – foram apanhadas nessa operação a exportar, distribuir ou fabricar substâncias anabolizantes. Mas só três foram acusadas pelo Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa, devido aos obstáculos da lei.
Dois inspetores da PJ ouvidos pela VISÃO reclamam que Portugal está “na pré-história em termos de legislação”, deixando margem para os apanhados reincidirem – até porque os lucros são tentadores. “A lei só pune quem fornece aos atletas de alta competição. Só que a grande fatia do consumo está nos ginásios. Logo o principal flagelo não está regulado pela lei”, explicam Pedro Fonseca, coordenador da Polícia Judiciária, e o inspetor José Cunha Ribeiro.
“Em Espanha houve um grande desenvolvimento legislativo. Aqui ainda é uma espécie de terra sem lei. Há um vazio legal. Não encaixa na lei do doping nem na lei da droga. Temos a magistratura e as polícias perante um cenário em que não sabem o que fazer perante algo que é nocivo para a saúde pública”, explica Pedro Fonseca.
O tráfico de substâncias e métodos proibidos, previsto na Lei Antidopagem no Desporto, aplica-se apenas à venda a atletas federados ou que participem em competições. Ficou provado que, na maioria dos casos, os alvos destas redes eram simples “praticantes de musculação”.
A investigação ainda ponderou aplicar o crime de corrupção de substâncias alimentares ou medicinais, mas também aí se deparou com um obstáculo: não foi possível provar que aquelas drogas falsificadas expuseram os consumidores a risco de vida.
Rui Manuel da Costa, ciclista federado, estava no centro desta rede. Geria há três anos, na cave de um stand de automóveis na zona de Leiria, um negócio de tratamentos de ozono por via intravenosa e de venda de substâncias dopantes. Só pôde ser acusado porque vendia os serviços a atletas profissionais. Comercializava testosterona, propionato, hormona de crescimento ou EPO (eritropoietina), a preferida do ciclismo. Usada na recuperação de doenças oncológicas e na correção da anemia em pacientes com doenças renais crónicas, a EPO, se usada sem controlo médico pode causar tromboses, embolias, hipertensão.
Apesar das limitações da lei, há anos que a PJ investiga o uso de doping no desporto. Já em 2008, inspetores acompanhavam no terreno uma prova de ciclismo em Amarante quando um dos atletas da LA-MSS (Bruno Neves) morreu durante o percurso.
A autópsia a Bruno Neves provou que o atleta caiu da bicicleta na sequência de uma insuficiência respiratória aguda, consecutiva a arritmia cardíaca. Fonseca Esteves, então diretor do Centro de Medicina Desportiva, descreveu o coração do atleta como “excessivamente grande” para a dimensão do corpo, com “aparente hipertrofia dos ventrículos” e explicou que essa transformação só era possível no caso de Bruno Neves ser portador de miocardite ou de ter tomado “substâncias que provocam esse efeito hipertrófico”. À semelhança da PJ, também o médico Fonseca Esteves tem insistido na necessidade de se mudar a metodologia das autópsias quando estão em causa mortes súbitas no desporto. “Um coração com 700 gramas, como já vi nalguns casos, não é normal [o peso médio do de um adulto é de 300 gramas]. Para chegarmos à verdade precisamos de médicos legistas bem preparados e de médicos que estudam as alterações no coração. São autópsias complexas e caras.”
No caso de Bruno Neves, a investigação descobriu na casa de colegas da sua equipa inúmeras substâncias proibidas receitadas por um médico – Marcos Maynar, doutorado em medicina desportiva, foi suspenso pela Federação Portuguesa de Ciclismo durante dez anos e entretanto julgado em Espanha na sequência de outro escândalo de doping. Descobriu também que uns exames feitos por Neves num laboratório de análises de Espinho tinha sido adulterado: o original indiciava um aumento da produção de glóbulos vermelhos, possível através do recurso à bombástica EPO.
Apesar de tudo isto, não foi possível provar que a morte súbita de Bruno Neves se deveu à toma de EPO, de hormona de crescimento ou de outros esteroides. Os especialistas que mais têm estudado o problema dizem estar provado que pelo menos três atletas que morreram de morte súbita em Portugal nos últimos anos consumiam esteroides. O que falta é que as técnicas médico-legais consigam estabelecer a causa-efeito.
Quem está no terreno chama-lhe “uma epidemia silenciosa”. “Com o mercado online, temos miúdos de 16 anos a consumir sem qualquer supervisão ou acompanhamento médico. Há miúdos com problemas cardíacos porque tomam estas substâncias sem sequer treinar”, alerta Pedro Fonseca, da PJ.
Miguel, que já esteve nesse mundo, diz haver demasiada gente a tomar “sem os conhecimentos mínimos” e até quem “injete óleo antes das competições” para que o corpo pareça maior. Quem ainda não sentiu os efeitos secundários problemáticos vai desvalorizando os riscos. Afinal, sente-se invencível. E a doença ou a morte não são coisas que aconteçam ao super-homem
Efeitos na saúde
Aumenta
· Volume do miocárdio
· Pressão arterial
· Tumores do fígado
e da próstata
· Esterilidade
· Dimensão do clítoris
· Mau colesterol (LDL)
· Acne
· Perda de cabelo
· Tom grave da voz
· Agressividade
e irritabilidade
Diminui
· Volume dos testículos
· Volume dos seios
(nas mulheres)
· Alterações do ciclo menstrual
· Interrupção
do crescimento
(em adolescentes)
· Colesterol bom (HDL)
· Número de espermatozoides
(Artigo publicado na VISÃO 1284, de 12 de outubro de 2017)