Em junho de 2007, a repórter da VISÃO Patrícia Fonseca verificou que à entrada da Quinta do Conde D’Arcos, em Lisboa, nada denunciava que ali existia, como era suposto, um tribunal arbitral. No portão, aberto de par em par, observou que apenas figuravam dois placards, informando que naquelas instalações camarárias funcionavam as escolas de calceteiros e de jardineiros da autarquia.
Mas, no meio dos viveiros de plantas, surgia uma pequena casa e, à porta, lia-se uma discreta placa informativa: Instituto Português de Ciências Jurídicas (IPCJ). Entrando, havia duas salas e duas funcionárias que não prestavam qualquer esclarecimento sobre o funcionamento do tribunal arbitral daquele instituto, autorizado pelo despacho n.º 9141 do Ministério da Justiça, em 2006.
O tribunal arbitral do IPCJ era o alvo de uma investigação da jornalista da VISÃO. Patrícia Fonseca explicava porquê, logo na abertura do seu texto. “Transfira para fora… cá dentro”, escreveu. Este, esclarecia, “poderia ser o slogan de promoção da mais recente oferta proposta a empresas à beira da falência, permitindo-lhes colocar o seu património fora da alçada dos seus credores”.
O esquema do “centro de arbitragem” podia ser resumido assim: ao passarem as suas propriedades ou quotas para outra empresa, muitas vezes “fantasma”, as firmas em dificuldades financeiras conseguiam, de imediato, fechar a porta na cara dos seus credores, que as procuravam com ações de arresto. Depois, o património era vendido a terceiros e os lucros acabavam divididos entre as partes. Este era o guião mais recorrente, mas havia nuances, consoante os casos.
Nos tribunais judiciais de todo o País multiplicavam-se as ações de lesados, requerendo a nulidade de decisões proferidas por centros de arbitragem, nas quais se ordenavam as referidas transferências de património. As histórias contadas pelos queixosos eram, em tudo, similares. Muitas das empresas “recetadoras” das propriedades não tinham atividade conhecida nem registo telefónico, e as suas sedes, visitadas pela VISÃO, estavam vazias, abandonadas ou… não existiam.
TRAMADO POR UM MEDIADOR DE SEGUROS
No epicentro de numerosas queixas estava o Centro de Arbitragem do IPCJ, fundado pelo advogado João Álvaro Dias, à época com escritório numa imponente moradia na Avenida Gago Coutinho, em Lisboa, e ex-professor de Direito na Universidade de Coimbra. E o primeiro caso de litigância com o centro de arbitragem criado por Álvaro Dias, relatado pela repórter da VISÃO, era o de Pedro Agapito, um mediador de seguros de Castelo Branco.
Pedro sonhava com a construção de uma vivenda, falou nesse desejo a um empreiteiro seu conhecido e, em poucas semanas, estava a assinar um contrato de compra e venda. O mediador de seguros tinha uma relação de confiança com um dos sócios da Beiradinnis, empresa de construção de Castelo Branco. E financiou a compra do terreno e a construção da casa, aceitando que a moradia ficasse em nome da empresa, até estar concluída. Isto porque o projeto, entrado na Câmara Municipal, já estava registado em nome da construtora.
Mas, poucos meses depois, a Beiradinnis, aproveitando-se do facto de ter o terreno em seu nome, decidiu pedir um empréstimo bancário de 150 mil euros, hipotecando o… terreno que na verdade pertencia a Pedro Agapito. O mediador de seguros recorreu ao Tribunal Judicial de Castelo Branco, que deu como provado que Pedro financiou integralmente a compra do terreno e a construção da casa, pela qual já havia pago €162 500, ainda inacabada.
No entanto, quando tentou averbar a propriedade da casa, Pedro Agapito descobriu que já havia sido registada, dias antes, em nome de outra empresa, a Realcil. Essa transferência foi realizada através de uma sentença do tribunal arbitral criado por Álvaro Dias, o do mencionado IPCJ, em Lisboa (que perdeu a licença do Ministério da Justiça após a publicação da investigação da VISÃO). O mediador de seguros e o seu advogado pediram, de imediato, a consulta de tal processo. Não foi fácil contactar o secretário do tribunal arbitral, que supostamente teria os documentos, mas lá conseguiram encontrá-lo e marcar uma reunião com ele. O encontro realizou-se na sede da sociedade de advogados Álvaro Dias & Associados, na capital, e o dito secretário fez uma declaração insólita: à luz dos estatutos do tribunal arbitral, eram apenas arquivadas as sentenças, entregando-se os processos às partes. Poderiam requerer só uma certidão da sentença, o que fizeram.
Aí é especificado que a Beiradinnis, a construtora de Castelo Branco, aceitou entregar a propriedade à Realcil, reconhecendo o “incumprimento de um contrato de promessa de compra e venda”, celebrado entre as partes a 29 de setembro de 2006 (dois anos depois do celebrado com Pedro Agapito)
O mediador de seguros viveu na moradia dos seus sonhos, com a mulher e dois filhos pequenos, de janeiro a setembro de 2007 – até ser despejado às oito horas de uma manhã, com funcionários judiciais, militares da GNR e um sócio da Realcil à porta. Perdeu a casa, que rapidamente a Realcil vendeu a um terceiro, mas regressou aos tribunais.
Passaram nove anos e esta sexta-feira, 18, na Instância Central Criminal de Lisboa, Pedro Agapito viu Álvaro Dias ser condenado a cinco anos e meio de prisão efetiva, por falsificação de sentenças arbitrais e burla agravada. Fundamentando a sentença, a juíza que dirigiu o julgamento declarou que “não há falsificação mais grave do que esta – a de uma sentença – nem burla mais grave do que a que usa sentenças falsas para retirar uma família de casa e prosseguir uma saga judicial”.
António Realinho e Fernando Miguel, cúmplices de Álvaro Dias na Realcil, foram condenados a quatro anos e meio de prisão efetiva, cada um. Pedro Agapito pede uma indemnização de cerca de 300 mil euros e, por isso, foram arrestados bens de António Realinho e Fernando Miguel, para assegurar esse pagamento. Em nome de Álvaro Dias, nenhuns bens foram encontrados… Mas prevê-se, dada a quantidade de lesados, que o advogado viva os próximos anos a sentar-se consecutivamente no banco dos réus.