Ex.mo Sr. Director da revista VISÃO:
Somos leitores e admiradores da qualidade da revista VISÃO, uma publicação prestigiada e de referência em Portugal. Foi portanto com estupefação que, no último número da revista, nos deparámos com um artigo de carácter alarmista dedicado aos efeitos da tecnologia Wi-Fi, que mereceu grande destaque, sendo tema de capa e tendo ocupado nove páginas: “Zona Wi-Fi: Ameaça para a Saúde” (VISÃO Nº1207, 21/4 a 27/4/2016).
O artigo em causa merece várias críticas por quatro motivos: contém erros técnico-científicos; apresenta um grande desequilíbrio entre as opiniões de especialistas e de leigos; não tem em conta as evidências científicas actuais; e apresenta-se com um carácter sensacionalista.
Começando pelo aspecto sensacionalista e alarmista da reportagem, este está patente desde logo na capa da revista com a seguinte afirmação “Zona Wi-Fi: Ameaça para a Saúde”. Logo abaixo surge outra afirmação: “As ondas eletromagnéticas estão por todo o lado e cientistas acreditam que podem causar danos”. Qualquer leitor que se depare com esta capa vai reter que a tecnologia Wi-Fi é perigosa para a saúde e que tal é um facto que reúne o consenso científico. Ora, tais afirmações taxativas não poderiam estar mais longe dos factos científicos que conhecemos: não está demonstrado que as radiações electromagnéticas usadas, quer na tecnologia wi-fi quer nos telemóveis, sejam perigosas para a saúde humana; o consenso científico aponta precisamente na direcção oposta à que é dada a entender na capa.
Sobre a Hipersensibilidade à Radiação Eletromagnética (EHS), diz a autora do texto que a doença não é consensual internacionalmente por não haver provas científicas. Mas após reconhecer estes factos, parece deixar na dúvida os leitores, dando a entender que poderá existir uma relação causal com testemunhos pessoais e “conselhos” sobre como reduzir a exposição às ondas electromagnéticas. Em nenhum ponto da peça é indicado que existem vários estudos científicos disponíveis sobre a EHS e que a generalidade das revisões sistemáticas não encontrou nenhuma ligação directa entre os campos electromagnéticos e a EHS. Adicionalmente, em condições devidamente controladas, os doentes com EHS não conseguem sequer saber se estão ou não a ser expostos a radiações electromagnéticas (ver estudos em anexo). Tudo isto sugere que a EHS seja na realidade uma condição psicossomática com base em efeitos nocebo, isto é, os sintomas dos doentes, apesar de reais e debilitantes, não são causados pelos campos electromagnéticos, mas antes, pela crença dos pacientes de que 1) estão expostos a campos electromagnéticos e 2) que esses campos electromagnéticos são perigosos.
Como ponto positivo, reconhecemos que a autora contactou alguns especialistas (médicos e engenheiros). No entanto, colocou ao mesmo nível os factos apresentados pelos especialistas e as opiniões dos leigos, como se tivessem o mesmo peso, e deixando os leitores na dúvida sobre as consequências para a saúde advindos da radiação dos aparelhos sem-fios.
Do lado dos que denunciavam os alegados riscos, encontravam-se: Eva, antropóloga de Coimbra, que afirma sofrer de EHS; Hugo Dunkel, que se queixa de problemas dermatológicos; Marine Richard, escritora francesa que se queixa de EHS e que ganhou uma compensação financeira em tribunal; Joaquina Corado, dentista alegadamente electrossensível, que, inspirada pela escritora francesa, removeu as tecnologias sem-fio da sua casa e da clínica; Guilherme Coelho, da GeoHabitat, que fornece material para a construção de casas protegidas contra a radiação (lucrando com o medo percepcionado); Helder Luís e Paulo Vale, que estão a construir casas protegidas (novamente, pessoas com interesse económico na propagação do medo); Mafalda Reino, empresária da restauração, que pretende menos radiação Wi-Fi no seu estabelecimento.
E o que dizem os especialistas? Olle Johansson, neurocientista sueco é um dos críticos das comunicações sem fios; Manuel Santos Rosa, investigador da Universidade de Coimbra, recomenda precaução, mostrando-se mais preocupado com o aquecimento dos aparelhos. Para além destes dois académicos, outros sete especialistas (médicos e engenheiros) foram contactados e desvalorizaram as preocupações, disseram que não havia provas que apoiem tais afirmações e informaram que os níveis de radiação a que estamos sujeitos estão muito abaixo dos limites estabelecidos nas recomendações internacionais (António Vaz Carneiro, médico e professor da FMUL; Luís Correia, engenheiro eletrotécnico do IST; Paulo Montezuma, docente da UNL; Pedro Rosário, técnico da DGS; Mário Cordeiro, pediatra; Flávio Jorge, investigador do Instituto de Telecomunicações; António Tavares, especialista de saúde pública). Ou seja, as explicações com base científica providenciadas pelos especialistas deveriam ter sido mais proeminentes no texto, explicando que havia pessoas que associavam certos sintomas ao Wi-Fi, mas que a maioria dos especialistas e as provas científicas apontam numa direção oposta.
Sobre o facto de o Wi-Fi ter sido proibido nas creches em França, deveria ter ficado explícito que essa foi uma decisão política e que não foi baseada em evidências científicas (como acontece frequentemente em decisões políticas resultantes de pressão por alguns grupos de interesse).
Para além de a autora informar que a radiação provinda do Wi-Fi é radiação não-ionizante, deveria ter explicado e frisado que esta radiação não é nociva, ao contrário das radiações ionizantes que podem causar cancro.
Sobre o relatório da OMS que classifica as radiações como “possivelmente cancerígenas” (grupo 3 de 5), é preciso salientar que essa classificação apenas refere a força de evidência e não a probabilidade de risco (ou seja, não diz quão perigosa uma substância ou tecnologia é).
Concordamos que as pessoas têm direito à sua opinião. No entanto, as opiniões de um leigo não têm o mesmo peso e fundamentação que as evidências ou a opinião de um especialista. Dar preponderância às opiniões de especialistas contribui para uma boa informação e esclarecimento da população. O tom sensacionalista da peça não ajuda de todo quem sofre com EHS; pelo contrário, contribui para que não procurem ajuda médica especializada e se tornem vítimas de charlatães que oferecem todo o tipo de “terapias” e soluções tecnológicas dúbias como protecção contra as ondas electromagnéticas.
Abaixo, apresentamos várias fontes científicas credíveis, nomeadamente revisões sistemáticas de diversos campos de estudo, que sustentam as afirmações que fazemos nesta carta aberta e contrariam os alertas destacados na reportagem:
“Electromagnetic hypersensitivity: a systematic review of provocation
studies”
«Os sintomas descritos por quem sofre de “hipersensibilidade
electromagnética” podem ser severos e debilitantes. Contudo, tem
sido difícil demonstrar que a exposição a campos electromagnéticos
consegue provocar esses sintomas em condições cegas. Isto sugere
que a “hipersensibilidade electromagnética” não está relacionada com
a presença de campos electromagnéticos, apesar de serem
necessários mais estudos sobre o fenómeno.»
“Radiofrequency electromagnetic field exposure and non-specific
symptoms of ill health: A systematic review”
«Esta revisão demonstra que a maioria dos indivíduos que alegam
serem capazes de detectar campos electromagnéticos de baixo nível
não o conseguem fazer em condições duplamente cegas. […] Os
estudos observacionais disponíveis não permitem a diferenciação
entre os efeitos biofísicos e nocebo dos campos electromagnéticos»
“Idiopathic environmental intolerance attributed to electromagnetic
fields (formerly ‘electromagnetic hypersensitivity’): An updated
systematic review of provocation studies”
«[…] os estudos incluídos nesta revisão apoiam o papel do efeito
nocebo no desencadeamento dos sintomas agudos de quem sofre de
intolerância ambiental idiopática atribuída aos campos
electromagnéticos (IEI-EMF). Apesar da convicção de quem padece
de IEI-EMF de que os seus sintomas são causados pela exposição a
campos electromagnéticos, repetidas experiências não foram capazes
de replicar este fenómeno em condições controladas. Um enfoque
limitado nos mecanismos bioelectromagnéticos por parte de clínicos e
legisladores é portanto improvável de ajudar a longo prazo os
pacientes com IEI-EMF.»
“Wireless communication fields and non-specific symptoms of ill
health: a literature review”
«Em suma, as investigações recentes não indicam que a exposição do
dia-a-dia a campos electromagnéticos afecte a qualidade de vida
relacionada com a saúde. Adicionalmente, nenhum dos estudos
demonstrou que os indivíduos com hipersensibilidade
electromagnética auto-diagnosticada sejam mais susceptíveis aos
campos electromagnéticos do que o resto da população»
“Do people with idiopathic environmental intolerance attributed to
electromagnetic fields display physiological effects when exposed to
electromagnetic fields? A systematic review of provocation studies”
«Actualmente, não existem provas fidedignas que sugiram que
pessoas com intolerância ambiental idiopática atribuída aos campos
electromagnéticos sofram reacções fisiológicas incomuns como
resultado da exposição a campos electromagnéticos. Isto apoia a ideia
de que os campos electromagnéticos não são a principal causa dos
seus problemas de saúde»
“EHS subjects do not perceive RF EMF emitted from smart phones
better than non-EHS subjects”
Neste estudo duplamente cego, dois grupos de voluntários, 17 com
hipersensibilidade electromagnética auto-diagnosticada (EHS) e 20
indivíduos sem EHS foram estudados relativamente à sua percepção
de campos electromagnéticos com sessões de exposição reais e
simuladas. […] Em conclusão, não existem indícios de que indivíduos
com EHS tenham melhor percepção de campos electromagnéticos do
que indivíduos sem EHS.
“Aggregated data from two double-blind base station provocation
studies comparing individuals with idiopathic environmental intolerance
with attribution to electromagnetic fields and controls”
«Estes resultados são consistentes com a crescente acumulação de
literatura que indica que não existir uma relação causal entre a
exposição a curto prazo a campos electromagnéticos e o bem-estar
subjectivo de membros do público, quer reportem ou não ter
sensibilidade a campos electromagnéticos.»
“Psychological symptoms and health-related quality of life in idiopathic
environmental intolerance attributed to electromagnetic fields”
«Os resultados sugerem que a intolerância ambiental idiopática
atribuída aos campos electromagnéticos (IEI-EMF) está associada a
vários tipos de sintomas psicológicos e fraca qualidade de vida
relacionada com a saúde. As implicações clínicas incluem apoio
teórico para terapia cognitivo-comportamental […]»
«Na área dos efeitos biológicos e aplicações médicas da radiação nãoionizante,
aproximadamente 25 mil estudos foram publicados nos
últimos 30 anos. Apesar da convicção de algumas pessoas de que é
necessária mais pesquisa, o conhecimento científico nesta área é
agora mais extenso do que para a maioria dos químicos. Tendo como
base uma recente e profunda revisão da literatura científica, a OMS
concluiu que as provas existentes não confirmam a existência de
qualquer consequência para a saúde resultante da exposição a
campos electromagnéticos de baixo nível.
Com os melhores cumprimentos,
Diana Barbosa
(em representação da COMCEPT)
Subscrevem esta carta:
Alexandra Marques (bióloga)
António Piedade (comunicador de ciência)
António Gomes da Costa (consultor em comunicação de ciência)
António Vilas Boas (bancário)
Armando Brito de Sá (médico)
Carlos Fiolhais (físico)
David Marçal (bioquímico)
Diana Barbosa (bióloga)
Guilherme Lopes da Cunha (biólogo)
Hugo R. Oliveira (biólogo)
João Gaspar (biólogo)
João Monteiro (biólogo)
Jorge Morais (cientista de computadores)
Leonor Abrantes (historiadora de ciência)
Luís Monteiro (médico)
Marco Filipe (biotecnólogo)
Maria João Fonseca (assessora de comunicação)
Marina Frajuca (enfermeira)
Miguel Won (físico)
Nuno Fragoso Gomes (assessor de comunicação)
Patrícia Gonçalves (física)
Pedro Homero (recrutador RH)
Pedro Russo (astrónomo)
NA: Ao longo artigo é referido, várias vezes, o facto de não haver provas científicas universalmente aceites sobre os eventuais perigos das ondas eletromagnéticas. Logo no segundo parágrafo é dito que a “Hipersensibilidade à Radiação Eletromagnética (EHS, na sigla inglesa), uma doença já reconhecida na Alemanha e na Suécia, por exemplo, [mas que] não é consensual internacionalmente devido à ausência de provas científicas”.
Refere-se, ainda, que “a Organização Mundial de Saúde (OMS) não desvaloriza os sintomas, mas classifica-os como ‘uma intolerância ambiental idiopática’, ou seja, sem causa conhecida, por ser semelhante a múltiplas sensibilidades a outros fatores químicos”.
Relativamente à possibilidade de a Hipersensibilidade Eletromagnética ser uma doença psicossomática, tal é defendido por um dos especialistas entrevistados, assim como por uma das pessoas que se diagnostica como eletrossensível.
O texto inclui declarações de cerca de duas dezenas de entrevistados, todos eles devidamente identificados e citados de acordo com as suas posições e cargos que ocupam.
Entre os especialistas entrevistados, vários desvalorizam as preocupações com este tipo de ondas enquanto outros mostram reservas ou estão mesmo convictos dos seus potenciais riscos.
Clarifico que nem Hélder Luís nem Paulo Vale têm interesses económicos na questão. Já que investiram na proteção das suas casas mas não é essa a sua área de negócio.
Quanto à proibição do wi-fi nas creches francesas, é Pedro Rosário, técnico superior da Direção-Geral de Saúde (DGS), quem explica, na reportagem, não encontrar “justificação técnica” para a decisão, estando a medida baseada na “perceção do risco” da população.
As instituições charneira mais citadas no artigo são a Organização Mundial de Saúde, o ICNIRP e a Comissão Europeia, que prosseguem os estudos nesta área.
É referida a mais recente avaliação da Comissão Europeia sobre os potenciais riscos para a saúde da exposição a campos eletromagnéticos, que conclui serem adequados os limites de radiação hoje estabelecidos, à luz do conhecimento atual, mas recomenda que se prossiga a investigação.
Este é um tema complexo, controverso e atual, que alimenta ainda várias investigações.
Pode ler o artigo em causa aqui.
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