Carlos Cruz vai apresentar esta terça-feira a sua autobiografia “Uma Vida” e falou sobre a obra à VISÃO da semana passada. E uma das histórias de que falou e que consta do livro revela que a atribuição a Portugal da organização do Campeonato da Europa de futebol de 2004 não terá sido totalmente limpa.
No livro, conta três episódios de pedidos de “presentes” a troco de votos. Um deles era uma vivenda no Algarve, no valor de 100 mil dólares, com José Sócrates, então ministro-adjunto do primeiro-ministro, a dizer-lhe: “Ó Carlos Cruz, não podemos perder isto por uma questão de dinheiro, era o que faltava!”
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“O presidente da Federação desse país (não especifica qual) tinha manifestado o desejo de passar férias em Portugal. Alguém teve a ideia de oferecer as férias ao senhor e família. Fizemos as contas e como ele não tinha datas escolhidas levou-se um envelope com os dólares equivalentes ao cálculo das viagens e de uma semana de férias no Algarve. […] À saída da reunião, Madail, discretamente, entregou-lhe o envelope. Como o dólar valia mais do que o sol do Algarve, o nosso amigo guardou o dinheiro e não pôs os pés em Portugal. Já em Aachen (Alemanha) fez chegar até nós a sua disposição de falar com mais um ou dois colegas amigos, de outras federações votantes. Percebemos a mensagem que nos chegou já perto da decisão. Madail encontrou-se com ele no quarto do hotel; disse-me que o encontrou em roupão e que o senhor ficou muito feliz com o segundo envelope que recebeu; penso que foram 12500 ou 15000 dólares. Não sei se angariou ou não algum voto; ao sair da sala onde tinha decorrido a votação mostrou-me um papel e apontando com o dedo disse-me com muito sotaque ‘I vote Portugal…see…see.’ Tinha escrito Portugal, Áustria, Espanha por esta ordem”.
“Em conversa com um amigo meu, presidente de uma multinacional, referi-lhe o nome do presidente da federação de um país que tinha grande influência na decisão da Comissão do Euro. […] Esse meu amigo, cuja multinacional tinha uma filial no país em questão, prometeu tentar obter informações sobre o indivíduo e a sua tendência de voto. […] Foi no bar do Hotel Ritz que ele me informou: teríamos o voto garantido daquele país e a promessa de que faria lóbi a nosso favor junto de várias federações do Leste; em contrapartida queria uma vivenda no Algarve no valor de 100 mil dólares. Fiquei estupefacto, mas não comentei e prometi fazer as necessárias consultas. Telefonar-lhe-ia depois para comunicar a decisão. Falei com Madail e José Sócrates e foi este que me disse: ‘Ó Carlos Cruz, não podemos perder isto por uma questão de dinheiro! Era o que faltava!’ Perguntei-lhe se aquela afirmação era um ‘sim’ à proposta. Se garantisse o voto, era. Telefonei ao intermediário e disse-lhe exactamente isso. Foi seu um dos primeiros telefonemas que recebi logo a seguir à decisão da UEFA. Ainda hoje recordo a sua frase: ‘I told you’. Também me lembro do que me veio à cabeça: e agora? Vamos mesmo ter de dar uma vivenda ao gajo? Os dias passaram. Finalmente chegou o e-mail que eu receava: esperava notícias para tratar do que havia sido acordado. Gilberto Madail dizia-me que não tinha nada a ver com isso e José Sócrates dizia-me para falar com Madail. Eu argumentava que não tínhamos a certeza de que ele votara em Portugal ou que tivesse angariado votos, não tínhamos acesso à ata da votação. Quando a pressão sobre mim atingiu o clima de quase ameaça, enviei um último e-mail dizendo-lhe que não tinha qualquer responsabilidade pois apenas confirmara indicações superiores; tal como ele, tinha sido um intermediário: ele, devia, por isso contactar a FPF ou o ministro José Sócrates. Nunca mais tive notícias sobre o assunto”