O homem de cabelo branco que a PJ deteve, no último dia 30, há muito que não era alvo de flashes noticiosos pelas melhores razões. Michel da Costa, 66 anos, foi o primeiro chefe de cozinha em Portugal a receber uma estrela Michelin e isso levou-o aos píncaros até finais da década de 1990. Vários restaurantes, programas de TV e livros depois, a sua estrelinha parece ter perdido o brilho.
“Estou inocente, só quis ajudar o filho de um amigo”, deixou escapar aos repórteres que o aguardavam à entrada do Tribunal da Relação de Lisboa, onde foi prestar declarações, a 31. Já passara uma primeira noite na zona prisional da PJ, depois de ser detido com o “amigo de infância” francês Haig Jean, 67 anos, na sequência de um mandado de captura das autoridades gaulesas, acompanhado de um pedido de extradição, por não terem comparecido a uma convocatória para prestar declarações, no âmbito de um processo em que estão indiciados por fraude fiscal, branqueamento de capitais e associação criminosa.
“Ele é um artista, não tem jeito para negócios e, além disso, só foi a França duas ou três vezes, nos últimos dez anos”, rebate a sua filha do meio, Nathalie, 39 anos. A mais velha é Sofia Costa, a primeira decoradora do programa da SIC Querido, Mudei a Casa. O mais novo, Olivier, é igualmente cozinheiro e conhecido do grande público. “É verdade que o meu pai recebeu a convocatória; só que, como ia estar em Marrocos nessa altura, não compareceu”, reconhece Nathalie, para depois justificar: “Mas também não percebeu que era assim tão grave…”
Brincalhão e maçon
Michel da Costa, nascido em Mèknes, em 1946, ainda Marrocos era um protetorado francês, saltou para o estrelado no início dos anos 1970, por causa de uma brincadeira de amigos. O matutino O Século noticiou uma secreta presença em Lisboa de sheiks da Arábia Saudita, que tinham jantado faustosamente no Tavares Rico, aonde haviam chegado num Rolls Royce. O príncipe e comitiva, soube-se mais tarde, eram afinal clientes habituais do restaurante e tinham apostado que, se entrassem vestidos de árabes, ninguém os reconheceria. Michel da Costa, então jovem cozinheiro, fazia de intérprete: era o único do grupo que falava as duas línguas.
Filho de emigrantes portugueses, acabara de regressar a Lisboa depois de diplomado pela Escola de Hotelaria de Toulouse, em França. Feito o estágio no Hotel Ritz, instalar-se-ia, pouco depois, no restaurante com o seu nome, no Castelo de S. Jorge, o mesmo que lhe daria a alegria de ser o primeiro português a receber o carimbo da Michelin. No princípio dos anos 1980, já Michel brilhava no pequeno ecrã, ao apresentar Lúculos e Brócolos, baseado na cozinha tradicional portuguesa – coisa que, confessaria então à revista TV Guia, “não conseguia comer em Lisboa”. Nessa altura, ganha a nacionalidade: fora contactado pelo gabinete do Presidente da República Ramalho Eanes, que lhe perguntara porque não era ainda português, “ele, uma figura pública…”
Por tudo isto, não foi uma surpresa o convite, em 1985, para organizar o banquete comemorativo da adesão de Portugal à CEE: “O momento mais importante da minha carreira”, haveria de reconhecer. Três anos depois, o reconhecimento vem de França, com a atribuição da comenda da Associação Internacional dos Mestres Conselheiros em Gastronomia Francesa, considerada a mais prestigiada guardiã da tradição culinária gaulesa. No final daquela década, anuncia o seu primeiro restaurante-escola, na Gare Marítima de Alcântara, e aparece à frente dos jantares públicos da, à época, Grande Loja Distrital Portuguesa – seria, mais tarde, maçom assumido, da fação regular.
“Não tenho a ver; tenho a haver”
Ainda há de brilhar, uma década depois, na inauguração da ponte Vasco da Gama, ao bater um recorde, reconhecido pelo Guinness, por servir a maior mesa de refeição alguma vez posta e com o maior número de pessoas sentadas: ao longo de cinco quilómetros, alimentou, com dez toneladas de feijoada, 17 mil clientes.
Segue-se o negócio ruinoso dos restaurantes dos barcos da Expo’98. A Parque Expo fretara três paquetes de luxo para suprimir o “défice” de alojamento em Lisboa durante o evento, o que não se verificou, redundando o ato num prejuízo de 25 milhões de euros para o Estado. Convidado por Januário Rodrigues, diretor da Unidade de Alojamento da Expo’98, para explorar o serviço de restauração dos navios, Michel garante ter tido um prejuízo de 180 mil euros.
A partir de então, fala-se de passagens, sempre fugazes, por uma série de outros restaurantes, ao mesmo tempo que se instala em Marvila, num espaço arrendado a preços sociais, para lá fixar a filial da organização europeia de cozinheiros a que presidia. Ainda anunciou o lançamento de um projeto de produtos com denominação de origem, em parceria com o ICEP e o IAPMEI, e planos de expansão para o Dubai. Fiasco. Acabou por ficar naquela zona oriental de Lisboa, onde fez nascer, há pouco mais de um ano, uma sua nova escola, ampliada à custa de mais lojas arrendadas a preços sociais. A aventura terminou em março passado, com os alunos a acusarem-no de burla, além de “falta de higiene das instalações, degradação dos utensílios, maus cheiros na cozinha e uso de alimentos fora dos prazos de validade, que lhes eram fornecidos para as aulas”. Ao que relata Luís Moisão, porta-voz dos alunos alegadamente lesados, quatro meses depois do início das aulas a escola fechou, com o abandono do formador, Luís Alves. “Não tenho nada a ver com os negócios do senhor Michel. Tenho é muitos euros a haver”, diz este último.
Os alunos reuniram-se com Michel e ainda aguardaram novo professor – afinal, na altura da inscrição avançaram logo com o valor total do curso, 8 300 euros. “Como a escola não tinha condições para continuar, exigimos o nosso dinheiro de volta”, conta Luís Moisão. O chef recusou. A queixa formal veio, claro, logo a seguir.
Agora, é a Justiça francesa quem está no seu encalço, pedindo a sua extradição. Detido preventivamente, com o fundamento de risco de fuga, Michel não parece ter muitos amigos do seu lado – mesmo entre os três filhos, só Nathalie o visitou na cadeia. Sofia ficou à porta – “esqueceu-se de levar o cartão de cidadão”, justifica a irmã. Olivier, o filho que herdou o restaurante do Castelo de S. Jorge, optou por enviar um comunicado às redações, esclarecendo que não tem qualquer laço empresarial com o pai.
Como Michel se recusou a ser entregue às autoridades francesas, foi-lhe concedido um prazo de cinco dias para se defender. Dois dias depois, o documento estava expedido, garantiu a filha Nathalie. Segundo a lei, a extradição só é evitada se a pessoa em causa for inimputável, ou se o ato em questão não for crime nos dois países. Havendo ilícito comum, tem de ser punido com prisão superior a quatro meses. Por aqui, Michel não escapa. A Relação de Lisboa possui agora 60 dias para tomar uma decisão. Et voilá.