Há cada vez mais pais em licença de paternidade aderiram de forma surpreendente a uma inovadora lei criada em 2009, fazendo aumentar em 3 500% o número de casais que partilham os cuidados aos recém-nascidos. Fazem parte de uma geração de homens mais participativos e afetuosos que reclamam uma maior proximidade aos seus filhos, ao longo de toda a infância
Observando o carinho com que João Miguel Tavares, 39 anos, embala a sua filha recém-nascida, é difícil acreditar tratar-se do mesmo homem que já confessou várias vezes, nos seus livros e crónicas, não achar graça nenhuma a bebés.
Rita tem 20 dias e aninha-se, indiferente às opiniões do pai, no colo do jornalista-cronista-humorista que tanto fala de política no Governo Sombra da TSF e TVI24, como escreve sobre as peripécias da paternidade, na sua crónica dominical no Correio da Manhã.
Ela está tão confortável que adormece.
Ele tenta convencê-la a beber um pouco mais do biberão, enquanto explica que torce para que, à quarta vez, a história possa ser reescrita. “Com todos os meus filhos, o primeiro ano de paternidade foi sempre angustiante.
Não vivenciei a fase de bebé deles de uma maneira que me deixasse satisfeito como pai. Por causa do cansaço, sobretudo, porque eles não dormiam”, explica.
Foi assim com Carolina, há 8 anos, depois com Tomás e Guilherme (de 6 e 4 anos), e dominava-o sempre a mesma sensação: “Não é suposto isto ser mais engraçado?” Para tirar teimas, agora decidiu gozar a licença de paternidade, abrindo espaço na sua caótica agenda ele é também diretor-adjunto da revista Time Out e acaba de lançar outro livro. Está decidido a ser “um pai mais atencioso”, enquanto Rita é bebé.
Homem = Mulher
João Miguel Tavares pertence a uma geração de pais mais participativos e afetuosos, que não só querem como reclamam estar presentes no dia a dia dos filhos. Ele será, este ano, um dos cerca de 65 mil homens em licença de paternidade um número que cresceu 60% na última década. Foi registado um aumento ainda mais significativo na partilha da licença entre homens e mulheres.
Em 2009, ano em que se publicou a lei em vigor, só 0,6% o faziam; em 2011, eram já 21% dos casais. Ou seja, o número de pais a assumirem sozinhos os cuidados dos filhos, durante, pelo menos, 30 dias, cresceu 3 500 por cento.
Estes homens, que querem ser pais a tempo inteiro, têm também relações conjugais mais igualitárias. “O meu avô chegava a casa e não fazia nada. O meu pai já lavava a loiça. E a nós já não nos chega lavar a loiça, temos de fazer tudo. Quem é o homem que, hoje em dia, não sabe mudar uma fralda?”, pergunta o cronista, irónico.
Ainda existirão alguns mas, como nota a socióloga Karin Wall, coordenadora do Observatório da Família e das Políticas de Família, deu-se uma grande evolução em Portugal. Alteraram-se as políticas e “houve também mudanças na família e nas conjugalidades, que se constroem mais em torno de valores como o companheirismo, o diálogo e a partilha das tarefas”. Uma revolução incentivada pela “participação da mulher no mercado de trabalho, que cresceu muito, nas duas últimas décadas”, lembra a investigadora do Instituto de Ciências Sociais.
O facto de os pais de hoje se quererem afastar “daquela velha figura do pai distante, autoritário e pouco afetivo”, que era apenas “o ganha-pão da família “, fez o resto, diz Karin Wall. Subsiste, porém, uma visão algo conservadora do que são as competências do pai e da mãe, sobretudo quando estão em causa crianças mais pequenas, diz. “A mãe ser considerada sempre a principal cuidadora a mais natural e até a única competente, gera alguma ambiguidade nos homens que querem começar a partilhar essa tarefa.”
Sozinho em casa
Tito de Almeida, 34 anos, não hesitou quando a mulher lhe colocou a hipótese de ser ele a ficar de licença em casa, a cuidar do filho recém-nascido. Sancha de Almeida, 30 anos, é assistente social no Instituto de Emprego de Coimbra mas trabalha a recibos verdes, só tendo, por isso, direito a seis semanas de licença de maternidade. Há três anos, quando nasceu Santiago, o filho mais velho do casal, estava efetiva num supermercado Lidl o mesmo onde conheceu o marido, que ali chefia uma secção. Hoje, Sancha gosta mais da sua profissão mas, com um contrato precário, não havia outra saída: teria de ser o pai a assumir os cuidados de Gustavo. Incluindo dar-lhe biberões com leite materno congelado.
“Eu sempre fui jeitoso para estas coisas, achei que não ia ser nada do outro mundo. Tinha, também, a experiência do primeiro filho, já sabia dar os banhos, tudo isso… não senti receio nenhum”, garante Tito. No supermercado ainda ouviu algumas piadas dos colegas “Vai ser lindo, o Tito a mudar fraldas!”, mas os seus chefes, garante, não poderiam ter sido mais compreensivos. Sancha só considerou a hipótese porque conhece bem o homem com quem casou há cinco anos: “É um pai muito dedicado e faz tudo em casa.” Ao fim de cinco meses, a aventura chega ao fim. No último dia da licença de paternidade, Tito resume a experiência numa palavra: “Fantástica!” Depois, olha para o filho, sentado a seu lado, e o sorriso enrola-se num nó apertado.
Os dois acabaram por criar uma ligação tão forte como Santiago criou com Sancha. O sentimento surpreendeu um pouco o pai mas não apanhou a mãe desprevenida.
“Ainda estava grávida e já dizia ao meu marido: o Santiago há de ser o ‘filho da mãe’ e o Gustavo o ‘filho do pai’. E isso é notório, há um grande vínculo entre eles. Se o Gustavo começar a chorar, o pai vai lá e ele acalma-se logo. Se calhar, mais facilmente com ele do que comigo.”
Pai maternal
Nada que surpreenda o pediatra Mário Cordeiro: “Os pais têm uma enorme componente maternal. Durante muito tempo, esteve abafada, era quase vergonha.
Mas têm-na.” No seu consultório da Avenida Guerra Junqueiro, em Lisboa, o médico nota que cresceu o número de pais a acompanhar os filhos às consultas. E, em caso de doença das crianças, já passa tantas declarações a homens como a mulheres, para que justifiquem a falta ao trabalho. “A partilha é cada vez mais natural”, considera.
Ainda são poucos os pais a assumirem a licença principal, como foi o caso de Tito de Almeida, mas o facto de o poderem fazer é, por si só, uma conquista rara, a nível mundial. Este reconhecimento da capacidade dos pais para cuidarem sozinhos dos filhos tornou-se oficial há 13 anos, quando foi criada a primeira licença de paternidade em Portugal. Era apenas de três dias opcionais, que, depois, se tornaram em cinco e, mais tarde, em dez dias obrigatórios.
Mas foi só em 2009 que, da cauda da Europa, passámos a caso exemplar: além do nosso país, só Suécia, Finlândia, Alemanha e Áustria preveem que o pai possa tirar licença exclusiva e remunerada.
A lei concebida no ministério do socialista Vieira da Silva visava promover a partilha dos cuidados aos recém-nascidos e essa missão, como provam as estatísticas, está a ser cumprida. Tal como agora Henrique Medeiros e Silva, 36 anos, em 2011 cerca de 55 mil homens fizeram uso desta lei, ficando 20 dias com os seus bebés (dez dias obrigatórios mais dez facultativos) e 17 mil gozaram o último mês da licença a sós, quando a mãe regressou ao trabalho.
Os dias que Henrique passou em licença de paternidade com José e Manuel, hoje com 4 e 2 anos, e com Teresa, de 5 meses, fazem parte das suas memórias mais preciosas. Para poder acompanhar o crescimento dos filhos, trocou o cargo numa grande instituição, em Lisboa, por um menos aliciante. Perdeu, também, um terço do seu já modesto ordenado de assistente social mas passou a trabalhar ao lado de casa, em Setúbal.
“Quando o José nasceu, o Henrique saía de casa às 7 e meia e o menino estava a dormir; depois, regressava por volta das 8 e, se eu já tinha dado o banho e o jantar. era um sofrimento para ele.
Dizia, com grande desalento: ‘Já perdi outro banho'”, recorda a sua mulher, Ana Júlia, 35 anos. Com o nascimento do Manuel, o pai decidiu mudar de vida.
“Dei por mim a ser incapaz de fazer as duas coisas”, recorda. “Uma colega de trabalho pôs-me a pensar naquilo que estava a fazer e decidi abandonar o meu emprego de sonho, procurar algo mais próximo de casa, mesmo com uma menor realização profissional, mas com uma excelência naquilo que, para mim, é o mais importante, que é estar diariamente com eles.” Teresa é a terceira dos cinco filhos que o casal deseja ter. Fez agora cinco meses, o que significa que, em casa dos Medeiros e Silva, vai haver uma passagem de testemunho: a mãe regressa ao trabalho, como arquivista da Diocese de Setúbal, e o pai volta para casa, de licença. À terceira ronda, não há banho, fralda ou birra que o assuste. Henrique sempre fez tudo pelos filhos, e com imensa alegria: “Só não dei de mamar porque não podia!”
Em aleitamento
Os pais ainda não podem dar de mamar. mas podem dar biberão. Foi por isso possível a Ricardo Lopes, 39 anos, tirar a licença de aleitamento, em vez da sua mulher, durante o primeiro ano de vida dos seus dois filhos, hoje com 6 e 4 anos. A lei permite a transmissão do direito da mãe para o pai e, na Câmara Municipal de Loures, onde Ricardo trabalha como engenheiro do Ambiente, não houve objeções a que fosse ele a beneficiar destas duas horas por dia de dispensa. “A minha mulher tinha uma atividade mais absorvente que a minha, com muitas viagens. Quando percebi que poderia ser eu a usar essas horas para acompanhar mais as crianças, não hesitei.” Reconhecendo que teve “a sorte de ter um chefe com uma mente muito aberta”, Ricardo notou respostas diferentes dos seus colegas de trabalho.
“Fui calorosamente recebido pelas mulheres como um exemplo, deram-me força e prestaram-me todo o apoio. Foi uma reação que não vi nos homens. Passava o dia a ouvir: ‘Então, como é? Hoje tens muito leite, tens pouco?'” O facto de ser a mãe a amamentar é ainda muitas vezes usado como argumento para justificar uma maior ligação ao bebé. Mas Lígia Monteiro, professora de Psicologia no ISCTE, em Lisboa, autora de um pós-doutoramento nos EUA em vinculação paterna, explica que “a amamentação é um contexto importante de interação entre a criança e quer a mãe quer o pai” mas “não é pelo facto de a mãe amamentar que a criança se vai vincular a ela”.
Na casa de João Miguel Tavares esta realidade é bem conhecida a sua mulher é médica. E passa, de bom grado, o leite materno para um biberão, para que seja o pai a cuidar da filha mais nova.
Agora que a licença de paternidade chegou ao fim, Teresa Mendonça, 40 anos, vai sentir falta do apoio. “Ele ajuda, no caso dos mais velhos, mas só começou a fazê-lo a partir de certa idade “, explica. “Pela primeira vez, o João ficou durante a noite a apoiar-me, a pôr a criança a arrotar, a mudar a fralda. o que dá imenso jeito a uma mãe que está cansadíssima.” De regresso ao frenesim da sua vida profissional, João passará a ver a filha mais nova sobretudo à luz dura das madrugadas, quando o corpo pede cama, embora Rita reclame colo. Será que a licença de paternidade contribuiu para mudar a sua opinião sobre bebés? Numa crónica recente, deu a resposta: “Para já, a velinha que todas as noites acendo a todos os heterónimos de Nossa Senhora que visitaram o planeta Terra está a resultar: a Rita tem-nos dado umas noites santas. Com sorte, talvez isto seja o princípio de uma bela amizade.”