Pela primeira vez, uma família recusou o tratamento de uma criança com quimioterapia, desobedecendo a médicos e ao tribunal. Os pais de Safira, uma menina com um tumor renal, queriam a cura não apenas a sobrevivência da filha. Correram o mundo em busca de alternativas e deram início a uma revolução que poderá mudar a forma como se decidem os tratamentos médicos de menores em Portugal
“Parabéns a você, nesta data querida…” A família canta, juntando-se à volta da grande mesa da sala de jantar. À cabeceira, Safira sorri, ao ver o pai aproximar-se. Ele avança com um tosco bolo de aniversário nas mãos. É de bolacha sem açúcar, um mimo cozinhado para a filha mais nova, nessa tarde.
A saúde da menina é frágil, como a luz trémula das cinco velas que celebram a sua curta vida. Está magra, muito magra, com apenas 11 quilos. E careca. Sopra uma, duas, quatro vezes para, por fim, conseguir apagá-las. Sorri, triunfante, acarinhada pelas palmas dos pais, dos tios e dos avós, enquanto agarra na mão de Melissa, a irmã seis anos mais velha, e a aperta contra o peito, como quem pede um desejo.
Estamos a 30 de setembro de 2010. Safira acabou de fazer quatro sessões de quimioterapia e uma cirurgia de urgência, para extração do rim direito. Há pouco mais de um mês, o cabelo baloiçava-lhe pelas costas, duas grandes tranças de ouro saltitantes. Nessa altura, esta família nem imaginava como, de um segundo para o outro, as suas vidas iriam mudar.
O LUTO ANTECIPADO
“Mamã, precisas de me levar ao médico.” Safira Íris, que deve o nome não aos seus olhos, de um profundo azul, mas a uma mensagem de “seres da floresta” que a mãe ouviu num sonho, insiste várias vezes. Gabriela Freitas, 40 anos, psicóloga de formação, estranha a conversa (e a teimosia), até porque a menina não tem sintomas de doença nem se queixa de dores. Ainda pensa tratar-se de uma estratégia para não ir à escola. Mas muda de ideias quando a filha lhe pede para irem ao final do dia. “Que las hay, las hay…” E foram.
Sem saber o que procurar, a médica de família observou o corpo todo de Safira. Ao apalpar a barriga, sentiu o “fígado aumentado”, pediu uma ecografia e depois uma TAC. A mãe recebeu os resultados numa sexta-feira, na Póvoa de Varzim, onde tinha ido visitar o irmão. Preocupada, decidiu consultar de urgência um conhecido da família, o cirurgião vascular Roncon de Albuquerque, com consultório no Porto.
E é nesse segundo, em que o olhar do médico deixa de observar um exame à transparência para pousar os olhos no rosto aflito da mãe, que tudo muda.
“A sua filha tem um tumor no rim. Um tumor de Wilms. E com este tamanho, é um milagre não ter metástases. É para tirar já. É para tirar ontem!” Gabriela fica em choque. Agarra imediatamente no telefone para ligar ao pai de Safira, Gabriel Mateus, 34 anos, que anda entre Lisboa e Exeter, no Sul de Inglaterra, onde prepara uma tese de mestrado em História das Religiões. Os dois estão separados há quatro anos, Gabriela casou-se, entretanto, com Nuno Franco, 38 anos, professor universitário de Matemática.
“A vida redesenha-se naquele momento”, assume o pai de Safira. “No espaço de uma hora, as prioridades alteram-se totalmente.” Na sua cabeça multiplicavam-se as dúvidas, os medos. “Num primeiro momento, vivi uma espécie de luto antecipado”, confessa. Ouve-se a palavra “cancro” e “mesmo que na nossa mente queiramos antecipar um horizonte de esperança, ela deriva inevitavelmente para a ideia de perda… e isso é muito difícil”.
EUROPA-AMÉRICA
Foi em 23 de julho de 2010, ao final de um dia tórrido de verão, que receberam a notícia que lhes gelou o coração. A menina tinha 4 anos – este tipo de tumores surge, sobretudo, entre os 5 e os 6 anos, e é relativamente raro, atingindo cerca de dez crianças por ano, segundo o diretor clínico do Instituto Português de Oncologia (IPO) de Lisboa, Nuno Miranda.
Depois da conversa com Roncon de Albuquerque, Gabriela convence-se de que a sua filha terá de ser operada o mais depressa possível. Ele disponibiliza-se para a receber na segunda-feira seguinte no Hospital de São João, no Porto, onde é chefe do departamento de Cirurgia Vascular.
Mas, nessa manhã, a família nem chega a ver o médico, sendo encaminhada para a Oncologia Pediátrica, onde lhes explicam que a operação apenas se realizará daí a um mês, depois de quatro semanas de quimioterapia. É isso que estipula o protocolo clínico europeu.
Novo choque. “Fiquei muito impactada com o que o dr. Roncon me tinha dito… a operação era ‘para ontem’ e eu só queria tirar aquela massa densa e negra de dentro da minha filha”, recorda Gabriela. “Houve, com certeza, um mal-entendido”, diz agora Roncon de Albuquerque, negando ter-se oferecido para operar a menina. “Eu apenas diagnostiquei e encaminhei para a Oncologia Pediátrica”, assegura.
Por uma questão de conveniência, dado que vivem na capital, os pais de Safira procuraram então assistência médica no IPO de Lisboa. E foi aí que perceberam que o que pediam a operação imediata é o procedimento previsto no protocolo americano. Nos EUA, entende-se que o tumor deve ser extraído e enviado para análise em “estado puro”, sem adulterações causadas pelo tratamento. Só depois de analisado se decide qual o tipo de quimioterapia a aplicar e por quanto tempo. Na Europa, opta-se por diminuir primeiro o tumor com quimioterapia, o que facilitará a cirurgia.
Após a sua remoção, o doente é sujeito a mais quimioterapia, de acordo com os resultados das análises. As taxas de sobrevivência dos dois protocolos são muito aproximadas, com uma ligeira vantagem de 2% do europeu.
Os pais queriam operar a menina, no privado, e depois levá-la ao IPO, para ser ali seguida. Mas os médicos não gostaram da ideia. A diretora de Pediatria, Filomena Pereira, não podendo recusar o seguimento da criança, deixou claro, segundo Gabriel Mateus, que o faria “de má vontade”. A médica admite que “esticou o dedo” durante a discussão com o pai, por este “pôr em causa a seriedade” do seu trabalho. O certo é que o caldo ficou entornado logo ao primeiro contacto.
As relações entre a família de Safira e o corpo clínico do IPO seriam, nos meses que se seguiram, cada vez mais tensas.
PENSAMENTO POSITIVO
Resignados, sem meios para levarem a filha para os EUA e sabendo que cada dia contava na recuperação da menina, os pais entregaram-se aos cuidados do IPO de Lisboa. Safira fez a primeira de quatro sessões de quimioterapia pré-operatória a 27 de julho de 2010, usando duas drogas relativamente leves, em relação a outras, muito mais tóxicas: vincristina e actino micina. Ainda assim, para os pais, adeptos de uma vida saudável e o mais livre de químicos possível, era uma opção muito dura. A menina, vegetariana desde a nascença, nunca tinha tomado medicamentos que não fossem homeopáticos. Nem sequer fora vacinada uma opção legal mas polémica, que logo valeu aos pais o rótulo de “fanáticos alternativos”.
A criança reagiu mal aos tratamentos. No espaço de uma semana, perdeu toda a vida e energia dos seus 4 anos. “A primeira sessão de quimioterapia foi muito dramática, ela praticamente não se mexeu mais. De um momento para o outro, ficou inanimada. Só chorava”, recorda a mãe.
Talvez para melhor suportar o que se passava consigo, Safira pediu aos pais para filmarem todos os passos do processo. Depois, revia as gravações, como quem tenta encontrar um sentido para tamanho sofrimento. Fazia também muitas perguntas. Nas respostas, os pais procuraram passar sempre a verdade, mas nunca usaram as palavras “doença”, “tumor”, “cancro”, “morte”.
“Dissemos-lhe que tinha um caroço no rim e que era preciso fazer tratamentos para ele sair”, conta a mãe. Quando a menina soube que o “caroço” se chamava Wilms passou a tratá-lo pelo nome, como se fosse um amigo. “Devia ser estranhíssimo olhar para nós”, reconhece o padrasto. “Durante os tratamentos, estávamos sempre na palhaçada, muito alegres e felizes”, recorda. Nas filmagens familiares, essas gargalhadas sobrepõem-se ao choro constante que se ouve em fundo: o lamento de outras crianças que também faziam quimioterapia na mesma sala do IPO.
Desde a primeira hora, os pais entenderam que teriam de ajudar a filha naquele processo, rodeando-a com o máximo de carinho possível. Em tudo procuraram ver algo de bom: o líquido amarelo que entrava nas suas veias eram “raios de sol”, os mil e um exames e ecografias eram um privilégio que só “as senhoras com bebés na barriga” costumam ter, a careca a aparecer resultava de uma espetacular “chuva de cabelos”. Safira passou a ser a prioridade de todos e, por isso, Gabriel deixou a sua casa e mudou-se para o sótão de Nuno e Gabriela, onde ainda hoje reside. Os três pararam de trabalhar, dedicando-se a tempo inteiro ao tratamento e acompanhamento da menina.
Findas as quatro sessões semanais de quimioterapia, chegara finalmente o dia que a mãe de Safira tanto desejara aquele em que se despediriam do “amigo” Wilms. A operação implicou a extração do rim direito e foi realizada no hospital de D. Estefânia, a 26 de agosto de 2010.
A mãe cantou-lhe ao ouvido durante a viagem de maca pelos corredores, até entrar na sala de operações, o pai esteve de mão dada com ela, durante todo o procedimento. Na maca, havia ainda espaço para um gigantesco golfinho cor–de-rosa, o seu animal preferido.
Quando a menina acordou da anestesia, todos sentiram que despertavam de um pesadelo. O pior já tinha passado, pensaram. Na verdade, o calvário estava apenas a começar.
DISCUSSÃO ACESA
O telefone tocou e o coração da mãe de Safira tremeu: era Gabriela Caldas, a médica assistente do IPO, com os resultados das análises ao tumor. As notícias não eram boas. Apesar de não ter invadido o rim, o tumor possuía uma predominância de blastema, ou seja, mais de 90% das células tumorais estavam ativas.
O IPO classificou-o como de “alto risco” e a médica explicou a necessidade de reiniciar a quimioterapia o quanto antes. Ficou marcada a primeira sessão do novo ciclo de tratamento para 5 de setembro e uma consulta para a semana seguinte, a fim de responder às questões dos pais. Só então perceberam que eram propostas 27 sessões de quimioterapia, com três drogas diferentes e uma delas, a doxorubicina, extremamente agressiva.
Gabriela ouvia o ex-marido questionando os médicos e, no seu coração, tinha apenas uma certeza: “Aquele não era o caminho, o meu instinto maternal dizia-me que ela não iria resistir a mais seis meses de quimioterapia… aliás, perguntei logo à medica: ‘acha que a minha filha aguenta?'” Nesse dia, iniciaram uma investigação exaustiva sobre os tratamentos disponíveis em todo o mundo. Começaram por procurar os estudos que suportam o protocolo clínico seguido na Europa, descobrindo que este tem uma base pouco sólida. O padrasto, professor de Matemática, ironiza: “Não sou especialista em Estatística mas parece-me que uma amostra de 11 casos não é cientificamente séria.” No estudo SIOP 9, dos 362 casos analisados com quimioterapia préoperatória, apenas 11 dizem respeito a tumores de Wilms em estádio I, sem anaplasia e com blastema, como era o caso de Safira. Desses, cinco recaíram (e dois morreram) depois da quimioterapia pós-operatória. Além disso, estes resultados foram obtidos sem terem sido estudados “casos desfavoráveis”, como eram os que apresentavam metástases.
O diretor clínico do IPO, Nuno Miranda, desvaloriza a fragilidade da amostra e afirma que, com quimioterapia, Safira teria, pelo menos, 80% de hipóteses de sobrevivência. Gabriel não se deixou impressionar pelos números: “Eu não quero que a minha filha sobreviva durante cinco anos… Quero que ela viva, e com saúde, por mais 40, 50, 80 anos.” Na cabeça dos pais, pairavam os fantasmas dos efeitos secundários reportados (problemas cardíacos, infertilidade, insuficiência renal, entre outros), demasiado sérios para que entendessem a equação risco/benefício apresentada pelo IPO. “O mais grave é que só tivemos conhecimento dessas consequências lendo estudos complexos e arrancando a muito custo alguns esclarecimentos aos médicos, quando nos deveria ter sido tudo explicado à partida, para que pudéssemos, de facto, dar um consentimento informado”, contesta Gabriel. A diretora de Pediatria do IPO, Filomena Pereira, reconhece que é prática corrente não transmitir toda a informação aos pais das crianças. “Seria bárbaro”, justifica.
O CASO DE LAURA
Safira faltou ao tratamento seguinte. Os pais pediram tempo para estudar outras opções. Consultaram oncologistas em Portugal, foram a uma conceituada clínica de Navarra, em Espanha, pediram uma segunda opinião à organização americana Best Doctors. Todos os especialistas apontavam para a necessidade de fazer quimioterapia, com ligeiras variações no tipo de drogas e no número de sessões o IPO sugeria 27 quando o estudo SIOP se baseia em 18 ciclos. Nuno Miranda justifica que a diferença resulta de se querer “elevar a taxa de sobrevivência até aos 95 por cento”.
Foi então que Gabriel descobriu o caso de Laura Boomsma, na Austrália. Há dez anos, Laura teve o mesmo tumor que Safira, no mesmo rim e com a mesma idade. Os seus pais recusaram a quimioterapia pós-operatória e conseguiram ganhar em tribunal o direito a escolher o tratamento para a filha um caso único no mundo. A australiana tinha viajado para Inglaterra, para ser seguida pelo médico Julian Kenyon, e, uma década depois, mantém-se bem de saúde.
Havia um caminho a seguir, um outro caminho que não aquele que o IPO propunha. E foi isso que Gabriel comunicou ao corpo clínico do hospital, numa reunião muito tensa. Descobriu então que, perante a lei, os pais não podem fazer essa opção. “Somos obrigados a assinar o consentimento ‘informado’ para um tratamento, mas deixamos de ser responsáveis pela saúde dos nossos filhos se discordarmos dos médicos: aí, passamos automaticamente a pais negligentes”, lamenta.
Nuno Miranda avisou que iria denunciar o caso à Comissão de Proteção de Menores. “Ficámos à espera de ser chamados, julgámos que quisessem saber porque agíamos assim”, nota a mãe. “Mas o único contacto que tivemos foi da assistente social do IPO, que nos ameaçou dizendo que ‘isto não ia ficar assim’ e que poderíamos ser acusados de homicídio por negligência.” Assustados, os pais procuraram um advogado.
Dois dias depois, já o Tribunal de Menores tinha emitido uma decisão, sem os consultar: a guarda da Safira passaria provisoriamente para o IPO, para que fizesse a quimioterapia. Se os pais a acompanhassem ao hospital, a vida seguiria normalmente; se não, a menina ser-lhesia retirada e internada compulsivamente.
“Como começaram a faltar aos tratamentos marcados, a polícia foi mesmo a casa da mãe”, em Casal de Cambra, Sintra, soube o advogado Leite da Cunha, mais tarde. Mas a família já tinha saído de casa. Andava pelo mundo, em busca de uma cura para Safira.
PAIS FANÁTICOS?
O despacho da juíza que assina o processo de promoção e proteção, a que a VISÃO teve acesso, acaba por repetir, tomando como boa, a informação facultada pelo IPO: que a criança estava em risco de vida e possuía “95% de hipóteses de cura” com quimioterapia; que os pais são contra tudo o que é químico; que nunca levaram a filha ao médico e nem sequer a vacinaram.
Além dos erros factuais (não havia risco de vida imediato, há 80% de hipóteses de sobrevivência a cinco anos, não se pode falar de “cura” e a menina ia regularmente a um médico convencional), os pais foram retratados como se pertencessem a um culto estranho e equiparados às Testemunhas de Jeová são apenas de membros desta igreja os casos que chegam a tribunal para que se retire temporariamente a guarda aos progenitores por questões de saúde, uma vez que se opõem à realização de transfusões de sangue. Nestes casos, invocam-se os artigos 91.º e 92.º da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Risco, considerando-se que existe “perigo atual ou iminente para a vida ou para a integridade física” do(a) menor.
O diretor clínico do IPO mantém que havia (e há) um efetivo risco de vida, no caso de Safira. “Os estudos existentes [dos anos 50] dizem-nos que, sem quimioterapia, ela tem 50% de hipóteses de recair. Os pais entenderam correr esse risco, mas eu acho que ninguém tem o direito de jogar à roleta-russa com a vida de uma criança.” Para Nuno Miranda não existem, por isso, diferenças entre as convicções dos pais de Safira e as crenças de “fanáticos religiosos”.
A médica Filomena Pereira reforça a ideia: “Eles pertencem a essas correntes que pretendem salvar-nos da civilização.” O clínico Miguel Oliveira e Silva, presidente do Conselho para as Ciências da Vida, lembra que “os pais não são donos dos filhos, mas os médicos também não são donos da verdade”. Neste caso, considera que “deveria ter havido mais respeito pela vontade dos pais” e pelo direito a declinar uma terapia e escolher outra. “Não se tratava de recusar o tratamento convencional e ficar à espera de um milagre, mas de optar por outro, dito alternativo, sobre o qual a maioria dos médicos tem uma grande ignorância e um desprezo quase arrogante.” Por outro lado, considera ainda Miguel Oliveira e Silva, “deveria ter havido outro cuidado no consentimento informado, que deve ser o mais pormenorizado possível, escrito e compreendido por quem o assina”.
Neste caso, o IPO não só iniciou o tratamento pós-operatório com uma autorização verbal, como, depois, se limitou a entregar um esquema da terapia, detalhando o número de sessões de quimioterapia a realizar, sem mencionar os riscos associados. Miguel Oliveira e Silva lamenta: “A prática do consentimento informado ainda é insuficiente em Portugal e, muitas vezes, é feito para defesa da instituição e dos médicos.”
UMA FAMÍLIA NO ‘EXÍLIO’
Depois da última reunião no IPO, em novembro de 2010, a família partiu, como diz Gabriel, para o “exílio”. Conscientes de que podiam perder a guarda da filha, nunca estavam descansados. “Não saía de casa sem olhar para um lado e para o outro”, recorda, revoltado. “Fomos culpados até prova em contrário”, diz, negando que a recusa da quimioterapia pós-operatória se deva a questões de fé. “O utente não tem de ser acrítico e acéfalo”, indigna-se. “No IPO é que encontrei um discurso absolutista, que me lembrou a Inquisição: a diferença é que antes pugnavam pela salvação da alma e agora pela salvação do corpo.” Atualmente, com o acesso à informação tão facilitado pelas novas tecnologias, este tipo de conflitos é cada vez mais frequente, embora, em tribunal, o caso de Safira se revele único, sem precedentes. A família gostava que o seu processo servisse de exemplo e abrisse caminhos neste debate que entende ser urgente lançar e, eventualmente, conseguisse alterar a lei que enquadra o tratamento médico de menores em Portugal, à semelhança do que está a fazer a família Navarro, nos EUA. Após tentarem tratar o filho com métodos alternativos, os Navarro foram obrigados a aceitar a quimioterapia e acabaram por ver o menino morrer devido à toxicidade da terapia “legal”.
“Às vezes é preciso que alguém dê o primeiro passo para a multidão começar a andar”, diz o empresário Fernando Freitas, 47 anos, tio de Safira, que suportou os custos do tratamento da sobrinha e pretende agora financiar a criação de uma fundação, para ajudar pais em situações semelhantes. “A ideia é dar apoio moral, psicológico, financeiro”, explica Gabriela. “Mas sobretudo disponibilizar informação, para que todos possam escolher os seus caminhos terapêuticos em consciência.” “Costumo dizer que o Gabriel salvou a Safira”, continua Gabriela, “porque foi incansável e correu o mundo à procura de uma solução, mas sem o apoio do meu irmão nunca conseguiríamos ir ao estrangeiro.” Ao todo, precisaram de 20 mil euros para fazer as malas e partir primeiro para Londres e depois para a Alemanha, seguindo o esquema terapêutico proposto por Julian Kenyon, um clínico da área da Medicina Integrativa, que concilia as práticas convencionais com as alternativas, como a homeopatia ou a acupuntura. Contudo, a terapia pouco tinha de alternativa, apesar de ser considerada experimental: trata-se de uma vacina de células dendríticas, uma técnica em que células específicas do sistema imunitário são expostas ao tumor retirado do paciente (foi pedida uma amostra ao IPO), multiplicadas em laboratório e depois reintroduzidas no organismo.
Estas células tornam-se, assim, numa espécie de corpo de elite que patrulha o organismo, em busca de metástases.
O cientista que as descobriu, o alemão Ralph Steiman, recebeu, este ano, o Prémio Nobel da Medicina (ver caixa).
Kenyon não é contra a quimioterapia mas, quando os pais recusam esse caminho, entende que “os médicos não podem lavar as suas mãos”. Após estudar o sistema imunitário da menina, considerou até que “a quimioterapia só iria agravar o desequilíbrio já existente” e que a vacina tumoral seria a melhor opção.
Recomendou que o tratamento fosse feito na Alemanha, com o cientista Thomas Nesselhut, e escreveu um relatório para ser entregue no tribunal português, provando que a criança se encontrava sob acompanhamento de clínicas médicas idóneas.
Passaram-se, entretanto, cinco meses desde a operação de Safira. O advogado da família questionou a fundamentação do IPO, para tanto tempo depois ainda querer aplicar o protocolo, que tem regras muito específicas e prevê o início dos tratamentos logo após a cirurgia.
O diretor clínico, Nuno Miranda, desistiu então do processo: “Não temos qualquer sentimento persecutório em relação aos pais e já não fazia sentido, de facto, aplicar o tratamento.” A família foi nessa altura entrevistada por assistentes sociais e psicólogas do Estado e ouvida por outra juíza, no Tribunal de Menores de Sintra.
O processo acabou arquivado em março último, com desejos de “felicidades”.
VACINA SEM PATENTE
Sem amarras legais, partiram para realizar o tratamento proposto, na Alemanha. Sobre esta opção, o diretor do IPO é peremptório: “Fiz investigação nessa área, na Holanda, sei que os estudos são muito promissores… em ratos. Do que conheço, não há evidências da sua eficácia no ser humano.”
Safira recebeu a primeira de quatro vacinas em abril, e a última já no final de agosto. Reagiu bem e o prognóstico de Julian Kenyon é que “está em total remissão e não terá recaídas”. Embora, como sublinha, não existam estudos científicos suficientes para suportar a sua afirmação.
“Apesar dos resultados fabulosos que vamos obtendo, com pacientes terminais a sobreviverem mais de dez anos, estes tratamentos estão pouco estudados, porque não é possível patenteá-los”, explica Kenyon. Thomas Nesselhut, que dedicou a sua vida à investigação das células dendríticas e chegou a trabalhar com o mais recente Nobel da Medicina, recomendou nova vacina daqui a seis meses e outra dentro de um ano. Terão de ser realizados exames de rotina para comprovar que Safira está livre do cancro, ao longo dos próximos cinco anos. Mas o prognóstico, diz, “não podia ser melhor”.
A menina continua rodeada de mil cuidados, sobretudo na alimentação. O pai passa quatro horas por dia a fazer comida, tendo como bíblia o livro Alimentação contra o Cancro e os conselhos do neurocientista David Servan-Schreiber, no best-seller Anticancro. Faz sumos de brócolos, couve, beterraba, maçã e cenoura pela manhã, sopas de cereais, algas e leguminosas com um toque de corcumina e pimenta, bolos sem farinhas refinadas ou açúcar, adoçados apenas com fruta uma alquimia de ciência e amor que visa manter a doença à distância.
A 30 de setembro, Safira fez 6 anos. Agora vai à escola “a sério”, os dentes de leite ameaçam cair e os caracóis começam a emoldurar o seu rosto, novamente.
A sua festa foi já muito diferente da do ano passado. Os pais voltaram a sorrir à sua volta, com vontade. E em vez de um golfinho de peluche, teve a seus pés o Hamlet, um golfinho de verdade: a prenda de aniversário foi uma visita ao Zoomarine, para nadar com estes bons gigantes.
Nessa manhã, quando acordou, correu a perguntar:
Pai, pai, já estou mais alta?
Está com pressa de crescer, a preciosa Safira. Depois de um ano de calvário, é essa alegria transbordante da menina que dá energia aos pais. Continuam debruçados sobre um bolo sem açúcar, é certo, mas já cantam com renovado empenho:
“… muitas felicidades, muitos anos de vida!”