Luto é Deus entrar em casa, tirar tudo do lugar e depois dizer: “Agora arrume.” E eles conseguiram.
É sobrarem cadeiras quando, à mesa, se celebra a vida. “Parece que tiram tudo dentro de nós e nos deixam vazios.”
É envelhecer. Igual a flor murcha. “Mas depois vem alguém e vai regando…”
É ter uma dor que não se apaga. “No início é forte, mas depois transforma-se numa saudade.”
É saber que os cedros secam quando uma casa fica vazia. “Mas há sempre flores a querer abrir.”
Os lutos colaram-se à pele e às palavras daqueles que perderam familiares e amigos numa das maiores tragédias nacionais. Às 21 horas e dez minutos do dia 4 de março de 2001, noite de temporal, três automóveis e um autocarro que regressavam a Castelo de Paiva, após uma excursão às amendoeiras, mergulharam no vazio… e no Douro enraivecido. Em segundos, a ponte de Entre-os-Rios, a velha Hintze Ribeiro, cedeu. E 59 pessoas morreram nas águas indomáveis e frias, quase à porta de casa. A maioria dos corpos nunca foi resgatada.
Das margens, “ainda hoje se atiram flores ao rio”, sabe a investigadora Cristiana Ferreira, que registou os silêncios e as conversas com familiares das vítimas, numa tese sobre o luto e a tragédia: “Esta gente agarra-se ao passado e nem sempre consegue dar o salto. Houve muitos apoios, mas faltaram terapias de grupo entre os paivenses.” Um deles disse-lhe: “Se eu achasse que a morte é o fim, ficava maluco.”
Dilma Faria não endoideceu, mas pensou que sim.
“Andei por muitos lugares, mas não me recordo”, lamenta-se esta mulher de 50 anos, de baixa estatura e algo tímida.
Perdeu seis familiares na tragédia: os pais, quatro primos. Fazia perguntas sem resposta, devolvidas pelo eco: “Porquê nós, neste lugar miserável?!”
Passaram três semanas até se lembrar dos vivos: dela, das filhas. É das poucas que recusou medicar-se. Quis sentir as dores. E arrastando-as, andou por ali acudindo a outros.
Auxiliar de educação em Oliveira do Arda, atirou-se à vida, rodeada das crianças que, há dias, lhe cantaram os parabéns, cortaram o bolo de aniversário e perguntaram: “E os teus pais, não vêm?” E ela a conter as lágrimas.
A sua é uma história simples: respirou fundo, seguiu em frente, ainda que não haja dia em que não lembre. Para se entreter, fez cursos e cursinhos, uns atrás dos outros: Culinária, Pastelaria, Informática, Higiene e Segurança. Uma das filhas cumpriu, entretanto, o sonho da avó, falecida, e tornou-se enfermeira. A outra está em Direito. Encaminhadas as duas, Dilma pensará finalmente em… Dilma: “Educadora, assistente social, dê lá por onde der, vou cumprir o meu sonho.” As raízes podem esperar. “Os portugueses são um bocado tacanhos, agarram-se aos lugares por causa da casa.” Ela agora quer ver mundo, nem que seja em ponto pequeno. Enquanto há tempo. Não vai ficar a olhar para trás, moendo e morrendo de memórias.
DAS ENTRANHAS À SUPERFÍCIE
Em Castelo de Paiva, vila de 17 mil almas, a dificuldade não é o passado. É enfrentar o presente e o futuro de olhos nos olhos.
Em plena ressaca da tragédia de 2001, a terra sentiu a solidariedade nacional, o luto coletivo e o Governo por perto. “Andávamos seguros e aconchegados”, recorda Dilma.
Houve dias, semanas seguidas, em que as freguesias trataram ministros e psicólogos por tu, à soleira da porta. O concelho foi transformado num estaleiro de obras e arranjos nunca vistos. Depois, construíram-se duas pontes e um anjo gigante no lugar da tragédia para velar os mortos, olhando o rio. O Estado pagou as indemnizações, 50 mil euros por familiar, outros milhares por danos morais. Lavada a consciência, desmontado o cenário, o pano voltou a descer.
“Ficaram os grandes negócios dos lares e centros sociais geridos por pombinhas, pombinhos e outros passarões. E ficou também a síndrome dos coitadinhos, como se esperássemos sempre por alguém para cuidar de nós”, ironiza um funcionário de uma agência bancária do centro da vila. Uma professora da terra só precisou de levar os filhos a uma consulta no Porto para sentir a indignação. “São de Castelo de Paiva? Coitadinhos…”, comentou o médico.
A ponte uniu o País, nem sempre uniu os paivenses. A travessia da existência é outra coisa. “Aquela foi uma tragédia do momento, mas outras tragédias foram acontecendo. E acentuaram-se”, explica Giselda Neves, presidente da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens em Risco, em Castelo de Paiva. A paisagem, a beleza do rio, a ruralidade são sinónimos de qualidade de vida, “mas só para quem vê de fora”. Nas entranhas do concelho, perduram “situações de violência doméstica, de casais desempregados e alcoolizados, e de baixo nível de educação e conhecimento. As condições sociais agravaram-se”, testemunha a responsável daquela instituição, atualmente a acompanhar 70 menores em risco. Se é verdade que não faltam apoios e os mais novos permanecem mais tempo na escola, também é real o aumento de subsídios escolares a cada vez mais alunos. Uma Academia de Música de prestígio internacional e pequenas ilhas de associativismo cultural não fazem a primavera. “O sonho dos mais jovens é casar, comprar o seu carrito e sair daqui. O que há para fazer, para criarem raízes? A base social desta terra continuam a ser as festarolas de freguesia e pouco mais”, crê Giselda Neves.
Na confeitaria Tropicália, barómetro diário do pulsar paivense, as mesas entrelaçam conversas de dificuldades e desalentos.
Entre um galão e o som de fundo do MCM, o canal musical de TV francês, também se ouve o tricotar de maleitas, enquanto os mais novos namoriscam e dedilham mensagens de telemóvel a um ritmo frenético. Na porta do lado, os funcionários da loja Tuga Mobile notaram que os carregamentos passaram de 20 euros para cinco euros. Mas este ainda é um negócio com rede: “Um telemóvel bom já se compra por 15 euros. E, a partir do 4.° ano, é normal os miúdos terem um”, conta Sónia Pinto, ao balcão.
Atravessa-se o centro da vila e, do lado de lá do jardim, a notária Isabel Queirós só vê futuros – e negócios – adiados. “Começou a notar-se há dois anos. O preço dos registos aumentou muito, o poder de compra baixou e as leiras estão aí, ninguém lhes pega”, desabafa, enquanto Emília Rocha, topógrafa, vai acenando com a cabeça, em concordância. “Aqui é tudo mais saudável, mas quem quer viver num sítio destes?”
FUTURO POR ESCREVER
Chegar a esta terra, vindo do Porto, demora uma hora.
De autocarro, duas, passando por Penafiel.
Pouco mais de 40 quilómetros fazem-se por estradas e curvas onde os veículos quase roçam uns nos outros. A paisagem, aqui e ali deslumbrante, junta termas, velhas casas senhoriais, mulheres carregando lenha na beira da estrada, carros de bois atravessando o caminho e restaurantes anunciando “a melhor lampreia”. Duas horas dão para pensar no óbvio: vai-se mais rápido a Barcelona de avião. Se precisarem de um hospital com urgência, os paivenses demoram, no mínimo, 30 minutos a chegar ao Padre Américo, em Penafiel. E mais de uma hora ao São Sebastião, na Feira.
Muitos fogem. Por assim dizer.
Andam por Espanha, na construção civil, ou onde o trabalho chame. Mas chama cada vez menos.
Nunca o desemprego pareceu tão certo como a morte e os impostos. Fábricas que eram o sustento de centenas de famílias – Clark’s e Glovar à cabeça – fecharam. A Cerne vive dias tremidos. Há dois anos, antes da crise internacional se acentuar, já os números caseiros eram preocupantes. Em Castelo de Paiva, a média salarial pouco passava dos 600 euros e havia mais de 500 pessoas com Rendimento Social de Inserção. As pensões distribuídas no concelho não chegavam a 300 euros mensais e o subsídio de desemprego era atribuído, em média, durante sete meses.
Os contrastes, esses, estão separados por meia hora de carro: aqui, Castelo de Paiva com um desemprego galopante, o dobro da taxa nacional. Ali, Arouca, abaixo da média do País.
Em 2001, corria agosto, Dmytro Bereza, de 33 anos, uma estaca de ucraniano, veio para estas bandas à procura de trabalho, tão complicado de encontrar como uma mina de ouro. Deixou as proximidades de Kiev e instalou-se na freguesia mais martirizada pela tragédia, cujo nome soava como um grito de revolta: Raiva. Feliz ou infelizmente, Dimas, como foi rebatizado pelo povo, “ainda não falava português”. Nem por isso demorou a ler ou perceber a profundidade dos prantos, lamúrias e desencantos.
De tragédias, ele também teria as suas para contar. Sem mortos, mas gravadas em carne viva.
Deixara a Agronomia para trás e entregara-se nas mãos das sinistras redes de imigração clandestina. “Quando cheguei, ficámos quatro num pequeno apartamento. Davam 50 euros por mês para todos. Comia arroz com arroz.”
Então, as gentes de Paiva mostraram a fibra de que também são feitas: ajudaram-no, acolheram-no. Dimas carregou móveis de cozinha, montou casas de banho e tomou conta de galinhas, num aviário. Hoje, trabalha num negócio de componentes para automóveis por 500 euros ao mês. Nele, como no chão que agora pisa, as marcas das dificuldades e dos momentos mais tristes “vão notar-se sempre”. Mas Dimas confia no tempo e, apesar de tudo, não pensa voltar. Muito menos agora, que tem emprego e amigos do peito, e já conseguiu ler O Velho e o Mar.
A CRIANÇA E O RIO
Há, de facto, algo de Hemingway nas páginas das grandezas e misérias dos paivenses. Lutas pela vida travadas, por vezes, em plena solidão e esquecimento, desafiando a Natureza, poderes imensos e até as sentenças do tempo. Do apogeu e queda do couto mineiro às desgraças da incúria, da Engenharia e da falsidade dos homens, estas gentes poderiam contar, por gerações, histórias de superação até ao limite das suas forças.
Ana Leonor nada sabe, ainda, sobre a fadiga desumana e batalhas pela sobrevivência. Nos seus livros de escola faltam capítulos para explicar, à luz dos acontecimentos da sua terra e da filosofia de um velho pescador, que um homem pode ser destruído, mas nunca derrotado.
Ana Leonor fará dez anos dentro de alguns meses.
Nasceu na Raiva, quando tudo era ainda choro e luto.
Ana, nome da mãe. Leonor, nome da avó, desaparecida na queda da ponte.
Pela mão do pai, Augusto Moreira, era ela quem ia levar flores ao monumento de homenagem às vítimas. A criança e o rio, frente a frente. Ela sem perguntas, ele sem respostas.
Só pequenas evocações.
“O que é que a avó fazia de bom?”, pergunta o pai.
“Sumo de maracujá e sopa”, responde ela.
O mundo de Ana Leonor é o ballet, o teatro, as telenovelas e os trabalhos de casa. Às vezes, quando tem de estudar o Douro, lá vem a pergunta: “O que aconteceu?”
E o pai explica, como pode, “o ciclo da vida”.
À noite, Ana Leonor deita-se de rádio ligado, a ouvir o Oceano Pacífico. E um rio sem memória desagua e adormece dentro dela.