Houve uma revolução na oftalmologia, as ópticas nascem como cogumelos – há cerca de 2 mil em todo o País – e a miopia está a aumentar. Mas ainda há crianças que entram para a escola sem saberem que vêem mal. Pior: calcula-se que 4% a 5% seja amblíope – praticamente cega de um olho.
Os tempos de espera para cuidados de oftalmologia foram considerados pela ministra da Saúde, Ana Jorge, “uma vergonha”. Criaram-se programas especiais e, segundo o Ministério da Saúde, em seis meses, foram feitas 27 mil operações e garantidas mais
48 mil consultas. Mesmo assim, a saúde visual continua a ser encarada como um luxo pelo Serviço Nacional de Saúde, que reembolsa os utentes em 75 cêntimos pelas hastes dos óculos e outro tanto pela armação.
Às ópticas chegam clientes que pedem à família óculos como prenda de Natal e crianças que, depois de um ano à espera de consulta de oftalmologia, acabam por recorrer ao optometrista. Aos oftalmologistas choca a imagem frequente de idosos com sacos de óculos comprados nas ópticas, apesar de não lhes servirem para nada porque, afinal, tinham uma retinopatia – quando os pequenos vasos sanguíneos, frágeis nos diabéticos, sangram mais facilmente e reduzem a visão – ou cataratas.
Enquanto ninguém se entende, os portugueses têm de cuidar da sua visão. Vão onde o acesso é fácil – as ópticas – e curam a miopia com laser nos privados.
Em busca da visão perdida
“Se faz caretas não pode ser operado.” Manuela Carmona, 47 anos, precisa do olho do doente fixado na luz vermelha para poder dar início à cirurgia por laser, que vai permitir a Márcio Sousa, 29 anos, sair da sala sem precisar de óculos para ver os criminosos com que lida diariamente.
Se, para alguns, esta é uma intervenção estética, para Márcio, agente da PSP, tem uma importância profissional óbvia: “Um colega meu levou uma pancada nos óculos, durante uma detenção, e magoou-se. Já experimentei lentes de contacto e não me dei bem, por isso decidi fazer esta operação”, contou à VISÃO, minutos antes da intervenção.
A oftalmologista calibra o laser, coloca um anel na córnea para garantir que fica sempre na mesma posição, levanta parte da córnea, põe o laser a funcionar e limpa os resíduos com soro. Quinze minutos depois, já tinha feito desaparecer o efeito da miopia nos dois olhos de Márcio. “Está tudo um bocado enevoado, mas, mesmo assim, já vejo melhor do que antes”, diz, assim que se levanta da marquesa no Hospital da Ordem Terceira, em Lisboa.
Sem comparticipações, esta operação custa cerca de 2 mil euros. Só neste hospital corrigem-se cerca de mil miopias com laser por ano, mas chegaram a fazer-se 2 mil. “A estética, a comodidade, a prática de desporto e as razões profissionais são as principais motivações dos doentes”, concluiu Manuela Carmona, que alerta para a necessidade de um bom diagnóstico. “A miopia é mais do que usar óculos. Pode estar corrigida e haver alterações na retina. Não se deve trocar de óculos de qualquer maneira.”
A oftalmologia é das especialidades em que os médicos mais se repartem entre o sector público – cerca de 400 profissionais – e o privado – cerca de trezentos. Talvez isso ajude a explicar porque é que uns doentes conseguem fazer uma cirurgia laser em poucos dias e outros esperam anos por uma simples consulta, nos hospitais públicos. “Há pouco tempo, atendi uma criança que, antes dos 6 anos, fez um rastreio no centro de saúde, onde lhe detectaram um problema e encaminharam para o hospital. Um ano e meio depois, ainda não tinha sido atendida. Entrou para a escola com miopia e astigmatismo por corrigir”, recorda Eduardo Teixeira, 32 anos, presidente da Associação de Profissionais Licenciados em Optometria.
Embora considere “inaceitável” que uma criança em idade escolar tenha de esperar tanto tempo para ser vista por um especialista, Florindo Esperancinha, 58 anos, presidente do Colégio de Oftalmologia da Ordem dos Médicos, critica fortemente a actividade dos optometristas: “Têm formação zero em medicina e trabalham no local de venda de óculos. Quem receita não vende e quem vende não receita. Instalou-se um interesse comercial que tem de ser regulamentado.”
Regulamentação é o que pedem também os optometristas. “Já lançámos vários alertas e ninguém quer saber. O nosso curso fica caro ao País, vemos um milhão de portugueses, mas o Estado desresponsabiliza-se. Devia preocupar-se em saber se andamos a fazer mal a 10% da população”, argumenta, revoltado, Eduardo Teixeira.
Portugal tem mais oftalmologistas do que aconselha a Organização Mundial de Saúde (OMS), mas não consegue responder às necessidades. “Mais do que médicos, falta organização”, defende Esperancinha.
O coordenador nacional do Programa da Saúde da Visão, António Castanheira-Dinis, 64 anos, também aposta na reorganização dos serviços. “Propomos que cada agrupamento de centros de saúde tenha um ortoptista e um enfermeiro para fazer o rastreio visual, que será depois analisado pelo oftalmologista, no hospital da área. Com esta organização, teremos oftalmologistas suficientes.”
Para o director do Instituto Gama Pinto, uma das raras instituições públicas que praticam cirurgia laser para a miopia, falta definir prioridades: “Há um grande saco com tudo misturado. Mais importante do que o tempo de espera, é tratar os casos graves primeiro.” A prevenção para as crianças e o tratamento das retinopatias diabéticas, que podem levar à cegueira, estão no topo da lista.
Evitar a cegueira
-se as conexões que poderiam tornar aquele olho útil”, explica Miguel Castel-Branco, 42 anos, coordenador científico do Instituto Biomédico para a Investigação da Luz e Imagem (IBILI), em Coimbra.
Se um olho não é funcional, há uma espécie de selecção natural do que trabalha melhor, porque, “para se desenvolver, o cérebro precisa de experiência”. É isto que explica a ambliopia, perda de visão num dos olhos, apesar de não haver lesão orgânica. A doença é grave, mas tem solução simples, desde que detectada a tempo. “O cérebro toma esta decisão no período em que tem maior plasticidade, ou seja, na infância. Depois já é muito mais difícil tratar”, alerta o neurocientista.
O descolamento da retina, cuja probabilidade aumenta nas miopias mais severas, é outra das consequências graves da doença caracterizada por ver mal ao longe. “Há uma pressão brutal para operar cataratas, mas o descolamento da retina conduz muito mais rapidamente à cegueira. Bastam horas ou meses, enquanto as cataratas levam anos”, afirma António Travassos, 58 anos, presidente da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia.
Mais do que as listas de espera, é a falta de bases de dados que preocupa o curador da Fundação Champalimaud: “Ninguém sabe quantos doentes há, com quê e onde. Assim, é impossível organizar.” A apreensão aumenta com a frequência das próprias doenças oftalmológicas. “É expectável um aumento dos casos de miopia por causa dos hábitos do homem de hoje. Provavelmente, somos mais míopes do que no passado, porque usamos muito os olhos para ver ao perto e não os estimulamos tanto para ver ao longe. As crianças que brincam mais no exterior têm menos miopia.” As ópticas, com mais 30% de pontos de venda em dez anos, já estão preparadas para este aumento. E os serviços de Saúde?
Se o cérebro é um espelho do mundo, os olhos são a máquina fotográfica de cada um. Cerca de 30% dos portugueses tiram imagens desfocadas. Uns corrigem a “máquina” com óculos, outros com lentes de contacto ou cirurgia. Todos têm de fazê-lo à sua custa. Por vezes, tarde demais.
As soluções
>> Cirurgia laser
Quanto melhor a curvatura, melhor o funcionamento da córnea. A cirurgia laser torna a córnea mais achatada, fazendo com que diminua a distância entre as imagens e a focagem. Ou seja, a córnea fica com menos potência e a luz chega a uma zona mais posterior do olho, a retina. Esta operação é indicada para maiores de 18 anos, com miopia estabilizada, um máximo de sete e um mínimo de uma dioptria. Não evita a evolução da doença, por isso podem ser precisas novas correcções.
>> Óculos
Usados desde o século XVIII, são a solução mais clássica para melhorar a qualidade da visão. A curvatura das lentes permite corrigir a forma como o olho recebe as imagens.
>> Lentes de contacto
Começaram por ser rígidas, o que, além de as tornar muito incómodas, determinava que fosse restrito o número de utilizadores, porque a sua eficácia dependia da quantidade de lágrima de quem as usava. Hoje, há lentes hidrófilas (com mais água e mais permeáveis ao oxigénio), descartáveis e até para ver ao perto e ao longe.
>> Lente intra-ocular
Indicada para míopes com mais de seis dioptrias, implica a colocação de uma lente de contacto entre a córnea e a íris. Pode necessitar de anestesia geral.
Sinas de alerta
As Crianças adaptam-se e não se queixam por ver mal. Alguns sinais podem ajudar a detectar a miopia nos mais novos
>> Levantar-se da carteira ou semi-cerrar
os olhos para ver melhor para o quadro
>> Preferência por actividades de leitura
>> Dor de cabeça
>> Olhos vermelhos
>> Cansaço depois da leitura
>> Tonturas
>> Enjoos
Factores de risco da miopia
Não são causa directa, mas parecem estar associados à doença. Hábitos como a leitura e a falta de actividades ao ar livre estimulam menos a visão de longe, o que pode influenciar a acuidade visual. O baixo peso (menos de dois quilos e meio) e a prematuridade implicam um desenvolvimento extra-uterino dos órgãos, que nem sempre iguala o crescimento conseguido numa gravidez normal. Pais com miopia têm mais probabilidade de ter filhos com o mesmo problema
>> QI elevado
>> Realização frequente de trabalho a pequenas distâncias (leitura, uso do computador, ver televisão)
>> Prematuridade
>> Baixo peso à nascença
>> História familiar
>> Passar menos tempo em actividades ao ar livre