Um debate. O confronto entre Marcelo Rebelo de Sousa e André Ventura foi tenso, vivo, com momentos de ataque e outros de defesa de cada um dos lados. Teve ideologia, nas diferenças entre as duas direitas. Teve conteúdo, na transmissão das mensagens e da conceção do regime. Teve confronto de ideias, na forma como cada um vê o mandato presidencial. Teve contenção no ataque pessoal, teve sorrisos e teve cenhos franzidos. E teve um momento chave, quando Marcelo traz – desnecessariamente – à colação as conversas privadas com o deputado André Ventura nas audiências de Belém.
E, de certa forma, André Ventura evitou ser demasiado “André Ventura”, desta vez. Ele sabia que o ataque desabrido a um Presidente da República o desfavorecia. As fotografias exibidas, pensadas para irritar Marcelo e fazer o seu próprio “número das pedras”, à Vitorino Silva, que captam a atenção da audiência mas revelam pouca substância, foram o único truque de um candidato radical e “malcriado” que fez um esforço de contenção e de educação, nunca perdendo de vista uma tentativa de postura institucional. É um debate inteligente, que revela, também, por parte de Marcelo, uma lição cuidadosamente estudada, ao trazer, como seus advogados, as referências do seu adversário: Sá Carneiro e João Paulo II.
Ficam aqui os momentos mais quentes e as frases mais marcantes.
A ameaça à democracia
Marcelo Rebelo de Sousa:
“Partido legalizado e líder de partido legalizado estão dentro da democracia. A democracia é compreensiva”
André Ventura:
“Há aqui uma diferença. É que a Ana Gomes e a Marisa Matias só falta mandarem prender o André Ventura e mandá-lo para Peniche…”
Contexto:
A pergunta, feita a Marcelo, era se o Chega é uma ameaça à democracia. O contexto deve incluir declarações recentes do PR em que alertava para os perigos das democracias iliberais. Mas não foi por aqui que se iniciaram as hostilidades. Embora a “compreensão” da democracia para com partidos como o Chega fosse uma farpa de Marcelo – que Ventura fingiu ignorar.
Ser o não ser de direita
Ventura:
“Um polvo está a asfixiar a democracia e Marcelo Rebelo de Sousa nada fez para o evitar”
Marcelo:
“Representamos direitas diferentes. Eu represento a direita social, a da doutrina social da Igreja, a referência do papa Francisco…”
“Não faço das presidenciais as primárias das legislativas, não tenho várias agendas ao mesmo tempo”
Ventura:
“Somos os dois candidatos e devemos estar aqui em pé de igualdade. O senhor não tem de dizer que eu sou candidato de fação. A lei permite que um líder partidário possa ser candidato à Presidência da República.”
Contexto: Marcelo procura colocar-se num plano superior, institucional e independente, denunciando a agenda política do adversário, que faria desta candidatura uma utilização instrumental para outros objetivos. O ataque teve uma eficácia relativa, a partir do momento em que Ventura se vitimizou. Marcelo também traz à colação o papa Francisco, que já foi alvo de críticas de Ventura… Este não mordeu o isco.
Justiça, segurança e inclusão
Marcelo:
“A substituição da PGR [Joana Marques Vidal] e do presidente do Tribunal de Contas [António Caldeira] não veio parar a luta contra a corrupção. Os processos não pararam”.
Ventura:
“Está a ver esta fotografia? O senhor foi ao Bairro da Jamaica visitar os bandidos, mas não visitou a esquadra que foi atacada!”
Marcelo:
“Eu fui lá para demonstrar que o PR não tem medo de ir a nenhum bairro. O Bairro da Jamaica não é um caso de polícia, é um caso social”.
“Eu sei o que chefes de Estado de países de origem destes cidadãos estavam a dizer. Era preciso demonstrar que Portugal integra as suas comunidades”.
Ventura:
“Preferiu satisfazer os chefes de Estado a pensar nos portugueses”.
Marcelo:
“Essa distinção diz tudo sobre si. Não há portugueses puros ou impuros. O PR não pode distinguir. Isso dará votos, mas não pode!”
Ventura:
“Muitos destes indivíduos vieram para Portugal para beneficiar do Estado Social”
Marcelo:
“Sá Carneiro e o Papa João Paulo II eram contra a pena de morte e contra a prisão perpétua. João Paulo II perdoou ao homem que atentou contra a sua vida! Ele anda cá fora!”
“A prisão perpétua não faz qualquer sentido. Eu sou católico e um católico acredita que, até ao último instante, pode haver redenção”
Ventura:
“ Não aceito a pena de morte, mas defendo a prisão perpétua. Ela existe aqui ao lado, em Espanha, e ninguém diz que Espanha não é uma democracia”.
Contexto: Muitas mensagens num dos períodos mais ricos do debate. Sem surpresa, Ventura trouxe para cima da mesa o episódio do Bairro da Jamaica. Marcelo começou por responder bem, mas, perante a insistência – não visitou os polícias –, deu a sensação de não ser suficientemente assertivo para arrumar o assunto. Uma falha inesperada. As questões de Justiça e Segurança atingiam a discussão filosófica, sobre o bem e o mal, o castigo e o perdão. O estudado recurso à fé e ao perdão, por parte de Marcelo, não teve resposta do beato Ventura, que talvez não esperasse o ataque. Foi a segunda vez (depois de Sá Carneiro e de João Paulo II…) que Marcelo recorreu à sua formação da arte marcial de aikido, utilizando a força do adversário a seu favor…
Direita, esquerda, Governo
Ventura:
“O candidato que se diz de centro-direita passou cinco anos a desacreditar o centro-direita.”
“Será que alguém, à direita, pode, em consciência, votar no candidato Marcelo Rebelo de Sousa?”
Marcelo:
“O País votou uma maioria de esquerda, eu respeitei. Nos Açores, houve uma maioria de direita, eu respeitei. Agora já acha bem? Dá-lhe jeito?”
Ventura:
“Não podia fazer outra coisa. E escusava era de estar sempre a apaparicar Governo…”
Marcelo:
“O PR vetou o que devia vetar. No caso da Caixa Geral de Depósitos, disse o que tinha a dizer do Governo. No caso dos fogos, disse o que tinha a dizer do Governo.”
“Quer uma crítica mais contundente do que a que fiz à ministra da Justiça?”
Ventura:
“Que consequências teve a intervenção do PR no caso dos fogos? Nenhumas!”
Marcelo:
“Olhe, a ministra da Admnistração Interna pediu a demissão, imediatamente…”
Ventura:
“A ministra… e as pessoas, e este senhor [mostra foto] que morreu sem ver reconstruída a sua casa?”
Marcelo:
“Se há exemplo de atuação minha são os fogos! O senhor já foi lá? [Perante a afirmativa]: Imagino… Isso é demagogia pura!”
Contexto: Discutiu-se o já estafado argumento de que Marcelo andou com o Governo ao colo. Independentemente do que cada um possa pensar, Ventura deu alguns exemplos, que Marcelo não rebateu. Mas Marcelo foi mais longe do que nunca na desautorização da atual ministra da Judtiça, o que pode ainda ter futuras consequências políticas. O PR mostrou genuína indignação, quando o adversário tentou usar os fogos contra ele. Ventura tocou um ponto sensível e a indignação de Marcelo foi convincente e televisivamente eficaz. Foi o momento mais tenso e Marcelo ganhou-o. Isso conduziu ao seu descontrolo que pode ter sido eficaz mas que teria sido desnecessário… Como veremos imediatamente a seguir.
A frase
Marcelo:
“Eu não sou manipulado por ninguém! Não admito que me diga aqui o que não me diz nas audiências em Belém!”
Contexto: A discussão sobre os fogos, o momento do debate em que Marcelo foi mais genuíno, conduziu a um certo descontrolo. Visivelmente irritado, sacou do truque de trazer ao debate as audiências que concede a um partido, no uso das suas funções de Presidente. Assumiu uma desleal posição de superioridade que era desnecessária e deixou Ventura sem resposta. No entanto, a tirada terá sido bastante eficaz, do ponto de vista do candidato, para o telespetador comum, que poderá estar desconfiado das várias caras que Ventura mostra, sobre diversos assuntos, dos comportamentos diferentes e do seu alegado oportunismo. Marcelo teve sorte por Ventura não ter a presença de espírito de protestar sobre o uso de conversas privadas e institucionais, em Belém, em contexto totalmente diferente do de um debate político.
Concluindo, este foi um debate clássico, tenso e duro, mas sem extravasar qualquer limite de civilidade. As imagens dos dois, a abandonarem o estúdio – com Ventura, pressuroso, a lembrar a Marcelo de que tinha de pôr a máscara… – é o melhor epílogo sobre um momento da pré-campanha de que muitos esperavam o pior… e que correu bem. Ironicamente, nas contas finais, essa simples cricunstância favorece mais o recandidato do que o challenger.