Já se sabia que uma das matérias inflamáveis do debate entre António Costa e Catarina Martins na RTP ia ser o “passa-culpas” pelo fim da “Geringonça”. Ou seja: saber quem foi, afinal, o responsável pelo desmanchar da dita, quem lhe mexeu nos parafusos e apertou onde não devia, desarticulando tudo.
Para o líder do PS não há dúvidas: foi o BE quem, em 2020, e “no pior momento da pandemia”, decidiu “romper o diálogo” com o PS, o PCP e os “Verdes”.
Apesar de presa por fios, de ter o prazo de garantia caducado e se mover de forma periclitante, o que restava da “Geringonça” de papel passado ainda voou até à entrada do último outono, mas, na verdade, o acordo das esquerdas já era uma folha caída antes de o ser. Catarina Martins tem, como se esperava, uma versão diferente de Costa. Para ela, o PS insistiu nas “recusas” de diálogo à esquerda a partir do segundo mandato de Costa. Para trás ficava o espírito de 2015 e o acordo assinado na altura, que, por vontade do BE, teria sido mantido quatro anos depois. “Orgulho-me desse momento e voltaria a fazê-lo”, assumiu. “Foi um erro não o ter feito em 2019”, acentuou.
E SE NÃO HOUVER MAIORIA?
O debate até começou de forma diplomática, com ambos a desejarem rápidas melhoras a Jerónimo de Sousa, líder do PCP, que será sujeito a uma intervenção cirúrgica de urgência e ficará ausente da campanha pelo menos dez dias. Mas o verniz não demorou a estalar. Cada um fez o seu papel com maior ou menor capacidade cénica. Aí, Catarina Martins, experimentada nas artes de palco, levava, à partida, vantagem, mas Costa, curtido em muitas campanhas e debates políticos, também já sabe fazer o papel de indignado e levantar o sobrolho para gerar mais impacto lá em casa.
Percebeu-se igualmente aquilo que há muito ecoa nos bastidores: o líder do PS sempre viu o PCP como parceiro mais fiável e a postura do BE dá-lhe cabo dos nervos (embora disfarce bem). Tal foi evidente quando Catarina garantiu que o obstáculo para um novo acordo escrito entre as esquerdas a partir de 31 de janeiro não é o próprio Costa, mas sim o seu objetivo inconfessado: “O obstáculo é o desejo da maioria absoluta”, explicou a líder do Bloco, advertindo: “Neste momento, o País sabe que não teremos maioria absoluta”. Costa negou que alguma vez tenha feito tal pedido, centrando-se apenas na necessidade de estabilidade. “A maioria absoluta não é um objetivo em si”, justificou. Se não a tiver, recusa mesmo fazer “chantagem” sobre os portugueses. “Não sou o professor Cavaco. O professor Cavaco é que dizia «ou me dão a maioria absoluta ou vou-me embora»”, ilustrou. Nesse cenário, “não bato com a porta”, assegura. Uma coisa, porém, parece certa: o BE deixou ser um parceiro confiável para o atual primeiro-ministro. “Não oferece estabilidade”. Resumindo: se as palavras ainda pesam alguma coisa em política, Costa matou, à nascença, qualquer possibilidade de uma terceira temporada da “Geringonça” que inclua o BE, depois de ambos maldizerem o enredo e o dramatismo da segunda série de episódios. “Contrato escrito, é aqui devemos voltar”, contrapõe Catarina Martins.
SAÚDE, SEGURANÇA SOCIAL E TRABALHO
Havia tensão acumulada e nunca, como agora, tinha surgido a hipótese de lavar a alma frente a frente. Percebeu-se que qualquer tema cavaria ainda mais o fosso e foi o que aconteceu. PS e BE não se entendem nos temas da Saúde, Segurança Social e Trabalho, sobretudo quando se deixam as generalidades e se vai ao detalhe. António Costa garantiu mesmo que a gota de água que deitou por terra qualquer esperança de acordo foi a proposta do BE para a sustentabilidade da Segurança Social (SS). O secretário-geral socialista acusou a direção de Catarina Martins de “minar” o futuro da SS: “A proposta do BE tinha um impacto de 480 milhões de euros. Foi isso que impediu o acordo”, assegurou Costa. O desmentido veio logo de seguida. Para o BE, o primeiro-ministro manipula os dados. “Os números não são esses”, disse-lhe. Quanto à sustentabilidade da SS e à vontade de acabar com penalizações por reforma antecipada, Catarina Martins passou a Costa a responsabilidade. “As pessoas não precisam de caridade, precisam de uma pensão justa”.
O presente e futuro do SNS também os dividiu.
Esgrimiram-se números que, cada um na sua vez, iam desmentindo. Para Costa há uma evidência: “Há dois Blocos de Esquerda: um que aparece na campanha, cheio de mel. E o que depois aparece no Parlamento, cheio de fel”. Catarina encaixou o remoque e acusou o PS de faltar à palavra sempre que lhe dá jeito, tanto na Saúde como na legislação laboral. “A questão do mel e do fel é um problema de cada um momento”, disse. “O PS prometeu 30 milhões de euros por ano para os cuidadores informais, mas guardou 98 por cento das verbas”, exemplificou, quanto ao primeiro tema. Depois lembrou que Costa dissera, em tempos, que dificilmente aceitaria a leis do período da “troika” na área do Trabalho. “Nós não mudamos de opinião. É preciso tirar a troika da legislação laboral”. O seu adversário garantiu, porém, que o PS já expurgou “parte das normas” nesse campo. E se mais não se fez foi “porque o BE se aliou à direita e à extrema-direita”, justificou.
Uma das últimas chispas surgiu a propósito da intenção do BE de devolver à órbita do Estado empresas como os CTT, a REN, a ANA, entre outras. “O Bloco quer agravar a dívida pública em 14,5 % por cento”, acusou. “Talvez o PS esteja contente que seja o Estado chinês a mandar”, respondeu-lhe Catarina.
Em caso de vitória socialista, percebe-se, o diálogo com o BE é algo que Costa dispensaria. Algumas cabeças – como a de Rui Tavares (Livre) – ainda alimentam o sonho de restabelecer a “Geringonça”, em versão ecológica, mais alargada e de papel novamente assinado, mas, quanto a Costa e Catarina o difícil vai ser sentá-los. A líder do BE, porém, insiste: “Nós vamos ter de encontrar soluções. Bem sei que agora quer a maioria absoluta, mas não vai a ter”.
FRASES MARCANTES
ANTÓNIO COSTA
“Em 2020, no momento mais grave da pandemia, quando ainda nenhum português tinha tomado a vacina, o Bloco rompeu o diálogo com o PS, PCP e os «Verdes»”.
“Bloco impediu um reforço das verbas para o SNS de 1500 milhões de euros em dois anos”.
“Mesmo com pandemia, conseguimos alargar em 22 anos a sustentabilidade da Segurança Social”.
“A direção do Bloco cansou-se desta solução [“Geringonça”]”.
“Recomprar os CTT, a REN e ANA é uma bravata ideológica”.
CATARINA MARTINS
“Orgulho-me desse momento [acordo da “Geringonça”] e voltaria a fazê-lo”.
“Foi bom termos feito um acordo escrito em 2015, foi um erro não o ter feito em 2019”.
“Há dois mil enfermeiros que já pediram para emigrar”.
“Quem chefia serviços num hospital público não pode estar a trabalhar num hospital privado do outro lado da rua”.
“É preciso tirar a troika da legislação laboral. António Costa disse que dificilmente aprovaria aquela legislação. Nós não mudamos de opinião”.