Durante três mandatos, Mahomed Iqbal, 63 anos, foi o “braço-direito” de Abdool Vakil, histórico presidente da Comunidade Islâmica de Lisboa (CIL), que permaneceu no cargo durante 33 anos. Há dois, este profissional do setor financeiro e bancário – consultor do Banco de Fomento Internacional – passou a liderar esta entidade, apontando como objetivo “abrir as portas” e “aproximar a comunidade islâmica à restante população de Lisboa e do País”.
Confrontado pela (inesperada) pandemia, o projeto de Mohamed Iqbal “travou a fundo”, mas, hoje, enquanto decorre o primeiro Campeonato do Mundo de futebol num país árabe e muçulmano, o presidente da CIL acredita que os sinais não enganam: o diálogo e a (salutar) convivência inter-religiosa no mundo é, cada vez mais, uma realidade. “É de salutar a realização do Mundial do Qatar, porque permite que as pessoas de todo o mundo possam, finalmente, formar uma opinião sobre o que é e como é um país muçulmano”. “É uma prova que atrai pessoas de todo o mundo, que, assim, podem conhecer melhor o que é o islão e os muçulmanos, em vez de apenas olharem e ouvirem à distância. É uma forma de unir o mundo”, sublinha.
Ainda assim, o presidente da CIL alerta para o “preconceito” que, em muitos locais do ocidente, o Islão e os muçulmanos ainda sofrem. A razão principal? As ações dos movimentos islâmicos radicais, responsáveis por vários atentados, ao longo das últimas décadas, contra alvos ocidentais – sobretudo, nos Estados Unidos da América e Europa. “Infelizmente, acho que ainda existe esse preconceito. Já existe maior compreensão [no ocidente] do que é o verdadeiro Islão, a opinião está a mudar, mas, ainda assim, demasiado vagarosamente. Ainda existe uma conotação muito forte entre esses acontecimentos terríveis [os atentados terroristas], que são sempre de repudiar”, lamenta, sublinhando que “o Islão é uma religião de paz e convivência”. “Esse lado do Islão, infelizmente, ainda não é muitas vezes compreendido”, diz.
Mesquita de Lisboa: um abrigo para todos
A Mesquita de Lisboa é um espaço aberto a toda a cidade e país – qualquer que seja a religião. Este é, aliás, um dos objetivos da CIL: abrir aquele espaço, para que todos possam conhecer o Islão e os muçulmanos. “O Islão é uma religião que quer praticar a paz e isso só acontece com um diálogo com todas as pessoas e as outras religiões. Somos muçulmanos, mas também somos portugueses e europeus. Queremos, por isso, conviver com todos e praticar o bem”, afirma Mohamed Iqbal.
Natural de Moçambique, com raízes na Índia, Mohamed Iqbal chegou a Portugal com 16 anos, após o 25 de Abril. Concluiu estudos em Londres. Passou por Estados Unidos e Brasil. E, hoje, é consultor do Banco de Fomento Internacional
Hoje, Mohamed Iqbal assume-se como o principal cicerone da comunidade islâmica“ em Portugal. “Visitar a Mesquita de Lisboa é algo que incentivamos fortemente. Temos 13 mil visitas por ano, guiadas pelo xeque David Munir. E é uma oportunidade para todos conhecerem este magnífico espaço”, sugere. De 15 em 15 dias, a CIL organiza a iniciativa ‘Mesquita Solidária’ – em parceria com a Junta de Freguesia de Campolide –, servindo uma refeição quente a “todas as pessoas necessitadas”, qualquer seja a nacionalidade, sejam muçulmanas ou de professem outra religião.
Este “abrir de portas”, permite estabelecer “um relacionamento extraordinário com todas as fés que existem em Portugal”, um campo em que a CIL insiste em “continuar a apostar e progredir”, destacando-se a aposta na integração na comunidade de jovens e mulheres. O diálogo inter-religioso é outro dos pilares da atual direção deste entidade.
“Quando cheguei a Portugal [após o 25 de Abril de 1974] fazíamos as nossas orações na embaixada do Egito e, mais tarde, num espaço cedido pela Câmara de Lisboa, no Príncipe Real, onde se juntavam cerca de uma centena de pessoas. Hoje, às sextas-feiras, na nossa oração principal, juntam-se perto de 1.000 pessoas, o que demonstra uma alteração fundamental na comunidade islâmica em Portugal, ao longo destes anos. Continuamos a ter uma relacionamento extraordinário com a sociedade, graças ao papel da Mesquita de Lisboa, construída em 1985, o que também é fruto do trabalho extraordinário desenvolvido pelo anterior presidente da CIL, Abdool Vakil, que conseguiu projetar uma imagem completamente diferente dos muçulmanos a viver em Portugal junto da sociedade”, refere.
“No Islão, o papel da mulher é fundamental”, diz
As recentes manifestações no Irão têm alertado o mundo para a luta das mulheres no Islão. Sem querer “abordar as leis de outros países”, Mohamed Ibqal admite, porém, que em alguns países muçulmanos a falta de liberdade das mulheres é algo que “não só tem de mudar, mas que está a mudar”, assegura.
“A mulher é reconhecida no Islão como tendo um papel fundamental na junção da família, na contribuição para a economia ou em muitos outros aspetos. Acreditamos, sinceramente, nesse contributo”, diz, embora admita que “ainda temos de fazer algum trabalho nesse sentido”.
“Hoje, já vemos alterações significativas em países muçulmanos. A Malala [Yousafzai ] é uma grande referência e inspiração para o mundo… A mulher tem um lugar na sociedade, tem os seus direitos e eles têm de ser respeitados, não tenho dúvidas disso. E noto que existe um movimento forte nos países muçulmanos para se fazer essa mudança positiva”, afirma o presidente da CIL.
Até o Chega “já visitou” a comunidade islâmica
A comunidade islâmica em Portugal tem cerca de 60 mil pessoas. Depois de os muçulmanos oriundos das ex-colónias portuguesas, um novo fluxo migratório, acelerado nos últimos anos, tem aumentado este universo, com pessoas oriundas de países como Índia, Bangladesh ou Nepal… A adaptação, obviamente, nem sempre é fácil: “Temos de ter em conta que a língua e a cultura são muito diferentes. Ao contrário dos muçulmanos de países lusófonos, em que existe uma proximidade histórica e cultural muito grande, isso não acontece com pessoas oriundas de outros países, o que é natural”, diz.
Numa fase em que a influência de movimentos radicais populistas continua a crescer na Europa (e não só), com posições e discursos nacionalistas e identitários, promovendo o racismo e a xenofobia, a comunidade islâmica acaba por se tornar um “alvo”, uma realidade que, ainda assim, “não preocupa” Mohamed Iqbal. “Sente-se que existe um agravamento desses movimentos, que querem introduzir esses valores na sociedade europeia, o que até se vê nos resultados eleitorais de alguns países europeus (…) e aqui em Portugal também, de uma certa forma. Se me pergunta se estou preocupado: não estou preocupado”, destaca.
O presidente da CIL acredita que esta situação não é mais do que “uma falha na sociedade”, que, “com trabalho e esforço conjunto de todos, pode ser corrigida”. “Os movimentos radicais existem, não podemos evitá-lo, mas à medida que as pessoas se vão apercebendo do que é o Islão verdadeiramente essa tendência tende a reduzir-se”, afirma.
O próprio Chega – partido da família da direita radical populista – “já pediu para visitar a Mesquita de Lisboa”, confidencia Mohamed Iqbal. “Conheceram o espaço e partilharam diálogos e até uma refeição. Acredito que terminaram a visita com outro entendimento sobre o que é o Islão e o que são os muçulmanos”, refere o presidente da CIL, que reforça nova mensagem de união: “Acredito que o diálogo e as visitas [à Mesquita de Lisboa], essa contínua procura de aproximação, facilita o entendimento e, eventualmente, terá repercussões positivas na forma como [os membros do Chega] descrevem os portugueses de outras nacionalidades e religiões”.
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