Numa altura em que os direitos humanos e a exploração laboral de milhares de imigrantes na construção dos estádios do mundial de futebol do Catar estavam a ser alvo de várias críticas, a Itália recusava-se a receber mais um barco de imigrantes, que teve de ser desviado para França, criando assim um incidente diplomático entre os dois países. Em Portugal, uma rede criminosa foi apanhada em Beja, pondo a descoberto o trabalho escravo de vários imigrantes. E isto quando ainda não se esqueceu – nem se resolveu – a situação daqueles que trabalham nas estufas de Odemira.
Foi este o contexto que esteve na base de mais um Irrevogável, desta vez com a deputada socialista no Parlamento Europeu, Isabel Santos. Formada em Relações Internacionais e em Sociologia, a deputada tem tido sempre no seu radar de atuação os fenómenos migratórios e os direitos humanos. Face ao que vamos assistindo pela Europa, estará esta capaz de dar lições ao Catar?
Para Isabel Santos, “a Europa ainda é o território onde os direitos fundamentais são mais garantidos”. Mas “a forma como os imigrantes, e até mesmo refugiados, são tratados não é objeto de orgulho”. Trata-se de “um problema estrutural” que terá de ser resolvido, “pois não é admissível assistir a alguns acontecimentos que temos vindo a assistir ao longo dos últimos anos”.
De qualquer modo, rejeita ter havido “hipocrisia” neste apontar de dedo, porque “não podemos fazer como se não estivesse a acontecer, temos de ser críticos”.
Mas a verdade é que reconhece que a Europa tem sido incapaz “de criar uma forma equilibrada” de dar resposta a estes problemas. “Desde 2015 que se fala num novo pacto para uma nova política para a imigração e asilo. Neste mandato, foi apresentado um novo pacto. Espera-se que o conjunto dos diplomas possam ser aprovados até ao seu final, mas o processo avança muito lentamente. É muito difícil chegar a um acordo. As posições são muito extremadas”, justifica, com algum desalento.
A má noticia é que a tendência diz que tudo pode ficar pior. “A situação vai-se agravar cada vez mais, dentro e fora da União Europeia”, vaticina, Isabel Santos, que também já foi Governadora Civil do Porto. À medida que forem crescendo a extrema-direita e os nacionalismos, por um lado, e se acentuarem os efeitos das alterações climáticas e da guerra, por outro, aumentarão os movimentos migratórios.
“Temos de arranjar forma de gerir estes fluxos, porque necessitamos destes imigrantes”, admite. Com uma população envelhecida, a Europa precisa desta mão-de-obra e também de renovar gerações. Mas porque é que não estamos a ser capazes de os saber integrar?
“É uma profunda irracionalidade, que vai ter impactos sérios na capacidade de crescimento económico da Europa nas próximas décadas. Necessitamos de todos aqueles que procuram o que já procuramos, uma vida em segurança e com dignidade. É contranatura negar-lhes isto”, afirma. E lamenta: “Uma grande lição que a Europa até agora parece não conseguir tirar foi a da pandemia, em que boa parte das funções essenciais foram garantidas por migrantes e refugiados.”
“Tudo isto tem a ver com preconceitos, o medo do outro, de outras realidades culturais, e todo um discurso de ódio e medo que se tem vindo a instalar e que tem de ser combatido. As sociedades diversas são sempre mais ricas, com maior capacidade de inovação e de criação de riqueza”, sublinha. E recorda que “10% dos contribuintes portugueses, nomeadamente para a segurança social vêm de outros países”.
A Polónia, por sua vez, viu entrar nas suas fronteiras 4 milhões de pessoas depois da guerra da Ucrânia. Um número muito superior a 2013, quando entraram na Europa milhão e meio de imigrantes e se “falou logo de uma crise migratória”. Por isso, “dizer que não temos capacidade para integrar é uma grande efabulação desconstruída por esta tragédia” que se vive na Ucrânia.
Haverá sim um “outro tipo de razões por detrás: o instigar do medo por certos setores, uma visão distorcida das nossas capacidades e necessidades e um discurso populista que tem vindo a ganhar espaço dentro das nossas sociedades e que prejudica qualquer debate racional sobre esta matéria”.
“Quando vemos que há uma pessoa que está a ser explorada por uma determinada entidade patronal devemos denunciar”
No que respeita à realidade portuguesa, o que, na sua opinião se tem verificado, “são grupos de pessoas que tentam aproveitar-se do desespero e da falta de expectativa e da falta de informação destas pessoas. E isso deve ser alvo de ação criminal”.
E Odemira ou Beja, “tem de se acionar contra as entidades patronais que não promovam condições dignas”. Para a deputada, “não podemos tolerar isso entre nós. Somos um país de emigrantes, sabemos bem quanto os portugueses sofreram nos bidonville”.
Quebrar a teia das redes criminosas, agências de trabalho temporário, cumplicidade das empresas em que caem muitos dos imigrantes só se consegue com a criação de “canais ordenados e regulares”. Isabel Santos lembra a mais recente medida governamental que concede vistos temporários de curta duração para quem vem procurar emprego, permitindo assim fugir aos angariadores.
Mas tal “vai obrigar a fazer um trabalho de informação – que poderá ser feito pelos consulados – porque muitos sujeitam-se a estas redes por não conhecerem outras alternativas”. E esta era uma medida que devia ser, na sua opinião, “convertida para uma diretiva europeia”. No entanto, admite, “sabemos a dificuldade que teríamos em fazer passar isto no conselho”.
Também ficou agradada por ter sido criada uma ampliação de verbas para questões de integração, um reforço na ação do alto comissariado para as migrações bem como de medidas como o programa Escolhas. No seu entender, estes “são passos significativos”.
Já a morte de Ihor Homeniuk às mãos do SEF foi “absolutamente intolerável”. E ver policias a espancar e maltratar imigrantes também não devia acontecer. “As forças de segurança têm a obrigação absoluta e extrema de se conduzirem no mais integral respeito pelos direitos fundamentais e humanos de todos, sem exceção”.
De resto, um alerta que nos diz respeito a todos. Garantir o cumprimento dos direitos humanos dos mais vulneráveis não parte só da ação do Governo ou das autarquias. Também deve ser responsabilidade da sociedade civil.
“Quando vemos que há uma pessoa que está a ser explorada por uma determinada entidade patronal devemos denunciar, como denunciamos a violência doméstica. A sociedade também tem de ser crítica”, apela. E é a proximidade que fomenta a integração.
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