Um dos membros das comissões de investigação aos incêndios de 2017 e antigo presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses (LBP), Duarte Caldeira critica o facto de a resposta do Estado ao fenómeno dos incêndios, que varrem o País por esta altura, andar sempre – e de forma pontual – a reboque dos calamidades, pelos menos nas últimas duas décadas.
“Temos uma triste tradição em Portugal, que os momentos de mudança e alterações são sempre impulsionadas por momentos críticos e catástrofes“, lamentou, no Irrevogável, o podcast de entrevistas da revista VISÃO, salientando que “foi assim em 2003, quando depois se operou resultados no sistema, voltou a ser assim em 2005, e em 2006 e 2007 operaram-se outras novas alterações, e depois dessa tragédia máxima de 2017, em que também houve alterações no sistema“.
Para Duarte Caldeira, que preside ao Centro de Estudos e Intervenção em Proteção Civil (CEIPC), “o que tem faltado verdadeiramente em todas estas situações, são momentos de avaliação; nós não temos cultura de avaliação” das práticas, planos, e da legislação existentes.
“Continuamos a ter problemas sérios e graves a nível do território. Depois, como esse ordenamento tem insuficiências e vulnerabilidades, o ordenamento florestal também; não só devido à estrutura fundiária mas, ao envolvimento dos cidadãos. Os cidadãos não estão envolvidos nas medidas que são delineadas. Não há uma cultura de risco”, disse.
A questão das alterações climáticas estão a revelar um forte impacto no perfil da meteorologia que, associado ao numero de ignições, se transforma num caldo explosivo nas florestas
Duarte caldeira
Além disso, frisou, “a declaração do primeiro-ministro foi excessiva”, quando atribuiu, no início desta semana, a responsabilidade dos incêndios à mão humana. “Claro que não pode deixar de se fazer um apelo e sensibilização dos cidadãos, perante estes incêndios, que temos vindo a constatar. Mas a maior parte dos incêndios mais graves, ao longo dos últimos 10 anos, ocorrem na crítica divisão, entre o urbano e florestal. E está relacionada com à forma como o território é gerido e como falham os planos municipais de defesa da floresta. As causas não atribuíveis, não identificadas, e sobre os quais não há dados para atribuir uma classificação, representam metade das ocorrências. Então, como é que podemos afirmar que 70% ou mais têm responsabilidade do cidadão?”, questionou. “Desde a semana passada, metade das ocorrências tem esta classificação: causa não atribuída ou sem dados” acrescentou.
Duarte Caldeira alertou que “somos um país com excesso de ignições”; o que pode ser um cenário explosivo associado a fenómenos climáticos extremos como a onda de calor que o País atravessa.
“A questão das alterações climáticas estão a revelar um forte impacto no perfil da meteorologia que, associado ao número de ignições, se transforma num caldo explosivo nas florestas”, garantiu, alertando para o tipo de território florestal que existe.
“As florestas estão saturadas de combustível e porquê? Assistimos, no nosso Pas, a um processo de despovoamento acelerado, que fez com que no mundo rural , uma vez que ficou despovoado, as práticas de trabalho de silvicultura preventiva, por exemplo, deixaram de ser feitas. Depois há um outro problema: a estrutura fundiária do País – com uma boa parte dessas parcelas abandonadas ou com os proprietários a não saberem sequer onde se localiza o que têm”, explicou, resumindo que se está perante “um cocktail socioeconómico que resulta num desastre ambiental”.
Isto é, “sem criar condições para que as pessoas, que ainda estão no espaço rural, se mantenham”, nada feito. “É preciso que desse espaço real tenham uma perspetiva económica”, disse, frisando que “a floresta é maioritariamente privada em Portugal, 98%”. “Depois temos as florestas do Estado e as comunitárias – os baldios florestais”.
A salvação dos meios aéreos (e o problema dos rescaldos)
Numa semana em que se ouviram críticas pela falta de meios aéreos no combate às chamas, Duarte Caldeira avisou que “o reforço dos meios aéreos é uma falsa questão, porque existe nos autarcas e nas populações uma perceção psicológica que o meio aéreo é a salvação”.
“Desconhece-se que são meios difíceis de gerir e que tem de haver condições necessárias para poderem operar, como um teto [céu] sem fumos. Há situações e condições subjetivas adjacentes, e não no esqueçamos que os meios aéreos são pilotados por pessoas”, salvaguardou.
O especialista, que integrou o Observatório Técnico Independente, um órgão consultor da Assembleia da República até ao ano passado e criado na senda de 2017, admitiu ainda que o cenário que se regista em Portugal ligado aos reacendimentos e ao insucesso na fase de rescaldo “é um problema e carece de uma análise apurada e minuciosa no sentido de o resolver”.
“Muitas vezes está ligado intimamente ao facto de após o combate a um incêndio numa área, em que é pouco provável existir um reacendimento, a tendência normal é a de deslocar pessoal para outras situações que são urgentes, porque o dispositivo não é elástico”.
“Talvez se pudesse equacionar que ou bombeiros ou outra força pudesse permanecer no local e com tempo suficiente para esse trabalho. Porque o rescaldo não é um trabalho qualquer; exige muito trabalho, como analisar o tipo de espécie de ardeu”, concluiu.
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