Depois da saída da Câmara do Porto anunciada por Rui Moreira da Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP), foi a Câmara da Póvoa de Varzim a mostrar essa intenção. E logo muitos outros se seguiram, como Coimbra ou a Trofa, ameaçando a existência de uma debandada geral. Aconteceu depois de Aires Pereira, o presidente da autarquia poveira, ter promovido um debate (com casa cheia) para o qual convidou Rui Moreira para discutir os problemas da descentralização em curso.
“Não sei se seremos os próximos a sair. Mas conseguimos colocar na agenda nacional o que já há muitos meses não víamos ser colocado com a importância que tem para os municípios e as populações”, disse Aires Pereira ao programa de entrevistas políticas da VISÃO, atribuindo o “mérito” a este encontro. O coro contestatário de vozes que se fez sentir “até levou a que o presidente da república sentisse também necessidade de falar sobre o assunto e chamasse a atenção do governo e da associação de municípios de que há que haver um entendimento”.
Face a isto, o presidente da Câmara da Póvoa vai dar nova oportunidade à ANMP e aguarda o agendamento de um congresso extraordinário: “Pedi que fosse considerada a hipótese de haver um congresso extraordinário da ANMP para a descentralização, porque se calhar estamos no momento mais difícil da vida dos municípios desde o 25 abril. Está agendado para reunião da próxima segunda-feira (6), para que a direção tome uma decisão: se avança ou não com um congresso extraordinário para discutir os problemas da descentralização. Estamos a dar força à direção da associação para que tenha uma atuação mais incisiva junto do Governo. Aguardo pelas decisões que vierem a ser tomadas”, adiantou, cautelosamente.
“Não temos nenhum interesse em sair da ANMP. Só o faremos em última instância e se ficar demonstrado que a ANMP não serve para nada, que não é capaz de ter força política e negocial para alterar este estado de coisas”.
Aires Pereira aguarda também com expectativa o papel que Marcelo Rebelo de Sousa irá ter, depois de este ter deixado essa expectativa numa reunião que teve com os autarcas. Deu-lhes razão nas reivindicações, mas pediu-lhes bom senso, ao mesmo tempo que deixava um puxão de orelhas ao governo pela forma como as coisas têm sido conduzidas. A todos pediu que se entendessem.
“Pelo menos há uma coisa que já sabemos: a questão está colocada na ordem do dia. As pessoas estão preocupadas, ao ponto de o presidente da República vir dizer que não podia estar calado perante o que se está a passar no país. Quer isto dizer que há uma questão que terá de ser resolvida e naturalmente irei aguardar com serenidade a marcação do congresso extraordinário, ou de um conselho geral, para entendermos todos, em conjunto, o que é este pacote de descentralização e as responsabilidades que isto traz para os municípios”, justificou Aires Pereira.
“Se uma associação da qual fazemos parte e a quem chamamos diversas vezes a atenção sobre a forma como estava a decorrer o processo de descentralização, não tem força, ou porque não quer, ou porque entende que este não é assunto que os preocupe, não coloca a questão e não nos descansa, naturalmente que temos de procurar outras formas e outras vias de demonstrar o que está em causa. No extremo, podia levar à saída, não só da Póvoa como de outras, como se percebe pelo enorme descontentamento que vai pelo país fora em relação a este processo”, justificou.
A intenção era, pois, fazer barulho, trazer o assunto para a praça pública, lançar um alerta nacional. “Entendemos que era o momento de colocar o assunto na praça pública. E se para que isso fosse discutido tivéssemos de pôr em causa a nossa permanência na ANMP, foi o que fizemos”. A primeira etapa parece estar ganha, portanto.
A responsabilidade que é atribuída a Luisa Salgueiro, presidente da ANMP e da Câmara de Matosinhos, é a de “deixar andar”, nestes meses todos em que os problemas se acumulavam.
“Estava suficientemente avisada que isto ia correr mal. E mais: tinha assumido o compromisso de que esta seria a prioridade dela. Não vimos sinais efetivos de haver um interesse desta direção em colocar estas questões ao governo e ser mais ativa no sentido disto ser corrigido. As coisas foram-se deixando andar, até à semana passada, em que, de um momento para o outro, toda a gente acordou para esta realidade, porque começou a haver este sinal de debandada”.
Rui Moreira fez bem em sair? “Não tenho certo, se isto tudo se resolver, que se efetive a saída do Porto. Há aqui um intervalo negocial necessário para que, se as coisas forem resolvidas, haja ainda possibilidade de recuo. Mas não estou na cabeça dele. Percebo a forma como o fez, a necessidade de colocar a questão na agenda e munir-se das [autorizações] para poder tomar essa decisão no momento em que entender”.
Quanto à Póvoa, ainda está na fase de “ver o resultado destas novas ações”, já que tem visto Luisa Salgueiro “mais sensível” e a ter “outra predisposição para tratar desta questão”.
Se a debandada se concretizar e cada autarquia fizer como quer Rui Moreira, seria verosímil o Estado negociar individualmente com cada um dos 308 municípios?
“É o que acontece todos os dias, negociar à pesca. Não é nada de novo. O Estado fala com esta autarquia, fala com aquela, dá 4 milhões a esta, 5 aquela… há tudo menos um critério de equidade com as autarquias”, denuncia Aires Pereira.
E exemplifica:
“Vemos isso com o fundo ambiental, que este ano tem cerca de 1,2 mil milhões de euros. Sem qualquer tipo de escrutínio, vejo anúncios todos os dias a utilizarem esse dinheiro que resulta da taxa geral de resíduos para a qual todos contribuímos e nem todos somos ressarcidos na proporção daquilo que lá colocamos. Fazem-se autênticos passeios pelo país em que se entregam cheques para fazer isto ou aquilo. Muitas dessas coisas de duvidoso enquadramento no fundo ambiental. O Governo pesca à linha todos os dias”.
“Lá por Rui Rio ter estado de acordo não significa que tenha razão”
“O quadro de descentralização que o Governo está a usar para fazer a transferência para as autarquias resulta da despesa apurada em 2018”, contextualiza o presidente da Câmara da Póvoa. Quadro esse que resulta de um acordo entre António Costa e Rui Rio, certo? “Eventualmente resulta. Mas lá por Rui Rio ter estado de acordo não significa que tenha razão. Percebo o acordo do lado de António Costa, Já não percebo do lado de Rui Rio”, responde Aires Pereira, que apoiou Montenegro.
Recorda, contudo, que em 2018 “foram criadas duas comissões de acompanhamento e nada foi feito”: “Coloco uma questão: se tudo foi tão bem feito, porque é que a ministra [Alexandra Leitão, ex ministra da modernização do Estado e da Administração Pública] não continuou? Porque houve esta rutura? Quem teve esta responsabilidade, acompanhou o processo e deveria responder por ele nesta altura, já lá não está. É tudo muito estranho!”.
4 milhões de prejuízo na Póvoa
Concretizando o problema da Póvoa, o autarca adianta que, “fazendo contas e, até ao final do ano”, terá um prejuízo “de cerca 4 milhões de euros” com esta transferência de competências.
“O que preocupa muito é que a direção geral de educação que tem as comissões de acompanhamento a fazer a validação das despesas em todos os municípios diz que só conclui o seu trabalho em dezembro de 2022! O que quer dizer que já não será possível incluir isto no orçamento de 2022, porque já estará concluído e aprovado. Ou seja, na melhor das hipóteses, só em 2024 é que teríamos esta correção. Andaríamos 2022 e 2023 a financiar o orçamento geral de estado e a criar inúmeras dificuldades, pois não há muitas condições para acomodarmos no nosso orçamento um prejuízo na ordem dos 4 milhões de euros”.
Mais: “Isto se os concursos internacionais entretanto lançados a propósito da alimentação ficarem estabilizados num preço que seja aceitável. Porque o governo está a pagar 1,4€ por refeição e os concursos têm sido lançado a 3€ e têm ficado desertos. O que quer dizer que teremos o triplo da despesa para assumir. Perante este estado de coisas, corremos o risco de o tribunal de contas, a seguir, nos chumbar as contas, porque não bate certo com a lei”.
Como diz o presidente da República isto está mesmo empancado? “Falta saber se está empancado por uma questão de agenda ou de agenda política”.
O que “parece óbvio” é que “se nada for feito, a descentralização vai correr mal, porque os municípios entrarão em rutura financeira e nem terão capacidade para resolver as questões da educação nem as outras com as quais se comprometeram com as populações. E os meninos vão ter que continuar a ter aulas, aquecimento na escola, refeições…”.
O autarca realça ainda a “perversidade do processo” quando o compara com o da Parque Escolar, que recebe seis vezes mais, com escolas recentemente intervencionadas e recuperadas. “Para nós não está em causa a descentralização, mas a forma como está feita”.
E recorda: “Chamei a atenção de que não fazia sentido que entrasse em vigor no dia 1 de abril, o último período, o mais sensível das nossas escolas. Haveria algum problema para que passasse para o início do ano escolar, que seria setembro? Porquê esta teimosia?”.
Não foi aceite? “Não. Chegaram a meio do mês de março e disseram: se vocês não receberem os funcionários, eles não vão receber vencimento. Que é um problema social inaceitável, que os municípios não poderiam tolerar. Aceitamos e fizemos o pagamento, recebendo coisas como esta: os funcionários do Estado não têm seguro e quando passaram para as autarquias passaram todos obrigatoriamente a ter um seguro! Foi uma despesa adicional do final do mês de março de mais de 100 mil euros só no caso da Póvoa de Varzim. Multiplique isto pelos 308 municípios do país e estamos a falar de dinheiro”.
O problema desta descentralização é basicamente um problema de dinheiro? “Para já, é um problema de dinheiro. De seguida, não será só um problema de dinheiro, porque não me quero limitar a pagar as contas da escola. Quero ter participação no processo educativo. Quero ter poder de decisão”.
Lança críticas à Comissão Nacional de Educação por ter limitado a função dos municípios quase que só à contratação de funcionários administrativos e auxiliares das escolas. “Eu, para além de fornecer vassouras, água, eletricidade e outras coisas, não tenho nenhuma capacidade para dizer: a sociedade poveira acha que neste aspeto da formação dos meninos tenhamos atenção a esta ou aquela caraterística. Ou de ouvir os nossos empresários quanto às necessidades de formação”.
Subalternização do poder autárquico? “Não tenho dúvida. Há uma tentativa de tarefização das autarquias. Dão-nos umas tarefas para exercermos, mas, aquilo que nos importava, que era fazer parte do processo educativo em pleno, ficou completamente afastado”.
Como desatar este nó? “Com relativa facilidade. Sabemos o que gastamos até aqui e o que vamos gastar até ao final do ano. É colocar isso desde já no orçamento de 2023 e depois resolver o quadro em que os municípios vão poder ou não intervir”.
Regionalização: “Há muita decisão que pode ser tomada sem estarmos a ir em peregrinação até ao Terreiro do Paço”.
Face a todos estes problemas, está o poder autárquico maduro para avançar para a regionalização? “Se nada for feito acho que ele até apodrece”, responde com humor. Tem a esperança de que a pergunta para o referendo em 2024 seja “menos complicada” e “mais objetiva” do que a de há 24 anos.
“Mas um quadro de regionalização como este, com base no que são as nut’s e as ccdr’s, parece ser consensual entre todos. E isso aliviaria muito a tensão. E depois fazer com que haja uma regionalização efetiva, com poder político legitimado através do voto e com poder de decisão. Isto é, que haja por parte da administração central e do estado uma deslocalização do que hoje são os aparelhos da administração central, as várias direções gerais, os vários organismos. E isto não tem sido muito fácil. Lembre-se do que se passou com o Infarmed ou o Tribunal constitucional, quando se diz que ir para uma determinada terra reduz a dignidade de uma instituição. O país é todo digno e contribui todo para a coesão e riqueza nacional. Esta é a discussão mais difícil: a da repartição do poder, por forma a que cada região possa decidir a esfera de competências. A nível de regiões, há muita decisão que pode ser tomada sem estarmos a ir em peregrinação até ao Terreiro do Paço”.
Aires Pereira está mais confiante quanto ao esclarecimento dos cidadãos. O medo da corrupção dos autarcas foi o argumento utilizado há 24 anos, “o de que tudo resultaria num aumento de cargos e tachos que aumentaria a despesa”. Hoje, defende, isso está mais esclarecido e as pessoas mais consciente “do tempo e dinheiro que se desperdiça pelo centro de decisão estar num determinado sítio. Exemplifica com o papel que as autarquias assumiram no decurso da pandemia.
“O psd também tem de mudar de vida. Porque se não um dia destes um táxi chega para nos meter a todos lá dentro”
Por último, o autarca do PSD deixa um recado para o seu próprio partido. “Tem de mudar de vida, porque se não um dia destes um táxi chega para nos meter a todos lá dentro”.
Mudar de vida é incluir o Chega? “Não. É os militantes não passarem a vida a alimentar uma descredibilização do próprio líder, como se tem assistido nos últimos tempos. É não passar o tempo a colocar noticias na comunicação social e a torpedear os lideres de forma a que eles tenham de passar a vida a olhar para o retrovisor em vez de seguir e olhar para a frente. E este é um esforço de todos, se queremos que o PSD não seja o tal partido do táxi”.
O que se espera da nova liderança? Será um líder para queimar nos próximos quatro anos?
“Os líderes estão todos sujeitos a uma avaliação de dois em dois anos e este também. O presidente do partido tem uma tarefa ciclópica. Quer pelo que acontece á nossa direita, com o Chega e a Iniciativa Liberal, dois partidos recentes com gente nova e ambição, com projetos muitas vezes disruptivos e que obrigam a colocar novas questões em cima da mesa, quer pelo que é a liderança do PS muito consolidada num governo com maioria absoluta, com um conjunto de recursos financeiros enormes para gerir. A tarefa não é fácil. Cabe a cada militante do partido ter uma participação construtiva”.
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