Quando o PAN caiu, não um, mas três degraus, na noite eleitoral de 30 de janeiro (perdendo, em comparação com as legislativas de 2019, três deputados), a agora deputada única Inês Sousa Real também se viu obrigada a abandonar o gabinete do partido, no piso principal do Palácio de São Bento, paredes-meias com o hemiciclo, passando a distribuir a sua equipa de trabalho por duas salas no piso intermédio do edifício – que, na anterior legislatura, eram “morada” das deputadas não inscritas Joacine Katar Moreira e… Cristina Rodrigues, que se “divorciara” do PAN no decorrer do mandato.
Descendo dois lanços de escadas, com passos abafados pela alcatifa vermelha, encontramos Inês Sousa Real, que nos recebe à porta de um gabinete renovado, pintado de fresco, decorado com aprumo, mas situado num dos corredores labirínticos e exíguos da Assembleia da República que, regra geral, não merecem visitas frequentes das câmaras e objetivas. “Pelo menos, obriga-nos a uma maior ginástica quotidiana, entre descer e subir escadas”, graceja, debaixo do umbral, a porta-voz do PAN, antes de passar às análises (mais) sérias, já sentada a uma mesa redonda: “Isto também denota a forma como continuam a ser tratados os deputados únicos, como são olhados como deputados de segunda categoria”. “Todas as forças políticas que elegem deputados deveriam estar representados no piso principal do Parlamento, não é?”, diz.
As primeiras considerações sobre a nova realidade soam num lamento, depois de interrompida a (aparente) tendência de crescimento do partido, que se iniciara em 2015 – com a estreia no Parlamento do anterior porta-voz, André Silva, como deputado único. O resultado das legislativas de 2022 continua a ser uma “espinha na garganta”, que, segundo Inês Sousa Real, “não reflete a perceção que as pessoas têm do projeto do PAN, nem aquele que foi o trabalho do partido ao longo dos últimos anos”, mas apenas o facto de “terem temido, e rejeitado, neste momento, uma crise política”. “O contexto, para mais com o anunciado crescimento da extrema-direita, resultou num voto útil e em massa no PS. E isso prejudicou, e muito, o nosso partido”, lamenta.
Decorridos dois (longos) meses após o ato eleitoral, a porta-voz do PAN confessa que os primeiros passos pelos corredores do Palácio de São Bento, nesta legislatura, “não foram tão fáceis”, em comparação com 2019, mas admite ter encontrado um bálsamo inesperado no “apoio e empatia” demonstrados pelos colegas de outros partidos, prova “que reconhecem o trabalho feito [pelo partido] nos últimos dois anos e como alguns dos nosso deputados vão fazer falta nesta casa”.
“Este novo quotidiano não deixa de ser algo caricato. Entre plenário, as comissões, o subir e descer as escadas, apanhar o elevador… Se já com um grupo parlamentar era complexo, num contexto de deputado único temos de nos multiplicar. É diariamente uma correria por estes corredores. E quando se começa a ouvir o toque para o plenário, por vezes, faz-nos lembrar os tempos de escola. Não há tempo para parar”, resume, entre sorrisos.
O PAN somou pouco mais de 90 mil votos, depois de ter conseguido quase 175 mil em 2019 – Inês Sousa Real foi eleita por uma “unha negra”. A deputada única não nega o passo atrás, mas, neste momento, prefere olhar para o “copo meio cheio”, o mesmo será dizer, aproveitar nova oportunidade para “continuar a defender o projeto e as causas” do partido no palco da Assembleia da República. “Em democracia é assim mesmo: ou crescemos ou não. Mas, sinceramente, também admito que o resultado até poderia ter sido pior. Temos o exemplo de outras forças políticas que, pura e simplesmente, desapareceram do Parlamento [como o CDS]. Apesar de tudo, prefiro pensar que voltámos a conseguir estar aqui, e que isso nos permite continuar a defender melhor o nosso projeto e as nossas causas”, refere.
“Diálogo” com PS para “fazer avançar” o PAN
Inês Sousa Real reentra no Parlamento “sozinha”. Nos próximos quatro anos, a porta-voz do PAN tem lugar cativo numa das coxias do hemiciclo, enconstada à fatia rosa (e maioritária) do PS, com 120 deputados. Um cenário de maioria absoluta que, admite, vai obrigar a um maior “jogo de cintura”. “Estando dependentes da decisão de uma única força política vai ser sempre difícil avançar com as nossas iniciativas, o que vai tornar a legislatura mais desafiante”, refere.
Neste contexto, Inês Sousa Real promete apostar no diálogo e na convergência, o que, na verdade, nem sequer é uma novidade. A solução pode mesmo passar pela mesma receita usada na discussão do Orçamento de Estado (OE) para 2022 – que, recorde-se, o PAN foi o único partido da oposição a viabilizar (embora sem votos suficientes para evitar novas eleições).
O clima de compromisso entre PS e PAN parece, para já, manter-se vivo: como foi possível confirmar na primeira audição com António Costa, logo após as eleições, com o primeiro-ministro a garantir a Inês Sousa Real que os acordos estabelecidos entre os dois partidos, no âmbito do OE 2022, vão ser “honrados”.
“Sempre fomos um partido dialogante. Aliás, foi graças a esse posicionamento que conseguimos fazer passar muitas das nossas propostas, durante a legislatura anterior. Obviamente, neste contexto de maioria absoluta, é ainda mais fundamental continuar a exisitir diálogo para alcançamos avanços. Recordo que o PAN foi a única força política que deu a oportunidade ao OE 2022 de ser aprovado na generalidade, e ser discutido na especialidade”. Segundo Inês Sousa Real, uma prova “de sentido responsabilidade” que “não foi recompensado” pelos eleitores nas urnas.
Inês Sousa Real “não compreende” ataques à sua liderança e “convoca” oposição interna para congresso eletivo no verão de 2023
A porta-voz (e deputada única) do PAN prefere olhar em frente, mas, na ressaca das legislativas, foram várias as vozes que, no seio do PAN, se fizeram ouvir contra a liderança de Inês Sousa Real. Entre elas, a de André Silva, o seu antecessor, que abandonou a liderança do partido no verão de 2021, afastando-se igualmente do cargo de deputado, para o qual foi eleito em 2019.
André Silva juntou-se ao coro interno de críticas, considerando que Inês Sousa Real se deveria demitir e convocar um congresso eletivo. Posição que a porta-voz do PAN diz “não compreender”. “Prognósticos depois do jogo é fácil. André Silva deixou o jogo a meio, deixou a meio o mandato como porta-voz e como deputado do PAN, pura e simplesmente desapareceu da vida política ativa, não quis apresentar uma lista a congresso, participar na campanha para as legislativas… Seria muito fácil entrar aqui numa troca de críticas, mas penso que isso não dignificaria o partido. André Silva teve um papel importante no PAN, mas não compreendo a sua posição e os ataques que tem vindo a fazer à atual liderança do partido na comunicação social”.
Em resposta aos críticos, muitos dos quais abandonaram a comissão política nacional do PAN, Inês Sousa Real garante que, após os (maus) resultados das eleições de 30 de janeiro, “têm sido feito uma reflexão interna” e acrescenta que “a larga maioria do partido está com a atual direção”, eleita, em congresso, realizado no verão do ano passado, para um mandato de dois anos.
“Ainda nem tivemos tempo para colocar em marcha a moção global estratégica que foi aprovada em congresso. Aquilo que alguns militantes do partido estão a pedir nem sequer está previsto estatutariamente. Para mais, acredito que o comandante é o último a abandonar o navio. Aceitei este mandato para o bem e para o mal, e acho que deve ser o líder a assumir também os momentos menos bons”, afirma, convidando os críticos a aguarda pelo próximo congresso eletivo, que só se vai realizar no verão de 2023.
“Irmos a quente para o congresso eletivo seria precipitado… Só serviria para lavar mais roupa suja em público. Ia afastar-nos do que realmente interessa, que é o nosso trabalho. É isso que as pessoas esperam do PAN”, conclui.
“Dar dignidade” ao trabalho dos deputados únicos
“Sozinha”, mas segura. Inês Sousa Real já não se confunde nas curvas e contracurvas do Palácio de São Bento. De manhã, quando chega, ainda antes do pequeno-almoço, ou ligar ecrãs de computadores, a porta-voz do PAN costuma perder, ou melhor, ganhar algum tempo na companhia do Tobias, o gato que vagueia pelos corredores do Parlamento, e não se afasta muito das proximidades da cantina e do bar (especialmente quando os ponteiros do relógio indicam a hora das refeições).
Como deputada única, a líder do PAN quer mudar o Parlamento. E, para isso, conta com o apoio do outro deputado único eleito para esta legislatura – Rui Tavares (do Livre). “O que se tem visto, desde 2015, é que os grupos parlamentares, a conferência de líderes e o próprio regimento da Assembleia da República não têm tido abertura para que os deputados únicos trabalhem. Temos um regimento que permite apresentar, em quatro anos, apenas duas iniciativas legislativas e isso é, de facto, restringir a nossa atividade. Acho que lá fora, se as pessoas soubessem que não nos deixam apresentar mais iniciativas, fazer oposição, fazer, no fundo, o nosso trabalho, ficariam certamente revoltadas. Afinal, são elas que deixamos de poder representar. E é para isso que somos pagos pelo povo português”, sublinha.
Em passeio pela Casa da Democracia – e ao sabor do café –, Inês Sousa Real solta o queixume “de que, em Portugal, continua a existir uma mentalidade que há forças políticas com mais dignidade que outras”. “Isso vê-se até na forma como surgem os bloqueios a alterações do regimento da Assembleia da República”, aponta.
Com ou sem resistência, o PAN já apresentou propostas de alteração: Inês Sousa Real quer que os deputados únicos possam fazer o agendamento comum de, pelo menos, seis iniciativas por sessão legislativa; outra proposta passa pelo retorno dos debates quinzenais, com a presença do primeiro-ministro. “Já falámos desse assunto com António Costa e ele não fechou a porta em se deslocar, com maior frequência à Assembleia da República. O importante é encontrar um modelo que permita debater, de forma mais estrutural, as reformas que o País tem de fazer”, confidencia.
Boas intenções não faltam, como se vê (e lê). No final do dia, porém, continua por se perceber como vai o PAN contornar o atual quadro político português e, principalmente, fazer ouvir a voz de Inês Sousa Real entre os 230 deputados eleitos para a Assembleia da República. O passeio foi agradável, mas falta ainda uma última pergunta, talvez a única que interessa neste momento: contando com a perda do grupo parlamentar, com a maioria absoluta do PS e as resisitências à alteração do regimento parlamentar para deputados únicos, há espaço (e esperança) para o projeto e causas do PAN nestes próximos quatro anos? “Sim, claro”, afirma, com convicção, Inês Sousa Real.
“O PAN faz falta à democracia portuguesa – sobretudo para dar voz à causa animal. Ninguém tenha dúvidas! É cada vez mais importante o nosso partido ser ouvido, e o nosso projeto e causas serem concretizadas. Mais nenhum outro partido vai perder agendamentos para colocar em cima da mesa o bem-estar animal”, assegura.