João Gabriel, antigo jornalista, hoje a trabalhar em comunicação e radicado no Dubai, partilha três histórias marcantes, e pouco conhecidas, que ajudam a definir a personalidade de Jorge Sampaio.
O caso do voto em Otelo
Por temperamento, Sampaio era cuidadoso na reflexão, mas demasiado transparente e impulsivo na ação. Estava habituado à réplica, reagindo por vezes, com uma impetuosidade excessiva às criticas ou, em outras ocasiões, à ignorância de algumas perguntas. Não era um problema de fundo, apenas de forma. A verdade é que as relações com a imprensa eram demasiado crispadas.
Os jornalistas, talvez porque o histórico a isso levava, cultivavam dele uma prudente reserva. “Não lhes devo nada”, costumava responder sempre que o assunto era abordado. Tinha razão, mas não iria longe com ela.
[Durante a candidatura], Sampaio sabe que terá de fazer concessões, mas resiste a adulterar a essência. “Não me peçam para ser e parecer o que não sou, a política não pode impedir-nos de sermos o que somos e como somos”.
Num almoço em Cascais, em Agosto de 2019, em que celebrávamos os 80 anos de Jorge Sampaio, foi-me pedido que contasse algumas histórias do tempo em que tinha trabalhado com Sampaio em Belém. O primeiro episódio leva-nos à primeira campanha presidencial em 1995.
Na primeira grande entrevista que deu enquanto candidato, em Outubro de 1995, ao jornal Semanário, já desaparecido há muitos anos, surgiu o primeiro confronto entre o candidato e o seu staff e a primeira grande lição que aprendi no capítulo da comunicação.
A meio da manha do dia marcado para a entrevista, os jornalistas José Teles e Daniel Adrião subiram ao quarto andar do nº 66 da Avenida Visconde Valmor, há poucas semanas transformado na sede de campanha e “estado maior” da candidatura presidencial.
Num gabinete em tons de azul, com mobiliário sóbrio e um quadro enorme de Pedro Portugal que parecia vigiar o gabinete, Sampaio sujeitou-se a uma minuciosa revisão do seu passado político.
A entrevista tinha sido preparada com cuidado, mas, como em tudo na vida, há sempre imponderáveis, e neste caso, para nós, que o ouvíamos, o imponderável foi mesmo o candidato.
“Em quem votou nas primeiras presidenciais?” perguntou Daniel Adrião [então no Semanário e militante do PS e recente rosto da oposição a António Costa, nos últimos dois congressos], já lá iam mais de 20 minutos de entrevista. Sampaio respondeu com uma hesitação: “Quem eram os candidatos nas primeiras?” Adrião esclarece: “o general Eanes, o Pinheiro de Azevedo e Otelo”. Sampaio começou por dizer que, “assim de repente, não se lembrava” e estaria tudo bem se a resposta tivesse ficado por aí, mas não ficou. Sampaio concluiu: “Admito ter votado Otelo, como forma de protesto”.
Todos quantos estávamos naquele gabinete, enterrámo-nos vagarosamente nos sofás plantados à volta da secretaria onde Sampaio respondia. Era um argumento servido de bandeja à candidatura de Cavaco. Tínhamos essa certeza e, poucos dias depois, a confirmação. Queriam colar Sampaio a uma esquerda radical e ao perigo que ela representava para o país, recordaram a coligação com o Partido Comunista em Lisboa e agora, havia um brinde inesperado, o voto em Otelo.
Quando a entrevista acabou e os jornalistas saíram, confrontámos Sampaio com aquela declaração e o que ela iria custar. “Bastava ter dito que já não se lembrava, porque teve de dizer aquilo? Perguntava, genuinamente preocupado, António Costa, director de campanha.
“Bastava ter dito que não se lembrava, porque foi dizer que votou em Otelo?”, perguntou um aflito António Costa
Sampaio ouviu-nos e quando todos tínhamos terminado de o recriminar, respondeu pausadamente: “Disse que votei em Otelo porque é verdade! Cheguei aqui sendo o que sou, não vou mudar!”
Aquela resposta -“porque é verdade” resume o que é Sampaio, a sua integridade ética, os seus valores e o apego à verdade.
“Vai trabalhar, malandro!”
A segunda história que contei naquela tarde tinha a ver precisamente com o orgulho de Sampaio na politica. Tudo começara na Cidade Universitária, no despertar da década de 60, quando as actividades associativas foram fazendo despontar a vocação para a política. Sempre combateu aqueles que tinham da política uma visão redutora e deturpada, como se de gente menos recomendável se tratasse. Foi uma batalha de sempre.
Numa ação de rua, também em 1995 – creio ter sido em Leiria– Sampaio descia uma das ruas mais movimentadas da cidade, com os apoiantes locais, bandeiras, autocolantes e toda a parafernália própria de qualquer campanha. Sampaio lá ia distribuindo alguns folhetos, cumprimentando uns, abraçando outros, acenando, parando para falar – de quando em vez – com um ou outro popular.
Tudo corria bem até que, nas costas de Sampaio, se ouviu um sonoro “Vai trabalhar malandro”. Qualquer outro teria fingido não ouvir aquela provocação e seguiria em frente. Sampaio fez precisamente o contrário. Não só travou a marcha como decidiu voltar atrás. Ficamos todos na expectativa do que se iria passar a seguir.
Um popular: “Vai trabalhar, malandro!” Jorge Sampaio: “Repita lá isso…”
Quando Sampaio ficou cara a cara com o autor do grito apenas lhe disse: “Repita lá o que disse!” O homem – na casa dos 30 anos – não conseguiu articular palavra. A atitude Sampaio foi de tal maneira inesperada que o homem não só ficou paralisado como mudo. O silêncio só voltaria a ser quebrado quando, segundos depois, Sampaio num tom ríspido disse “trabalho 12 a 14 horas por dia, chega?” virando costas e retomando o percurso que tinha interrompido.
A importância de respeitar os outros (ou uma lição de boa educação)
A última memória que contei naquela tarde, retrata o sentido de justiça de Sampaio e leva-nos até à Figueira da Foz, ainda em 1995. Tratava-se da inauguração da sede de campanha local seguido de jantar. Como o espaço da sede era muito pequeno tinha ficado acordado que as intervenções ficariam guardadas para o jantar, num restaurante em Buarcos.
O nome do restaurante remetia para um temperamento vincado: “O teimoso”. Era um espaço rectangular de boas dimensões, dividido ao meio por umas escadas assinalavam dois planos com alturas diferentes. Havia mesas enormes que corriam todo o comprimento da sala.
Quando Sampaio chegou já as pessoas enchiam o interior do restaurante com as mesas generosamente municiadas de comida. A mandataria da Figueira da Foz, Laurinda Natércia, uma professora de História do ensino secundário, que Sampaio não conhecia, dava mostras de algum nervosismo. Afinal de contas era a primeira vez, em 47 anos que levava de vida, que assumia um apoio político e logo como mandataria.
Já no interior, em cima de um pequeno estrado montado para o efeito, e de onde se tinha uma visão ampla da sala, a mandataria tirou do bolso três, quatro folhas cuidadosamente manuscritas que tinha preparado sabe-se lá durante quanto tempo. Aquele era o momento. As mãos tremiam-lhe ligeiramente, mas sentia-se que tinha gosto em estar ali, em ser a anfitriã de Sampaio naquela noite.
A leitura corria pausada e nervosa quando, primeiro de uma forma envergonhada, depois de forma assumida, a assistência decidiu “atacar” as iguarias servidas nas mesas. O barulho de pratos e talheres já era tal que mal se conseguiam ouvir as palavras da professora. O rosto de Sampaio que observava aquela cena como se de um realizador de cinema se tratasse já estava sombrio, totalmente incrédulo. Ameaçava aquilo que entre os seus convencionamos chamar “a fúria dos justos”.
Quando a professora acabou a intervenção ouviram-se uns tímidos aplausos . O silêncio ainda não era completo, mas era agora muito maior, afinal de contas era a vez de Sampaio falar. O barulho dos pratos e talheres deram uma trégua. O candidato agradeceu as palavras da mandataria, pedindo-lhe inclusive as folhas onde o discurso que acabara de pronunciar estava escrito, guardando-as no boldo do casaco. De seguida virou-se para a assistência e atirou, visivelmente crispado: “Uma vez que V.Exªs estão mais interessados em comer do que em ouvir o discurso da Drª Laurinda , não vale a pena eu dizer mais nada, já percebi que não estão cá para ouvir, V Exªs querem é continuar a comer”. Foram as únicas palavras de Sampaio nessa noite em Buarcos, descendo imediatamente do estrado na companhia da sua mandatária.
Percorreu em passo apresado a sala a caminho da porta e saiu. Não tolerava faltas de consideração ou respeito fosse com quem fosse. Naquela noite tinham desconsiderado uma professora primária que pela primeira vez em toda a sua vida se assumia politicamente enfrentando aquela estranha plateia para dar disso testemunho público. Era como se lhe tivessem faltado ao respeito a ele. Nunca transigiu nesta matéria.