Não é a primeira vez que um juiz troca os tribunais por um lugar executivo no governo, mas nem por isso a questão é mais pacífica entre os membros da classe judicial. “Os juízes reprovam essa situação, não por constituir uma ilegalidade – não é isso que está em causa –, mas porque pode levantar problemas de ética” e ferir a imagem de independência da Justiça, defende o presidente da Associação Sindical de Juízes Portugueses (ASJP), em declarações à VISÃO. “Incómodo e reprovação” são dois termos que, para Manuel Ramos Soares, resumem bem o estado de espírito com que a magistratura olha para quem dá esse salto.
Da longa lista de secretários de Estado (num total de 50) de Costa constam três nomes familiares no universo da magistratura judicial: Antero Luís, Mário Belo Morgado e Catarina Sarmento e Castro.
Se Catarina Sarmento e Castro, secretária de Estado de Recursos Humanos e Antigos Combatentes, tem um perfil mais discreto – foi, durante nove anos e quase até chegar ao Governo, juíza do Tribunal Constitucional –, as duas primeiras personalidades desta lista tiveram carreiras mais expostas à atenção mediática.
Antero Luís passa do Tribunal da Relação de Lisboa para as funções de secretário de Estado-adjunto e da Administração Interna. Na Relação, lidou com o processo dos motards do grupo Hells Angels, mantendo a prisão preventiva a alguns dos arguidos. Antes disso, apresentou uma queixa ao Conselho Superior da Magistratura (CSM) contra o juiz Carlos Alexandre – entretanto arquivada pelo Supremo Tribunal de Justiça – pelas referências que lhe eram feitas na investigação aos vistos gold, em que foi visado o antigo responsável do Instituto dos Registos e Notariado António Figueiredo, com quem mantinha uma relação de proximidade. O juiz-desembargador foi vogal do CSM, diretor-geral do Serviço de Informações e Segurança (entre 2005 e 2011) e, logo de seguida, secretário-geral do Sistema de Segurança Interna (até 2014).
Mário Belo Morgado, ex-diretor dos serviços judiciários e o primeiro civil a ter comandado a PSP, é o terceiro magistrado do Governo. Acusado de seguir uma linha que abre a porta à ingerência na atividade judicial, ainda em abril deste ano, o novo secretário de Estado-adjunto e da Justiça falhou a reeleição para vice-presidente do órgão que supervisiona a magistratura judicial. Entre as opiniões mais polémicas do juiz-conselheiro está a defesa de uma fusão do Tribunal Central de Investigação Criminal – por onde passam os casos mais mediáticos da Justiça portuguesa – com o Tribunal de Instrução Criminal; ou a defesa de que casos como os do juiz Neto de Moura devem ser punidos com penas mais graves do que a simples advertência.

Barreira ética
Com a tomada de posse do novo Governo, Justiça, Administração Interna e Defesa Nacional passaram a ter juízes em lugares de relevo quando, por comparação, no primeiro governo de António Costa, apenas a juíza Helena Mesquita Ribeiro integrava a equipa, nas funções agora desempenhadas por Belo Morgado. E quando, antes disso, Pedro Passos Coelho (em 2011 e em 2015) e José Sócrates (2005-2009) não contaram com qualquer magistrado nas equipas que lideraram.
“Uma coisa é um cargo técnico, em que se pode discutir a utilidade do juiz – no caso de serem chamados para assessores da ministra da Justiça, para assumirem funções como diretor-geral da Administração da Justiça ou funções idênticas na área da Administração Interna”, ressalva o presidente da associação sindical que representa 95% dos juízes portugueses. “Esses cargos, podemos discuti-los, mas não levantam problemas”, diz Manuel Ramos Soares. Outra coisa são os “cargos de confiança política, como os de ministro e secretário de Estado, que levantam problemas éticos”, concretiza o magistrado. A dúvida aplica-se tanto aos três novos secretários de Estado como a magistrados que tenham passado pelo governo ou que venham a fazê-lo, clarifica o presidente da ASJP.
António Martins era presidente da ASJP quando, em 2008, foi aprovado por unanimidade, no 8º congresso dos juízes portugueses, o documento Compromisso ético dos juízes portugueses. Trata-se, recorda à VISÃO, do produto de um “grupo de trabalho vastíssimo de juízes” que, há mais de uma década, “pensaram a ética” da classe. “Ser como se deve ser e parecer como se é” seria, nas palavras do magistrado, uma das ideias fundamentais a retirar daquelas 30 páginas.
Num dos pontos desse documento, precisamente onde se concentram os princípios sobre a “independência” dos magistrados, lê-se que “o juiz respeita escrupulosamente o princípio da separação de poderes”. E, no mesmo parágrafo, acrescenta-se que “a salvaguarda da independência externa, que confere as condições de imparcialidade dos tribunais e garante a confiança pública na Justiça, leva a que o juiz se oponha a qualquer tentativa de politização dos seus órgãos próprios de governo ou da sua função”.
Os princípios orientadores da classe foram então reafirmados e estavam amplamente consensualizados, mas em 2015 e, novamente, em 2019, houve quem voltasse a dar o salto. “O que leva o poder político a considerar que os juízes têm um valor acrescentado na decisão política? Porque é que os foram chamar? Querem levar o prestígio que um juiz, no seu conjunto, enquanto classe, representa?” António Martins coloca as perguntas, mas deixa as respostas para os responsáveis políticos.
“O Governo compreende o incómodo” que a situação causa “e percebe que há dificuldades” que decorrem destas nomeações, explica Manuel Ramos Soares. “Se não resolve, é porque não quer, até porque, da nossa parte, não teria nenhuma dificuldade” em criar impedimentos à entrada de juízes na política, diz o presidente da associação sindical. “Quando uma pessoa, sendo juiz, transita imediatamente para a função governativa, pode ser útil para o exercício dessas funções, mas não é útil para a perceção de independência”, defende Ramos Soares. “Sobretudo”, acrescenta o magistrado, “quando regressa” aos tribunais.
Portas fechadas
O debate sobre os limites à ação dos juízes na esfera do poder político não é, claramente, matéria de direito. Fonte oficial do Conselho Superior da Magistratura salienta, em resposta escrita à VISÃO, que “o Estatuto dos Magistrados Judiciais autoriza que os juízes exerçam funções governativas, em regime de comissão não judicial”. Aliás, a nova versão do estatuto, que entra em vigor em janeiro do próximo ano, “reafirma o aludido entendimento”, destaca a mesma fonte.
Ramos Soares recorda a intervenção da atual direção da ASJP, no limite do tempo útil, para evitar a inclusão daquilo que classifica como um “absurdo” no novo estatuto dos magistrados: considerar que o exercício de funções governativas se pode equiparar a uma comissão de serviços judiciais. “Opusemo-nos, a Assembleia da República deu-nos razão e isso não passou, mas vinha aprofundar o erro, ao permitir equiparar uma coisa e outra quando são coisas distintas”, conta. António Martins é defensor da ideia de que “deve haver uma separação muito nítida e clara” entre Justiça e política e que “não deve haver portas de comunicação” entre os dois universos. “A partir do momento em que se entra por uma via, não se volta atrás.” Manuel Ramos Soares entende que “a pessoa não fica poluída” pelo facto de ter exercido funções num qualquer governo, mas ressalva que “a confiança é um valor fundamental” e, para preservá-la, olha para a forma como, noutros países, esta questão é tratada.
O processo Lava Jato deu tal notoriedade ao juiz Sérgio Moro que, mal assumiu funções como presidente do Brasil, Jair Bolsonaro formalizou o convite para que aceitasse ser seu ministro da Justiça. Moro aceitou e, com isso, fechou atrás de si a porta da magistratura – não há regresso possível ao lugar que o notabilizou. “Esse é o sistema que mais protege a independência do sistema judiciário”, defende Manuel Ramos Soares.
Em Portugal, nada impede o regresso ao tribunal e essa permissividade leva o presidente da ASJP a defender uma revisão das regras. Se não for para seguir o modelo absolutamente restritivo do Brasil, Ramos Soares defende que, pelo menos, a passagem pela cadeira do poder executivo implique cedências. “Devíamos ter um dos dois modelos: ou não regressar de todo [à magistratura] ou um sistema em que, quando se está no exercício [de funções governativas], se fica com a condição de juiz suspensa”, ficando também condicionado o reingresso nas anteriores funções a uma avaliação do Conselho Superior da Magistratura e perdendo a antiguidade que tinha antes.
Não seria o fim do problema, mas essa solução “resolvia, pelo menos em parte”, o dilema ético que agita toda a classe, sempre que um magistrado tira a beca e avança para a porta que dá acesso ao governo.
Catarina Sarmento e Castro – A outra juíza
Aos 49 anos, e pouco depois de o mandato de nove anos no Tribunal Constitucional ter chegado ao fim (em abril deste ano), a docente universitária (aqui a tomar posse) aceitou o convite e integra agora o Ministério da Defesa Nacional, como secretária de Estado de Recursos Humanos e Antigos Combatentes. Ex-membro do Conselho Consultivo da Procuradoria–Geral da República e do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, fez todo o percurso académico na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, onde é professora desde 1994. Foi ali que regressou depois da passagem pelo Palácio Ratton.