Entre os 19 arguidos do processo dos Comandos – que remete para a dura “Prova Zero” do 127.º curso, realizada no início de setembro de 2016, no Campo de Tiro de Alcochete, sob altas temperaturas que chegaram aos 40 graus, e de que resultaram as mortes dos instruendos Hugo Abreu e Dylan Silva, vítimas de “golpes de calor” e desidratação extrema -, o capitão-médico Miguel Domingues é dos que enfrentam uma acusação mais severa. Enquanto responsável pelo socorro aos recrutas, ao clínico foi atribuída pelo Ministério Público (MP) a forma mais agravada do crime de abuso de autoridade por ofensas à integridade física, que o Código de Justiça Militar pune com prisão de oito a 16 anos. Mas, a partir do próximo dia 31, o tempo é de contraditório, com o início da fase de instrução do processo, cuja condução, após sorteio, cabe à juíza Isabel Sesifredo, a qual decidirá que arguidos seguem, ou não, para julgamento.
Nos fundamentos que apresentou no requerimento de abertura de instrução, a defesa do capitão-médico Miguel Domingues, assegurada pelos advogados Paulo Sternberg e João Santos Carvalho, alega não haver dolo nos atos do seu constituinte. “Foi o próprio arguido quem, nos anos anteriores ao dos factos, sugeriu e recomendou aos seus superiores hierárquicos militares que, na composição da equipa sanitária, passasse a figurar também um médico – isto é, ao contrário do que havia sucedido em todos os cursos e desde o início da formação dos Comandos”, escrevem Paulo Sternberg e João Santos Carvalho.
Insistem depois que “não faz sentido entender que há dolo quando foi o arguido quem sistematicamente solicitou aos seus superiores hierárquicos militares quer o reforço dos meios materiais, quer dos meios humanos, na assistência aos formandos durante o curso de Comandos”. Argumentam ainda que o seu cliente sugeriu à hierarquia que “os formandos fossem especialmente hidratados”, e que até “pudessem usufruir de uma bebida isotónica” que o capitão-médico “prepararia”.
Outra sugestão do clínico, também ignorada pelos seus superiores, era a de que “todos os formandos pudessem, antes dos exercícios ou provas da tarde do primeiro dia, ‘ir ao charco’, ou seja, refrescarem-se abundantemente”. A defesa de Miguel Domingues diz que o capitão, “a partir do momento em que assumiu as funções de médico na equipa sanitária, assistiu centenas de formandos em cursos e provas anteriores, tendo sempre, do ponto de vista clínico, dirigido a sua conduta à melhor execução possível com as condições que lhe eram permitidas”. No caso concreto do 127.º curso, os advogados sublinham que o seu constituinte “promoveu vários contactos com o Hospital das Forças Armadas para a hipótese da necessidade de assistência de alguns daqueles formandos e eventuais transferências” para aquela unidade de saúde.
Paulo Sternberg e João Santos Carvalho alegam que, no despacho de acusação, o MP “conclui pela estranha história de um médico, um capitão dos Comandos, que, durante uma prova do respetivo curso, apesar de conhecer os sinais de uma particular doença de que todos os ofendidos padeciam, por desprezo e desrespeito pela vida, dignidade e liberdade da ‘pessoa humana’, uma vez que tratava todos os ofendidos como ‘pessoas descartáveis’, os obrigou à prática de exercícios físicos extremamente desgastantes e intensivos, sob elevadíssimas temperaturas do ar e do solo; racionou sistematicamente o consumo de água necessário a enfrentar condições atmosféricas especialmente adversas; e atuou com intenção de ofender o corpo ou a saúde de todos os ofendidos, pois previa que dessas ofensas podiam resultar graves lesões neurológicas, cardíacas, renais e hepáticas, ofensas que poderiam até evoluir para uma falência multi-orgânica; e tendo em conta que essas ofensas se podem traduzir numa falência de importantes órgãos e que, portanto, podem provocar perigo para a vida, esse médico se conformou com tais resultados, ainda que, no caso de certos ofendidos (Hugo Abreu e Dylan Silva), não tenha previsto a morte, confiando que esta não sobreviria”.
A partir desta interpretação que fazem da suposta narrativa acusatória, os advogados afirmam que o MP chega a uma “invulgar conclusão sofística sem quaisquer pressupostos lógicos”.