A esmagadora maioria dos portugueses terá ficado a saber quem era José Guilherme quando se soube que o construtor tinha oferecido 14 milhões de euros a Ricardo Salgado. Um presente milionário, disseram alguns. Uma liberalidade pelos bons conselhos de investimento, justificou Salgado, depois de ser chamado a explicar a oferta perante o procurador Rosário Teixeira e o juiz Carlos Alexandre, no âmbito do inquérito Monte Branco.
Já este ano, o nome de José Guilherme voltou a ser notícia. Desta vez por mais um suposto presente. E outra vez para um banqueiro. O “Expresso” noticiou a 7 de Janeiro que Tomás Correia, ex-presidente da Caixa Económica Montepio e atual presidente da Associação Mutualista Montepio (dona do banco), tinha sido constituído arguido por suspeitas de ter recebido, entre 2006 e 2007, 1,5 milhões de euros de José Guilherme, o antes discreto construtor que se tornou célebre pelo presente dado a Ricardo Salgado.
Em troca da “oferta” enviada de contas no banco suíço UBS, acredita o Ministério Público, estará um negócio de financiamento bancário para a compra de 50 hectares de terrenos na Amadora, numa área conhecida como Marconi Parque. O financiamento de 74 milhões de euros foi dado a meias pelo Montepio e pelo Banco Espírito Santo a um fundo de investimento imobiliário fechado, o Invesfundo II. E quem são os “donos” desse fundo? José Guilherme e João Silvério, outro construtor civil da Amadora, pai de Jorge Silvério e responsável pela urbanização do Marconi Parque.
Para os mais atentos à vida partidária da Grande Lisboa e aos processos judiciais das últimas duas décadas, Silvério e Guilherme não são dois apelidos desconhecidos. Antes de estar associado a estes presentes milionários, o nome de José Guilherme já tinha estado ligado ao ex-presidente da Câmara da Amadora Joaquim Raposo, ao ex-deputado do PSD Duarte Lima, a Armando Vara e José Sócrates e até ao primo de Sócrates que o Ministério Público quer agora constituir arguido na Operação Marquês (José Paulo Pinto de Sousa, residente em Angola). Cruzaram-se todos, direta ou indiretamente, num processo judicial que passou pelas mãos da Polícia Judiciária e do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) – que foi arquivado ao fim de 11 anos de investigação e teve interregnos de dois anos sem qualquer diligência.
O centro desse processo estava precisamente nas suspeitas de corrupção e tráfico de influência entre Joaquim Raposo, então presidente da Câmara da Amadora, e vários empreiteiros da Grande Lisboa. Suspeitava-se que o presidente da autarquia, um vereador e vários responsáveis pelo urbanismo tinham obtido contrapartidas em troca do licenciamento de vários projectos urbanísticos desde a década de 90, e à revelia do plano diretor municipal. Joaquim Raposo e José da Conceição Guilherme foram dois dos 24 arguidos do processo mas nada lhes aconteceu. Também o licenciamento de obras de outro empreiteiro – Jorge Silvério, que foi mandatário de Joaquim Raposo nas eleições de 1997 e 2001 -, esteve sob investigação.
Numa das intercepções telefónicas que constam do processo, Joaquim Raposo e Jorge Silvério combinaram a entrega de cheques como contrapartida para a câmara da Amadora aprovar a construção da Urbanização do Neudel, na Damaia – como Silvério pedia. Noutro momento, durante buscas judiciais, foi encontrado na casa de António Clemente da Silva, arquiteto que então dirigia o Departamento de Administração Urbanística da autarquia, um documento que dizia ter recebido “dinheiro de Jorge Silvério” e ainda “uma avultada quantia de dinheiro (72250 euros mais mil contos em escudos). Os investigadores suspeitaram que os montantes estariam ligados à aprovação de outra urbanização, a do Moinho da Vila Chã. Isto porque numa sociedade de construções de que Paulo Guilherme (filho de José Guilherme) era sócio – a Pauguifer – foi encontrado um documento que se referia a “gratificações arquitecto Clemente” e que justificava a emissão de dois cheques, ambos no valor de 500 contos (cerca de 2500 euros). Os dois cheques foram levantados, mas por pessoa de quem nunca se conseguiu apurar a identidade.
Paulo e José Guilherme voltam a ser citados porque Raposo lhes terá pedido bilhetes para um Benfica-Sporting e para os jogos do Euro 2004, inclusivamente para o jogo da final. E porque terão tido vários encontros com o então presidente da autarquia e o arquitecto Clemente da Silva, conhecido como “O Ladaínhas”, que ficaram registados no processo.
Eusébio, antigo jogador do Benfica, chegou mesmo a ser chamado ao processo como testemunha para explicar os pedidos feitos por José Guilherme para a compra de bilhetes para o final do Euro 2004, entre Portugal e a Grécia. “Eu não me importo que sejam duzentos [euros]… seja aquilo que for, arranja-me. Se puderes arranjar dez… e se puderes arranjar mais arranja… arranja vinte.”
O certo é que colateralmente o caso da Amadora acabou também por apanhar Armando Vara, José Sócrates e dois familiares do ex-primeiro-ministro. Num dos computadores de Joaquim Raposo foram encontradas referências à Mecaso, empresa gestora de participações sociais, que era da mãe de Sócrates e de um primo paterno do ex-governante. Numa conversa telefónica Raposo pediu a José Paulo Pinto de Sousa para ir “buscar a encomenda ao Banco Espírito Santo e entregá-la ao José Guilherme”. E além de tudo isto, se quisermos recuar mais longe, a Sovenco – empresa de importação de pneus de Sócrates, Armando Vara e de um sócio de Jorge Silvério – funcionou, em 1989, na Amadora, num dos escritórios de José Guilherme.
Curiosamente, mais tarde, no processo Freeport – que também acabou arquivado – outros procuradores voltaram a cruzar-se com os nomes de José Paulo Pinto de Sousa e de José Guilherme. O construtor foi um dos que, em 2005, beneficiou da alteração dos limites da Zona de Proteção Especial de Moura/Mourão, no mesmo dia em que foi alterada a Zona de Proteção Especial de Alcochete. Já José Paulo – que muitos conheciam apenas pela alcunha de “O Gordo” – era suspeito de ser o primo que Charles Smith dizia ter sido o intermediário do alegado suborno pago a José Sócrates, então ministro do Ambiente.
Mexer cordelinhos
José Guilherme não se mexia bem apenas junto do Partido Socialista nem da Câmara Municipal da Amadora. Durante a investigação, foram também detetadas relações próximas com membros do governo de Durão Barroso, como José Luis Arnaut, ministro adjunto de Durão e com quem, de acordo com os relatórios de vigilância da PJ, José Guilherme se encontrava no edifício da Presidência do Conselho de Ministros. Guilherme quereria ajuda para licenciar um couto de caça e Arnaut quereria ajuda para encontrar um espaço para “guardar o espólio de Durão Barroso”.
Também José Salter Cid, ex-secretário de Estado Adjunto e das Comunicações, terá estado sob suspeita de mover influências para a aprovação do tal couto de caça. E Álvaro Amaro, ex-secretário de Estado da Agricultura, terá tentado através de Marques Mendes convencer Teresa Zambujo, então presidente da Câmara de Oeiras, a aprovar um projeto de Guilherme para os terrenos da Fundição de Oeiras. O património imobiliário da Fundação viria a ser adquirido pelo fundo de investimento imobiliário fechado Invesfundo.
Atendendo aos autos do processo da Amadora, há muito tempo que José Guilherme é um empresário bondoso. No Natal de 2003, segundo a investigação, José e Paulo Guilherme terão oferecido não um, mas dois cabazes de Natal a José Neno, antigo vice-presidente da Câmara de Oeiras. Terão oferecido dezenas a outras pessoas. Custavam, cada um, um valor entre os 3 e os 4 mil euros.
José Guilherme terá também agradado Duarte Lima ao oferecer um piano Steinway a uma jovem promessa da música que não teria um piano em casa, e que o ex-deputado do PSD mencionara num artigo publicado no “Expresso”. Estávamos em 2004. A oferta custou 60 mil euros. Também Isaltino Morais terá sido agraciado com um almoço de aniversário, na Fortaleza do Guincho, no valor de 3400 euros.
Nestes tempos áureos, o empreiteiro da Amadora gabava-se de conseguir levar à sua Herdade dos Arrochais, na Amareleja (com 2700 hectares), para umas tardes de caça, a nata dos políticos e empresários. Dias Loureiro, Isaltino Morais e membros da família Espírito Santo seriam visitas habituais. Mas longe estarão os tempos áureos do construtor conhecido como “Zé Grande”. Só ao Novo Banco, no final do ano José Guilherme devia perto de 200 milhões de euros.