Os transexuais querem que a mudança de sexo deixe de ser associada a doença. Para isso, propõem o fim da exigência de relatórios médicos para uma decisão que consideram individual. Mas os técnicos de saúde que acompanham estes casos estão contra. Preferiam ver os deputados a denunciar a falta de meios.
No dia 31, Dia Internacional da Visibilidade Trans, a organização Ação pela Identidade (API) apresentou um documento com propostas de alteração à lei que permite mudar de sexo em Portugal.
O documento lembra que o Estado português deve seguir a recomendação da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa e criar uma terceira opção de sexo registado. “Defendemos a autodeterminação, para que não sejam precisos terceiros a aceitar a alteração dos documentos no que toca ao género. Cada um deve poder dizer se é masculino, feminino ou neutro”, explicou à VISÃO Júlia Pereira, a primeira candidata transgénero a integrar as listas para a Assembleia da República. A dirigente do Bloco de Esquerda, e também responsável da API, quer nova lei. “Hoje é preciso um diagnóstico médico para mudar de nome. Mas nós não consideramos o transgénero uma doença”.
É precisamente aqui que os técnicos de saúde confessam a sua perplexidade: “Há uma discordância entre o cérebro e o corpo. Para nós, é uma patologia. A abordagem terapêutica não deve fazer-se por decreto. Os transexuais precisam de hormonas e de cirurgia. Será feito a pedido do próprio?”, questiona Catarina Soares, coordenadora da consulta de sexologia clínica do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa.
A experiência de mais de 30 anos com perturbações de identidade de género levam esta psicóloga a apelidar de “levianas” as alterações sugeridas. “Vende e parece politicamente correto, mas é uma medida perigosa. Não se trata de uma questão política, mas sim clínica. Se o Parlamento se quer preocupar com as questões transgénero que alerte para a falta de centros cirúrgicos”.
A fraca resposta no Serviço Nacional de Saúde levou os transexuais a apresentarem seis queixas à Inspeção-geral das Atividades em Saúde (IGAS), que iniciou uma auditoria ao único serviço público que faz cirurgias de mudança de sexo, a Unidade Reconstrutiva do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra.
As consultas estão acessíveis em Lisboa, Porto e Coimbra, mas a cirurgia é hoje ainda mais difícil do que no passado. Corre-se o risco de passar a ter uma lei mais abrangente e um acesso aos tratamentos cada vez mais restrito. “Tenho cerca de dez pessoas à espera de cirurgia e não há resposta. Não é mudando a lei que isso melhora”, argumenta Catarina Soares, para quem as normas atuais são suficientes para mudar de nome. “Antes de 2011 era preciso um julgamento. O transexual punha o Estado português em tribunal por se ter enganado na atribuição do género. Perdi o conto às vezes que fui testemunhar em casos destes”.
Essa burocracia acabou, mas quem quiser mudar de género nos registos tem de pagar quase 300 euros. Outra injustiça que Catarina Soares gostava de ver trabalhada pelos deputados.
Embora não haja ainda discussão agendada, Sandra Cunha, deputada do Bloco de Esquerda, garante que será ainda nesta sessão legislativa: “Vamos avançar com um projeto-lei que contemple a despatologização do acesso à alteração do registo do nome e que defenda a autodeterminação em relação ao género, sem exigência de relatório médico. Trata-se de algo que se sente, não de uma doença”. Talvez, mas a polémica está garantida.