Carlos do Carmo Martins, 53 anos, vice-presidente da Câmara de Covilhã, tem nome de artista. Mas, nas últimas semanas, o seu fado é outro. As relações que manteve com José Sócrates e Carlos Santos Silva, sobretudo ao longo da última década, poderão vir a ter relevância para as investigações da Operação Marquês, que determinaram a prisão preventiva do ex-primeiro-ministro e do empresário beirão por suspeitas de fraude fiscal qualificada, corrupção e branqueamento de capitais. O papel de Carlos Martins junto de Sócrates, a ida para São Bento entre 2005 e 2011 a convite do amigo, e o seu património acumulado (ver caixa no final da página), suscitam dúvidas. A adjudicação de um contrato de mais de 58 mil euros para a elaboração de um plano de pormenor, em agosto deste ano, à empresa Proengel, de Carlos Santos Silva, por parte do atual poder autárquico, é outro dado a ter em conta. Junta-se a isso um par de decisões camarárias envolvendo verbas avultadas, já remetidas ao Ministério Público por setores da oposição, que alegadamente beneficiam a Constrope, antiga empresa de Carlos Santos Silva, citada no famoso caso da Cova da Beira, e também o seu primo, Manuel Santos Silva, presidente da assembleia municipal da Covilhã, num negócio de terrenos.
De “homem da mala” a “homem de mão” do ex-primeiro-ministro – expressões muito usadas na Covilhã -, sobre ele correm as mais diversas teorias, nunca desmentidas ou confirmadas: já o deram como motorista, guarda-costas e “moço de recados” de José Sócrates em Lisboa, ao ponto de ir levar ou recolher os filhos do amigo à escola durante o tempo que esteve em São Bento. A sua proximidade com o ex-PM advirá, sustentam alguns, dos “segredos” que guardará sobre ele. Numa entrevista à VISÃO, em julho de 2007, Carlos Pinto, ex-autarca do PSD na Covilhã, referiu-se à existência de um “dossiê reservado” sobre José Sócrates na autarquia – que ali foi engenheiro nos anos 80 – sugerindo “o mínimo de senso” e “discrição” aos socialistas no sentido de não se porem a jeito para reavivar o assunto. Com a vitória do PS nas autárquicas de 2013, o amigo de Sócrates e vice-presidente Carlos Martins tornou-se, na prática, o guardião do suposto dossiê: entre outras funções, é o responsável pelo acesso aos documentos administrativos.
Outras conspirações
Nos últimos tempos, outras conspirações vieram a lume, comentadas e relatadas à VISÃO por diversas fontes dos meios políticos na Covilhã sob condição expressa de anonimato, além de há muito serem alimentadas na blogosfera. Por exemplo: Carlos Martins teria, segundo essas teorias, disponibilizado contas bancárias pessoais para transferências que beneficiariam Sócrates e desempenhado, noutros tempos, o papel agora atribuído ao motorista João Perna, arguido na Operação Marquês. Ter-se-ia deslocado também a Paris no seu Mercedes 250, transportando malas com dinheiro. E, aquando da detenção de Sócrates, teria sido impedido pela polícia de entrar na residência do antigo chefe de Governo, na Rua Braamcamp, em Lisboa, para recolher documentos e computadores. A VISÃO não conseguiu confirmar estas informações: apesar das diversas tentativas de contacto com Carlos Martins e o seu gabinete na autarquia via telemóvel, mensagens e correio eletrónico, no sentido de confrontá-lo com vários elementos sobre a sua alegada relação com Sócrates, o vice-presidente da Câmara não esteve disponível para falar. Tal, de resto, não é motivo de admiração na região. Jornalistas de órgãos de informação local aguardam, há quase um ano, por respostas a pedidos de entrevista ao autarca.
Eleito este ano líder do PS na Covilhã – tendo entretanto suspendido o mandato -, Carlos Martins é amigo de Sócrates há mais de trinta anos, mantendo uma cumplicidade que nunca se cansou de repetir e publicitar na região. “O mê amigo Zé Sócrates”, é uma frase que, de tanto ser escutada da sua boca, lhe colaram à pele. Uma selfie publicada a 27 de junho na sua página pública no Facebook é ilustrativa: “Hoje, após reunião do Conselho Geral da Universidade da Beira Interior, o almoço da amizade. Sempre juntos!”, escreveu Carlos Martins nas redes sociais, ladeado pelo antigo chefe de Governo, sorridente.
Os amigos ‘inseparáveis’
O nome de Carlos Martins aparece associado a Sócrates por boas e más razões. Com uma diferença de quatro anos de idade – o ex-PM tem 57 – ambos poderiam contar histórias épicas da política, vividas de braço dado, pela consolidação do partido no distrito de Castelo Branco.
Por outro lado, o nome do antigo adjunto de Jorge Pombo (ex-autarca da Covilhã e antigo presidente da Associação de Municípios da Cova da Beira) já apareceu relacionado com o caso do alegado favorecimento de um dos concorrentes ao aterro da Cova da Beira, em 1997, que levou dez anos a ser investigado, acabando sem condenações. Carlos Martins não foi arguido no processo, mas foi investigado o alegado papel de “correio” que teria desempenhado entre a autarquia, o secretário de Estado do Ambiente, José Sócrates, e a empresa HLC.
O seu nome, de resto, já entrara na antena da PJ noutra investigação judicial, em 1995, na qual Sócrates foi escutado à conversa com um empresário amigo, preterido num concurso para a construção da Biblioteca Municipal da Covilhã. O então deputado socialista terá mostrado empenho em contrariar a decisão camarária a favor de uma sociedade participada pela GITAP, empresa de Álvaro Geraldes Pinto, financiador das campanhas eleitorais do PS e, à época, dominante no mercado de estudos e projetos da maioria das câmaras socialistas no País. Nesse diálogo então escutado e resumido pela PJ, Sócrates trouxera à conversa Carlos Martins, insinuando que o mesmo poderia ser importante no desbloquear do assunto, mas para tal, advertiu, era preciso que o empresário ajudasse o amigo da Covilhã. “Isto fica somente entre nós. Eu vou pedir ao Carlos Martins que te faça um telefonema. A mim, ele ajudou-me cerca de dez anos e não me ajudou apenas a mim, ajudou o Guterres, que é uma excelente pessoa para nós”, terá dito o deputado Sócrates, segundo a conversa autorizada judicialmente.
Dos dois casos, amplamente investigados pelo Público na altura, não resultaram consequências judiciais para qualquer dos visados. O jornalista José António Cerejo, autor dos artigos, foi ameaçado com queixas-crime por parte de Sócrates e Carlos Martins, mas só este concretizou, tendo, meses depois, desistido.
Um assessor especial
O ponto alto da proximidade entre os dois ocorreu, porém, a 29 de março de 2005 quando o então eleito primeiro-ministro contratou o amigo para assessor governamental com o pelouro do “Desenvolvimento Regional”. A dose repetir-se-ia no mandato seguinte, em finais de 2009, tendo Sócrates requisitado Carlos Martins “para o exercício de funções equiparadas às de assessor” do seu gabinete “e com igual estatuto remuneratório, através de requisição ao Partido Socialista”.
A contratação soou, desde logo, estranha, a vários colaboradores do então chefe de Governo em São Bento, segundo soube a VISÃO. Desde logo pelo currículo: Carlos Martins trabalhara na agência funerária Paraíso, na Covilhã, era funcionário do PS e presidente da junta de freguesia da Conceição, onde esteve vinte anos, cargo que acumularia com o de assessor do PM. Acresce que não havia registo de que o autarca tivesse sequer completado o quinto ano do ensino básico (antigo ciclo preparatório). Nada, decerto, que incomodasse Sócrates. O então líder do PS criticara, anos antes, numa entrevista ao jornal da Universidade da Beira Interior, a “corte muito invejosa, muito ciumenta, muito pequena” de Lisboa, “também ela provinciana”, que “olha sempre para quem vem, perguntando se saberá pisar, se tem modos, se será inteligente e se estará a altura de participar”.
A dada altura, eram três os assessores para os assuntos regionais em São Bento, entre eles João Vasconcelos e Fernando Cálix. Carlos Martins, esse, “era mais conhecido por tratar dos assuntos do Sócrates na Covilhã e Castelo Branco”, referem colaboradores desse tempo. “Nunca o vimos fazer outra coisa”, reforçam.
Na terra, porém, o estatuto de “assessor” de Sócrates fazia milagres. Recorria-se a ele na esperança de “um jeitinho junto do nosso primeiro”, temia-se o seu poder e a rede de influências. Dizia-se: “Lá falei do projeto ao Carlos, vamos ver no que dá.”
Por vezes, Carlos Martins também terá vestido a pele de “animal feroz”, qual alter ego do então líder do PS. Um dirigente do CDS acusou-o publicamente de “métodos caciques” e um candidato da CDU na freguesia da Conceição, por sinal seu amigo, ia sendo agredido por ele em 2009, durante um debate de campanha eleitoral. “Lançou-se a mim e aquilo esteve feio. Foi no calor do momento, a esta distância até compreendo. ?A amizade é que não sobreviveu, com pena minha”, recorda Marco Melchior, funcionário da Câmara da Covilhã, onde Carlos Martins é seu superior hierárquico. À época, a concelhia do PSD lamentou o sucedido e a circunstância de Carlos Martins ter alegadamente usado dados de cariz pessoal e confidencial sobre um candidato social-democrata, questionando “a origem das informações e documentos” usados pelo então assessor de Sócrates. Uma queixa seguiu na altura para a Procuradoria-Geral da República.
O ano de 2011 assinalaria o fim do consulado Sócrates e da experiência dourada de São Bento para Carlos Martins. A 5 de junho desse ano, o PS perdeu as eleições. Mas um pormenor ficara pendurado: uma das filhas de Carlos Martins, então a estagiar no Centro Hospitalar da Cova da Beira (CHCB), arriscava ver a vida andar para trás com a saída do Executivo socialista. A 13 de junho, a uma semana de Pedro Passos Coelho tomar posse, a filha do ex-assessor de Sócrates celebrou um contrato sem termo com aquela unidade hospitalar, assumindo funções no gabinete de comunicação e marketing, confirmou a atual administração à VISÃO, sem contudo fornecer mais detalhes. Várias fontes do CHCB relatam que os documentos essenciais para a celebração desse contrato chegaram nesse mesmo dia, em carro oficial proveniente da residência de São Bento, gerando sururu nos serviços. “As pessoas podem especular o que quiserem”, reage João Casteleiro, ex-administrador do CHCB e histórico do PS no distrito. “O processo foi normal. A pessoa em causa fez o estágio, tinha competências e ficou. Tão simples como isso”, explica.
Em agosto de 2011, Carlos Martins constituiria uma sociedade do tipo unipessoal, a CCM – Consultoria, Comunicação e Marketing, da qual se desconhece qualquer atividade relevante. Dissolvida em outubro do ano passado, desapareceu sem deixar rasto. Coincidência ou não, foi por essa altura que, após duas décadas sem liderar o município, o PS ganhou a Câmara da Covilhã. Vítor Pereira, antigo coordenador dos deputados por Castelo Branco, assumiu a presidência. Carlos Martins foi eleito vice-presidente com os pelouros do ambiente, património, obras e projetos, entre outros. É também administrador da empresa municipal Águas da Covilhã. Para a PGR, seguiu entretanto, por parte dos eleitos do Movimento Acreditar Covilhã (MAC), uma queixa por suposta ilegalidade na eleição de Carlos Martins, baseada no facto de, ao mesmo tempo, ter tomado posse como presidente da União de Freguesias de Covilhã e Canhoso.
Processos polémicos
Já este ano, duas deliberações da autarquia geraram também polémica. Primeiro, a 24 de março, uma indemnização de cerca de 90 mil euros, por alegada revogação do contrato, a um consórcio ao qual pertence a Constrope, a empresa fundada em tempos por Carlos Santos Silva, alegado “testa de ferro” de Sócrates, onde ainda mantém laços. Carlos Pinto, ex-presidente da Câmara, garantiu há dias que a matéria iria ser enviada para o Ministério Público. Recentemente, foi aprovada a celebração de um acordo entre a autarquia e duas familiares do presidente da assembleia municipal, Manuel Santos Silva, primo do detido na Operação Marquês. Em causa está um longo processo em tribunal por causa de terrenos da zona de Canhoso, pertencentes à família Santos Silva, já condenada em tribunal. Parte da oposição contesta a deliberação, por considerá-la um tratamento de favor, pois caso contrário o município poderia receber uma quantia próxima dos 400 mil euros. “O caso foi enviado para o Ministério Público. Uma câmara que passa a vida a queixar-se do dinheiro que não tem, perdeu aqui uma boa oportunidade de receber uma boa verba”, referiu à VISÃO, Pedro Farromba, vereador do Movimento Acreditar Covilhã. “Foi tudo transparente, dentro da legalidade e com ampla discussão na assembleia municipal. No caso da Constrope, é uma herança do mandato anterior que resolvemos”, resume Vítor Pereira, presidente da Câmara. “Não estou nada preocupado com investigações. Durmo na santa paz do ?Senhor e só tenho pena que o anterior executivo não tenha cá deixado o dinheiro que me faz muita falta”, concluiu.
Na Covilhã, entretanto, o “vice” Carlos Martins continua a ser visto como o homem que liga as pontas soltas entre os amigos e conhecidos de Sócrates. Sem perder o jeito para arregimentar tropas. Em outubro do ano passado, Carlos Martins mobilizou a autarquia para uma presença gorda da região na apresentação do livro do antigo primeiro-ministro sobre a tortura, em Lisboa. Na Covilhã, dois meses depois, fez o mesmo, contribuindo para a enchente do auditório da Faculdade de Ciências da Saúde na Beira Interior.
Já este ano, Sócrates tomou posse no Conselho Geral da Universidade da Beira Interior. Sobre o atual momento do ex-líder do PS poucos querem falar. Amigos incluídos. “Há medo na Covilhã e o meio é pequeno”, justificam alguns. Carlos Martins, esse, aderiu entretanto, nas redes sociais, a dois movimentos: um pede a candidatura de Sócrates à Presidência da República e outro, mais recente, reclama a sua libertação da cadeia.
Em 2001, na já referida entrevista ao Urbi et Orbi, jornal on-line da UBI, Sócrates admitia que foi nesta região que formou o seu caráter e identidade. De engenheiro autárquico a primeiro-ministro, o caminho foi fulgurante, mas não isento de pedras. “Estou indissoluvelmente, para o bem e para o mal, ligado à Covilhã”, admitiu então. “Às vezes para o mal, mas a maior parte das vezes para o bem.”
Património do amigo
O vereador da Covilhã depositou duas declarações de rendimentos (relativas a 2012) no TC: na primeira, tinha-se esquecido de declarar um prédio
Rendimentos de trabalho dependente: 39.732,83 euros
Rendimentos prediais: 3.600,00 euros
Património imobiliário: quatro prédios na Covilhã/Conceição com a designação U-02290-A, U-02290-G, U-02859 e U-02761; dois prédios na Aldeia do Carvalho designados por U-02152/RC e U-02152/1.º; e um prédio nas Cortes do Meio identificado como U-01133
Veículos automóveis: Renault Laguna, Mercedes 250 e Citroën C1
Títulos, ações, aplicações e contas bancárias a prazo: ações do BCP no valor de 1.529,01 euros; PPR Fundos Millennium Poupança no total de 3.406,07 euros; 135 mil euros aplicados no BCP, dos quais 125 mil no produto Renda Certa Especial 2009/5 anos (1.ª série) e dez mil no produto Renda Crescente 2007/8 anos (2.ª série); e ainda dois depósitos a prazo, um deles no valor de 28.732,32 euros (Montepio Capital Certo) e outro no montante de 52.307,94 euros (Conta Poupança Por Impulso/BES)
Débitos que oneram o patrImónio: um empréstimo, no valor de 16.497,97 euros, contraído no BCP, até 2019