No olhar de Fátima pespegou-se uma tristeza que nem os momentos de galhofa com as colegas conseguem disfarçar. Ao seu lado, Teresa ajeita um cobertor cor-de-rosa sobre os joelhos. A frente polar de que se fala nestes primeiros dias de fevereiro traz consigo um vento gélido e zomba do parco calor emanado pelo aquecedor a gás, manifestamente incapaz de aquecer aquela portaria, onde se encolhem cinco mulheres e um homem, à luz de dois candeeiros a petróleo, em conversas entrecortadas pela passagem ruidosa de camiões a circular pela zona industrial da Jardoeira, na Batalha.
Andam nisto há uma pequena eternidade. Quando, naquela sexta-feira, dia 3, estivemos a ouvir as trabalhadoras da Bonvida Porcelana SA, iam em 152 dias, pelas contas de Maria (nome alterado, a pedido da operária). Todos marcados com esferográfica azul num calendário da Visão Júnior. Há cinco meses que estas mulheres não arredam pé da entrada da fábrica, onde muitas delas, deixaram os melhores anos da sua vida.
“Estamos aqui 24 sobre 24 horas, desde 5 de setembro”, conta Gracinda Costa, 64 anos. Isso para evitar que sejam levadas a maquinaria e a loiça que se encontram lá dentro.
Tudo começou naquela data, quando, no regresso de férias, a administração da empresa, representada por um advogado, propôs aos 168 empregados (mulheres, sobretudo) a rescisão dos contratos de trabalho, o que, inicialmente, foi recusado pela maioria. Daí até à declaração de insolvência, a 13 de outubro, foi um angustioso instante.
Muralha de porcelana
Quem contorna o edifício da fábrica percebe, através das janelas dos pavilhões, que os armazéns estão cheios. Em alguns setores, vislumbram-se pilhas de paletes que quase alcançam o teto. E cá fora, as instalações estão literalmente rodeadas por uma muralha de loiça empilhada. Chávenas, pratos e pires estão, tal como estas mulheres, a degradar-se há meses, ao vento, ao sol, ao frio e à chuva.
A carteira de encomendas parecia promissora, quando o céu se desabou sobre as cabeças dos 168 trabalhadores da empresa, cujos subsídios de Natal e férias, bem como os salários de agosto e setembro, estão atrasados ou têm sido pagos aos bochechos.
Só naquela semana de setembro em que tudo estava a acontecer, terá entrado um pedido de 230 mil euros. Pouco antes, segundo Gracinda Costa, até lhes tinha sido dito que, para dar resposta às encomendas, possivelmente, teriam de fazer turnos.
Se, por um lado a permanência delas ali se destina a evitar que os antigos patrões retirem material e maquinaria da fábrica, há, por outro lado, que precaver a aparição dos amigos do alheio que estão de olho nas instalações. A vigilância das trabalhadoras com as suas rondas regulares, e a atuação da GNR local têm impedido furtos de maquinaria e material. Ainda há pouco tempo, evitaram que fosse levado um compressor. Os buracos rasgados pelos gatunos nas redes são prontamente reparados.
“Uns deixaram material roubado no pinhal, porque nós aparecemos. Mas levaram algum cobre”, conta Maria.
Foi uma fase em que as vigilantes involuntárias tiveram de se dividir em dois grupos. Um a montar guarda na portaria, o outro no pinhal, quantas vezes a matar as horas observando os esquilos aos saltos, de ramo em ramo.
Após mais de cinco meses de vigília, só já restam umas 50 mulheres e um punhado de homens que, dia e noite, se revesam, em turnos de quatro horas, durante sete dias por semana. Consoada e passagem de ano também foram comemoradas à porta da fábrica.
O tempo arrasta-se monótono e há quem, como Adélia Gaspar, 43 anos, faça terços em croché. Outras mulheres gastam as horas de espera recordando os bons momentos vividos em jornadas de trabalho que rendiam, ao final do mês, pouco mais que o salário mínimo nacional.
Cenário sombrio
Um dos poucos homens é o forneiro António Vieira, que, aos 49 anos, enfrenta agora um futuro incerto e gostava de aproveitar o que lhe possa aparecer. Tirava 700 e poucos euros, porque fazia turnos. Como a maioria do grupo que ainda ali resiste tem o contrato de trabalho suspenso e está a receber do fundo de desemprego. “Ninguém aceita pessoal, nesta altura”, desabafa, “as coisas por aqui não estão fáceis em termos de trabalho.”
E não estão mesmo, atendendo aos números do Instituto de Emprego e Formação profissional. O total de desempregados registado no município batalhense (com uma população de 15,8 mil habitantes) aumentou perto de 75% entre dezembro de 2006 e o final do ano passado, quando atingiu os 576 inscritos nos centros de emprego – mais 26% que um ano antes.
Fátima Abrantes tinha 20 e poucos anos, quando começou a trabalhar na fábrica, há 23 anos. Foi lá que conheceu o marido, Luís Filipe. Tiveram três filhos, hoje já crescidos. Ambos estão agora desempregados mas mantêm a esperança de ver a fábrica novamente a laborar.
Na perspetiva de Arnaldo Pereira, o administrador judicial, que autorizou as trabalhadoras a ocupar a portaria, é vã esta luta das mulheres da Bonvida, apoiadas pelo Sindicato dos Trabalhadores da Cerâmica e pela União dos Sindicatos de Leiria, da CGTP. “O problema”, afirma à VISÃO, “é que aquela gente quer viabilizar uma empresa que não tem um parafuso”. De acordo com o relatório deste antigo advogado nomeado para gerir a falência da Bonvida, o valor venal dos bens da empresa não ultrapassará os 5 mil euros. Isso quando o passivo da ascende aos 4,7 milhões.
Imbróglio
Trata-se de uma unidade industrial, com um peso energético e de mão-de-obra enormes, para cujo arranque serão necessários 1,5 milhões de euros, estima o jurista. A situação agrava-se quando se constata que um investidor disposto a entrar com esse dinheiro, não tem quaisquer garantias, já que o património existente no interior da fábrica não pertence legalmente à Bonvida.
O caso ameaça tornar-se um imbróglio jurídico que demorará anos a resolver, nos tribunais. Praticamente nada do que está na fábrica é, atualmente, propriedade da Bonvida – na verdade, pertence à FAIART. Esta é uma empresa que, sendo da mesma família, cedeu, em 2000, a exploração à Porcelanas de Portugal, em troca do pagamento de parte das suas dívidas. E foi da Porcelanas de Portugal que emergiu, em 2007, a Bonvida.
Segundo o jurista, a estrutura acionista e os elementos dos órgãos de gestão da Porcelanas de Portugal e da Bonvida são exatamente os mesmos. Arnaldo Pereira fala de uma alteração de titularidade apenas aparente, já que tudo se manteve como dantes, desde a laboração aos trabalhadores, passando pelos clientes e instalações.
Mas o problema não fica por aqui, já que o edifício, pertencente à FAIART, foi hipotecado, em 1999, ao BCP. A essa hipoteca acresce um outro contrato de penhor mercantil, celebrado em 2002 também com o BCP, sobre os bens e marcas da firma.
“A Bonvida é uma empresa fantasma. Não tem nada para oferecer a um potencial investidor, a não ser um monstruoso passivo”, salienta o jurista à VISÃO.
No seu relatório, revela uma ponta da meada jurídica na qual os trabalhadores podem pegar, na luta pelos seus interesses, ao salientar que, afinal, a Bonvida e a Porcelana de Portugal “correspondem à mesma realidade material, económica, administrativa e de gestão”.
Pode ser nessas linhas do articulado que as operárias encontrem a chave do enigma da posse das riquezas, no interior da fábrica, ajudando-as recuperar o direito ao trabalho, que as realiza e dignifica como seres humanos.
Nos olhos tristes de Fátima há, também, uma expressão incompreensão: “O Governo paga-nos o subsídio para não fazermos nada, em vez de abrir a fábrica.”