No seguimento da sua visita a Moscovo, o secretário-geral da ONU, António Guterres, descreveu-se como um “mensageiro da paz” e sublinhou que o seu objetivo está “estritamente ligado a salvar vidas e a reduzir o sofrimento”. A visita à Rússia, onde participou em várias reuniões com altos dirigentes do Kremlin, incluindo o próprio Presidente da Rússia, Vladimir Putin, foi imediatamente seguida por uma passagem pela Ucrânia. Nos subúrbios de Kiev, Guterres pôde constatar pessoalmente não só o estado crítico das infra-estruturas ucranianas, mas também todo o rasto de morte e deslocamento populacional deixado pelas tropas russas. Em Borodyanka, nos arredores da capital da Ucrânia, Guterres, visivelmente emocionado, colocou-se na posição dos homens e mulheres daquela cidade e disse apenas que “vejo as minhas netas a fugir em pânico, parte da família talvez morta”.
Ao longo da visita, Guterres tentou usufruir da dimensão institucional do cargo que desempenha de modo a estabelecer vias de comunicação diplomática entre os governos russo e ucraniano, garantindo, desta forma, acordos para a abertura de corredores humanitários e, potencialmente, uma resolução pacífica para a invasão. Contudo, embora reconheçam que a missão é louvável, muitos analistas têm-se questionado sobre que influência terá efetivamente a ONU, e o seu secretário-geral, na determinação do eventual desfecho desta guerra.
E não são simplesmente dúvidas que têm incidido sobre as Nações Unidas durante este processo, são também críticas, grande parte delas relacionadas com a aparente inoperância da instituição face à ofensiva da Rússia. A começar por Volodymyr Zelensky, Presidente da Ucrânia, que, num discurso proferido no Conselho de Segurança da ONU, no dia 6 de abril, desafiou o órgão mais poderoso das Nações Unidas a escolher entre duas opções: agir ou “simplesmente fechar”. Na verdade, as críticas à inércia desta organização internacional não são de agora, e têm sido difundidas por inúmeros comentadores ao longo dos anos. Notavelmente, John Bolton, antigo conselheiro norte-americano de segurança nacional e ex-embaixador dos EUA na ONU, ironizou, em 1994, que se o edifício das Nações Unidas em Nova Iorque “perdesse 10 andares, não faria diferença nenhuma”.
A própria visita de Guterres também não escapou à condenação de alguns especialistas em política internacional, cujas opiniões sustentam-se sobretudo no facto de considerarem que a deslocação do secretário-geral peca por tardia, ou na sua desaprovação perante a escolha tomada pela comitiva de Guterres – que Zelensky rotulou de “ilógica” – de ir primeiro a Moscovo, e só depois a Kiev. Nesta última, Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República, apressou-se a defender o ex-primeiro-ministro português, reconhecendo que Guterres “era sempre preso por ter cão e preso por não ter”: se fosse primeiro à Ucrânia, a “última palavra pertenceria a Moscovo”; se fosse primeiro à Rússia, como aconteceu, muitos julgariam injusto que estivesse a ouvir primeiro “as razões, ou não razões”, do Kremlin.
O velho ditado popular também se aplica de certa forma ao papel atual das Nações Unidas no que diz respeito à sua intenção de terminar a incursão de Putin. E de toda esta incerteza destacam-se algumas questões: poderia o Conselho de Segurança da ONU estar a fazer mais? Será que tem realmente poder para travar esta guerra? Se não, que medidas poderia tomar para, pelo menos, atenuar os efeitos nefastos da invasão?
Poder de Veto
O principal fator a restringir as ações concretas do Conselho de Segurança prende-se no poder de veto oferecido a cada um dos membros permanentes – entenda-se a China, França, os EUA, o Reino Unido e a Rússia –, direito consagrado no documento fundador da instituição, a carta das Nações Unidas.
Segundo a carta da ONU, qualquer resolução proposta pelo Conselho de Segurança necessita do voto favorável (ou, no mínimo, a abstenção) de todos os 5 membros permanentes. Por isso, se um dos países acima referidos votar contra uma resolução, esta não poderá ser aplicada. É exatamente o que tem acontecido desde a eclosão do conflito militar na Ucrânia, com a delegação russa a vetar sucessivamente todas as propostas do Conselho de Segurança. John Bolton descreveu esta dinâmica de uma forma bastante direta: “O que vemos é que, quando há uma divergência fundamental entre os membros permanentes, nada acontece”.
O poder de veto tem uma origem histórica, tendo sido aprovado aquando da assinatura da carta das Nações Unidas, em 1945, na sequência da II Guerra Mundial. Na altura, Josef Stalin, o então líder da União Soviética, insistiu nesse direito de forma a proteger o seu país contra resoluções hostis que pudessem eventualmente visar os soviéticos. Citado pela CNN, Richard Gowen, Diretor da ONU no International Crisis Group, uma organização não governamental dedicada à resolução e prevenção de conflitos militares, admite que “a única forma de conseguir que a Rússia e as outras potências concordassem com este acordo passou por garantir que cada uma delas teria a capacidade de bloquear quaisquer ações contra si mesmas”.
Com isto, levanta-se a questão: porque é que o Conselho de Segurança não expulsa a Rússia? Ora, qualquer decisão nesse sentido também precisaria dos votos favoráveis de todos os membros permanentes, a Rússia incluída. E é aí que está o problema. “Sinceramente, penso que ninguém vai querer abdicar do seu veto”, sentenciou Bill Richardson, antigo embaixador dos EUA na ONU, citado também pela CNN.
Para tentar combater esta realidade, a Assembleia-Geral das Nações Unidas adotou na passada terça-feira, dia 26, por aclamação (sem necessidade de ir a votos), uma resolução que pretende aumentar o escrutínio em volta do poder de veto. A resolução, proposta pelo Liechtenstein, obriga todos os membros permanentes no Conselho de Segurança a justificar o seu recurso ao veto, automaticamente instigando um debate na Assembleia-Geral – até 10 dias após qualquer uso deste privilégio.
Que medidas concretas poderá tomar a ONU para travar a guerra?
De acordo com o artigo 25 da carta das Nações Unidas, todas as decisões tomadas pelo Conselho de Segurança são vinculativas para todos os estados-membros da instituição, daí este ser o órgão mais poderoso da ONU. Nesse sentido, qualquer solução que aspire enfraquecer a posição da Rússia na Ucrânia terá de passar, quase obrigatoriamente, pelas suas potenciais iniciativas.
Em teoria, existem algumas opções: segundo o capítulo 6 da carta, o Conselho de Segurança pode urgir os países envolvidos em qualquer disputa a resolver o conflito por meios diplomáticos e pacíficos, podendo recomendar, inclusivamente, o desenho dos processos de negociação e algum ajustamento que seja considerado essencial por qualquer uma das partes. Noutros casos, o Conselho de Segurança tem autoridade para impor sanções aos estados-membros que não cumpram as normas inscritas na carta da ONU, que podem ir de embargos à compra de armamento ou proibições de mobilidade para altos dirigentes, até restrições à livre circulação de bens e instrumentos financeiros. Em última análise, o Conselho poderá mesmo autorizar o uso da força militar de modo a “manter ou restaurar a paz e segurança internacionais”, como se pode ler no capítulo 7 da carta das Nações Unidas.
Na prática, com a atual conjetura, dificilmente alguma destas medidas irá ser decretada, isto devido ao poder de veto da Rússia. Em alternativa, a Assembleia-Geral da ONU tem proposto uma série de resoluções para responsabilizar e condenar oficialmente a Rússia pela invasão, e, mais recentemente, para remover a Rússia do Conselho dos Diretos Humanos das Nações Unidas. Contudo, as medidas não são vinculativas e terão apenas um impacto simbólico, tendo o condão de acentuar o isolamento internacional e diplomático do Kremlin.
António Guterres pareceu referir-se implicitamente a estas limitações durante a uma conferência de imprensa em Kiev, lado a lado com Volodymyr Zelensky, quando respondeu, exibindo alguma irritação, a uma jornalista suíça que questionou o presidente ucraniano sobre as garantias de segurança que Kiev está a exigir a Moscovo: “Minha senhora, o que é que pretende? Quer que as pessoas sejam salvas ou quer que eu diga alguma coisa que possa ser um obstáculo à salvação dessas pessoas? O que lhe posso dizer é que estamos a fazer tudo, absolutamente tudo, o que é possível para que isso aconteça”.