Quando em abril de 1990 uma mulher foi encontrada na berma de uma estrada no estado de Oklahoma, ninguém imaginava que, quase 30 anos depois, o seu nome seria a peça chave de um mistério que ainda não foi inteiramente resolvido. Deitada sobre o seu estômago, ainda a sofrer convulsões, como descreve o jornalista Matt Birkbeck no seu livro sobre o caso, a jovem foi levada para um hospital onde foi depois identificada pelo seu marido, Clarence Hughes, como sendo Tonya Hughes.
Quando, dias mais tarde, foi confirmada a sua morte, os ferimentos foram associados a um atropelamento. O caso poderia ter ficado por aí, mas os eventos que se sucederam desvendaram uma verdade dura sobre Tonya e um mistério de 20 anos começou aos poucos a ser desvendado. Hoje, e quase três décadas mais tarde, um novo documentário da Netflix que já se encontra entre os mais vistos da plataforma em vários países, incluindo Portugal, conta a história da jovem que perdeu a sua identidade e morreu sob o nome de outra pessoa.
“Girl in the Picture” começa por ser um relato da vida de Tonya Hughes, uma jovem mãe casada que trabalhava enquanto stripper num bar noturno. No entanto, à medida que vai avançando, o documentário introduz a história de três outras mulheres: Suzanne Sevakis, Sharon Marshall e Tonya Tadlock. À primeira vista, os quatro nomes não parecem ter qualquer tipo de ligação, mas é exatamente aí que começa o misterioso caso de Tonya Hughes, a jovem que saltou de identidade em identidade durante 20 anos, forçada pelo seu sequestrador, Clarence Huges, a viver sob nomes roubados que não eram o seu.
A história tem vários começos, várias versões e, como um puzzle, vai-se deixando construir peça a peça através dos testemunhos de quem conheceu a jovem cujo nome verdadeiro era Suzanne Marie Sevakis, mas que, para o mundo, foi Sharon Marshall, Tonya Tadlock e Tonya Hughes, nomes que o seu sequestrador roubava a mulheres falecidas. Cada peça é um novo começo ou, no caso de Suzanne, o recomeço de uma mesma história, uma história de abuso e maus-tratos que mudava apenas porque, forçada pelo seu sequestrador, mudava de cidade e de identidade, mas nunca de vida.
O sequestro
Suzanne Marie Sevakis nasceu em 1969 e tinha apenas 5 anos quando foi raptada por Franklin Floyd, o homem a quem durante muitos anos chamaria de pai e que, mais tarde, viria a chamar de marido, agora sob o nome de Clarence Hughes. Durante 20 anos, Suzanne percorreu os EUA coagida por Floyd que não só a fez vítima de abusos como matou o seu filho e a forçou a prostituir-se. Só após a sua morte, e depois de Floyd sequestrar o seu filho, entretanto entregue a pais adotivos, é que o puzzle começou a ser montado, peça por peça, num processo que durou mais de duas décadas e terminou apenas em 2014, o ano em que os investigadores foram capazes de, finalmente, descobrir o verdadeiro nome de Suzanne e devolver-lhe a sua identidade há tanto tempo perdida.
Franklin Floyd entrou na vida de Suzanne através da sua mãe, Sandra Willet, que participa no documentário juntamente com o seu pai. Sandra conheceu Floyd quando estava ainda a recuperar do seu divórcio e a batalhar contra a condição de stress pós-traumático que a assombrava desde que um tornado havia atingido a casa onde morava com os filhos. De acordo com o que conta, Floyd terá feito promessas de “cuidar (de Sandra) e (dos seus) filhos”, mas rapidamente mudou de atitude e começou a fazer “coisas assustadoras”, como ter consigo uma faca a todos os momentos ou ameaçar Sandra de que não o poderia deixar.
O dia em que tudo mudou para Suzanne, no entanto, foi aquele em que a sua mãe, ao tentar pagar uma embalagem de fraldas com um cheque sem fundos suficientes, foi presa durante um mês. “Foi quando ele levou os meus filhos”, explicou, no documentário, Sandra, referindo-se a Floyd. Segundo o seu testemunho, depois de explicar a situação à polícia, Sandra foi questionada sobre o seu estado civil ao que respondeu que era casada com Floyd. A polícia aconselhou-a, depois, a procurar resolver sozinha o caso.
Durante o mês em que Sandra se encontrava na prisão, Floyd raptou as suas três filhas, abandonando duas delas num orfanato e partindo com Suzanne numa viagem que só terminaria 15 anos depois com a sua morte. Floyd, por sua vez, só viria a ser apanhado pela polícia anos mais tarde depois de ter chamado a atenção das autoridades ao raptar o filho da jovem, Michael Anthony Hughes, que estava, na época, sob a tutela de um casal escolhido pela Segurança Social. Floyd assumia-se como o pai biológico da criança e já havia tentado, inclusive, recuperar a guarda de Michael, mas testes de ADN provaram que não era o pai da criança. Ao que tudo indica, Suzanne terá engravidado na época em que Floyd a forçou a prostituir-se.
A 12 de setembro de 1994, Floyd apontou uma arma ao diretor da escola de Michael, entrou na sua sala de aula e sequestrou tanto a criança como o diretor que terá amarrado, depois, a uma árvore num local isolado. Eventualmente, o diretor foi descoberto e uma investigação sobre o sequestro de Michael foi iniciada, investigação essa que levaria à descoberta de mais pormenores sobre o complexo caso de Suzanne, na época conhecida ainda apenas por Tonya.
A investigação do sequestro de Michael permitiu que a polícia descobrisse várias informações essenciais da vida de Floyd. Durante o processo, não só descobriram o seu verdadeiro nome, já que até então acreditavam que se tratava de Clarence Hughes, como tiveram acesso ao seu registo criminal. De acordo com os dados, Floyde já havia estado na prisão por vários crimes: roubo de um banco, ataque a uma mulher e sequestro de uma criança. Algo não batia certo e era necessário ligar os pontos.
O puzzle
Deu-se início a uma busca intensa por Michael que rendeu uma ampla cobertura jornalística. Nas televisões imagens tanto de Michael como de Suzanne, na altura conhecida por Tonya, circulavam com o apelo a que as pessoas contactassem a polícia caso tivessem informações ou conhecessem qualquer uma das caras no ecrã.
Quando viu pela primeira vez o anúncio, Jenny Fisher não teve dúvidas de que conhecia as feições daquela jovem rapariga de cabelos loiros, mas não reconhecia o nome que acompanhava a imagem: Tonya Hughes. Para Jenny, a cara que surgia no ecrã era a da sua melhor amiga de secundário, Sharon Marshall, uma estudante ambiciosa e talentosa que havia sido aceite na universidade Georgia Tech e cujo maior sonho era ser engenheira aeroespacial, como descreve no documentário. “Ela era muito inteligente, estava no corpo de reservistas, no clube de ciências, estava no clube para sobredotados. Tinha tudo a seu favor”, admite Sharon Fortson Bailey, uma colega com quem andou no secundário, no documentário.
Os amigos descreviam-na como sendo bondosa e preocupada, embora reconheçam que sempre consideraram o seu pai, Floyd, na época sob o nome de Warren Marshall, um homem estranho, assim como a relação que os dois mantinham. Segundo Jenny, Sharon não podia atender chamadas e pedia, inclusive, aos amigos que não ligassem para o telefone de casa a não ser que ela lhes desse autorização prévia. “Ela dizia: “não ligues para aqui demasiado a não ser que eu saiba com antecedência que vais ligar”. Mas ela podia ligar-me, só que assim que ele (Floyd) chegava a casa ela ficava muito ansiosa, dizia que tinha de ir e desligava”, conta.
Na sua chamada com a polícia, Jenny descobriu que aquele que era, para si, o pai da sua melhor amiga, Sharon, era, na verdade, o seu marido. A informação demorou a ser processada. “Tínhamos um retrato de pessoas muito diferentes (quando se tratava de) quem era Sharon”, admite. “Em 1989, um ano antes da morte (de Suzanne), eles mudaram os seus nomes”, explica Joe Fitzpatrick, um agente especial do FBI que trabalhou no caso. “Sharon Marshall tornou-se Tonya e Warren Marshall tornou-se Clarence Hughes. Os nomes que eles usaram foram retirados de lápides no Alabama. Eles depois casaram-se com os seus novos nomes em Nova Orleães, o que significa que este homem se casou com a sua própria filha. Foi inacreditável”, acrescenta.
Ainda no secundário, Suzanne engravidou abandonando não apenas os seus sonhos de seguir para Georgia Tech, como a cidade onde estudava e os seus amigos. Durante o seu tempo enquanto estudante, assim como depois, Suzanne era frequentemente abusada sexualmente pelo homem a quem chamava pai. No documentário, Jenny conta o episódio de uma noite em que dormiu na casa da melhor amiga e Floyd violou Suzanne à sua frente enquanto ameaçava ambas com uma arma. “Na manhã seguinte, ela veio ter comigo, deu-me um grande abraço e disse: “O papá é assim. Eu estou bem, tu estás bem. Esquece isso”” conta.
Durante esse período, Suzanne também terá trabalhado num clube de strip, sendo forçado por Floyd a prostituir-se, razão pela qual engravidou. Heather Lane, uma ex-dançarina do Mons Venus, um clube em Tampa, na Flórida, que oferecia entretenimento adulto, lembra a jovem que que conhecia por Sharon como uma pessoa “muito tímida” que “não falava muito sobre seu passado” e “não gostava de falar sobre si mesma”. De acordo com Lane, o “pai” de “Sharon” exigia que a filha questionasse por oportunidades de trabalho como festas organizadas no clube e procurasse participar. Uma noite, durante um evento “sem lap dance” no qual não deveria haver contato entre clientes e dançarinas, Suzanne colocou-se à entrada da casa de banho a oferecer favores sexuais por dinheiro. Quando confrontada pelo seu comportamento, Suzanne terá dito: “O meu pai disse-me para fazer isto, e ele comprou-me preservativos’”, conta Lane. “Isso foi nojento. Eu não queria acreditar que um homem colocaria a sua filha naquela situação.”
Ainda na época em que Suzanne dançava no Mons Venus, Floyd tê-la-á forçado a casar consigo depois de ter abusado e morto uma das outras dançarinas, Cheryl Ann Comesso, a quem tinha feito promessas de fama. A decisão de abandonar a cidade e mudar de nome foi feita numa tentativa de fugir do crime que havia cometido e, uma vez que Suzanne estava grávida de Michael, este optou por criar a realidade enganosa de que eram um casal.
Os restos mortais de Comesso foram encontrados em 1995, depois de Floyd ter sido considerado culpado por um juiz do sequestro de Michael, cujo corpo permanecia por encontrar. Em 1997, Floyd foi também acusado de assassinato em primeiro grau pela morte de Comesso e foi condenado e sentenciado à morte cinco anos depois, em 2002. Atualmente, Floyd permanece sob custódia na Union Correctional Institution em Raiford, Flórida.
Questões por responder
Ainda assim, e mesmo depois da sentença de Floyd ser anunciada, o mistério ainda permanecia por resolver. Quem era Sharon Marshall? O que aconteceu a Michael? O caso ficou em aberto, mas durante anos pouca investigação foi feita para responder a estas questões. Com o lançamento do livro “A Beautiful Child” (Uma Criança Bela, em português) do jornalista Matt Birkbeck, em 2004, sobre o estranho caso, a atenção dada à história bizarra de Sharon Marshall redobrou-se e o FBI voltou a debruçar-se sobre o sucedido. Não foi, no entanto, até 2014 que a verdadeira identidade de Suzanne foi revelada depois de Floyd respondeu a ambas as perguntas durante uma conversa com agentes do FBI na prisão. De acordo com o agente especial do FBI Scott Lobb, Floyd, admitiu ter morto o menino após o sequestro, revelando também o nome verdadeiro de Sharon Marshall e identificando-a como Suzanne Sevakis.
Uma questão, no entanto, continua por responder: como foi morta Suzanne? A justificação do atropelamento levanta suspeitas e o FBI não considera que tenha sido essa a verdadeira causa da sua morte. Por agora, parece que a questão ficará por responder já que essa “é a única coisa sobre a qual Floyd não fala”, com expica Lobb no site da agência.
Suzanne engravidou três vezes em toda a sua vida e deu à luz apenas duas. Os seus filhos eram Michael Hughes, o primeiro, e Megan DuFresne, colocada para adoção em 1989. Segundo Lane, que apenas conheceu Suzanne, ou Sharon, neste caso, na sua primeira gravidez, “o relacionamento com seu filho, Michael, era lindo”. “Ela era uma mãe maravilhosa. Estava tão envolvida com ele. E só de ver a forma como ele olhava para ela, acho que foi a melhor coisa que já lhe tinha acontecido”, conta.
Depois de ser lançado o documentário, DuFresne descobriu, finalmente, a verdadeira história da sua mãe biológica, mas conta ter ganho um sentimento estranho de raiva que ainda está a tentar processar. “Nenhuma menina deveria ter de passar por isso”, conta. “De um estranho, muito menos de alguém que deveria ser o seu pai, a sua figura paterna, seja lá o que ele fosse”. DuFresne nomeou o seu próprio filho Michael em honra do falecido irmão.
Em 2017, a lápide de Suzanne, que até então exibia o nome “Tonya”, foi alterada para refletir a sua verdadeira identidade, aquela que havia perdido 15 nos antes de morrer e que quase duas décadas depois ainda não havia recuperado.