O massacre da passada terça-feira, dia 24, em Uvalde, no Texas, que vitimou pelo menos 21 pessoas, incluindo 19 crianças, reacendeu o debate em torno das armas nos EUA, uma contenda latente e histórica que tem dividido os norte-americanos ao longo dos anos.
O estado do Texas é um dos mais liberais em relação a quem pode legalmente comprar uma arma de fogo. Uma lei recentemente aprovada em 2021 pelo governador Republicano Greg Abbott, permite a qualquer pessoa com mais de 21 anos comprar uma pistola sem necessitar de uma licença ou qualquer tipo de preparação especializada. Já as espingardas automáticas, como a famosa AR-15, podem ser adquiridas por qualquer pessoa com mais de 18 anos – lembre-se que, nos EUA, não é possível comprar bebidas alcoólicas com menos de 21 anos.
Foi exatamente o que o responsável pelo tiroteio em Uvalde, Salvador Ramos, decidiu fazer pouco tempo após o seu décimo-oitavo aniversário, quando terá comprado uma ou mais metralhadoras sem qualquer obstáculo.
Para além de questionar até que ponto a permissividade legal norte-americana em relação à posse de armas terá os dias contados, e de constatar a aparente impotência da Casa Branca perante este assunto – está bastante limitada devido à oposição em massa dos congressistas do Partido Republicano –, os órgãos de comunicação apressaram-se a salientar algumas contradições insólitas na lei estadual do Texas, que também se estendem, de certa forma, a muitos dos outros estados.
Por exemplo, no Texas, é proibido “promover material obsceno” ou “dispositivos obscenos”. E esta lei assume ainda que uma pessoa que tenha mais de 6 objetos deste tipo “possui-os com a intenção de os promover”, estando, por isso, exposta a acusações criminais. Como é que a mesma lei define estes “dispositivos obscenos”? Desta forma: “um dildo ou uma vagina artificial, projetada ou comercializada como útil principalmente para a estimulação dos órgãos genitais humanos”. No fundo, os cidadãos do estado do Texas são livres de adquirir uma arma sem licença, a partir dos 21 anos, mas não de ter em sua posse mais de 6 “brinquedos sexuais”.
A lei parece ridícula, mas a verdade é que foi mesmo aplicada num contexto judicial em 2004, quando dois polícias à paisana a usaram para deter uma mulher na cidade de Burleston, nos arredores de Dallas. A sentença poderia ter ido até 1 ano de prisão e incluído o pagamento de uma multa de 4 mil dólares, mas o juiz encarregue do caso decidiu que a acusação não tinha mérito e optou por encerrá-lo.
Não é caso único, e existem um pouco por todos os EUA proibições igualmente estranhas que contrastam gritantemente com a liberalidade à volta da compra de armas. Aqui estão cinco exemplos.
Dentaduras e cavalos pintados – o estado de Vermont
Algumas das leis mais bizarras dos EUA devem-se ao tempo em que foram inicialmente escritas. Muitas delas remontam mesmo aos séculos XVIII e XVIX, na altura em que constituição foi aprovada e que os diferentes estados começaram a usufruir de liberdades para moldar as suas Constituições.
Ao longo dos anos, os legisladores desses mesmos estados têm-se dedicado em parte a atualizar algumas das leis mais anacrónicas. No entanto, algumas acabam por escapar ao escrutínio dos políticos contemporâneos, e o caso do Vermont é especialmente paradigmático. O estado, o segundo mais pequeno dos EUA, com uma população de 643 mil habitantes, tem algumas das leis mais excêntricas de todo o país, mesmo que muitas delas já não sejam impostas aos seus cidadãos.
São demasiadas para enumerar na totalidade, mas aqui estão alguns exemplos: uma delas diz que é ilegal “pintar” ou “disfarçar” um cavalo no contexto de corridas “patrocinadas pelo Estado”; outra refere que qualquer mulher residente no estado do Vermont precisa de obter uma autorização escrita do seu marido para usar uma dentadura.
Netflix – o estado do Tennessee
Esta lei, no entanto, é bem mais recente, tendo sido assinada pelo governador Bill Haslam em 2011. Essencialmente, o estado do Tennessee proibiu os seus cidadãos de partilharem a password que utilizam para entrar em contas de aplicações como a Netflix ou o Spotify, isto de forma a tentar combater o crescente fenómeno de streaming ilegal.
No limite, uma pessoa que seja apanhada a ver ou ouvir ilicitamente conteúdo de entretenimento com um valor de 500 dólares ou menos pode estar sujeita a uma multa de 2500 dólares ou mesmo a 1 ano de prisão.
A lei visa sobretudo travar o tráfico de passwords de aplicações como a Netflix, através do qual indivíduos vendem ao público o acesso a serviços de streaming a preços mais baratos. Não é, por isso, dizem os legisladores do Tennessee, destinada aos cidadãos que partilhem os seus dados com um número restrito de familiares ou amigos.
A lei da buzina – o estado do Arkansas
No Arkansas, mais especificamente na capital estadual de Little Rock, não é permitido buzinar com o carro depois das 21 horas. Dito assim, a lei não parece assim tão descabida, mas há um pormenor que faz toda a diferença: a constituição do Arkansas especifica que não é permitido buzinar depois das 21 horas em “nenhum local onde se vendam bebidas frescas ou sanduíches”.
Esta lei remonta a 1920 e foi escrita em parte para regular os restaurantes de sanduíches que, na altura, ofereciam um serviço de ‘drive-in’ e pediam aos clientes para buzinarem de modo a chamar à atenção aos empregados. Hoje em dia, a lei não é imposta aos cidadãos do estado, estando, no entanto, ainda consagrada na constituição.
Sussurrar na Igreja – o estado do Delaware
Já em Delaware, um pequeno estado perto da capital, Washington D.C., é proibido “perturbar alguma congregação ou grupo de pessoas reunida para o culto religioso” com barulho ou “sussurros”. Para além disto, também não é legalmente possível usar profanidade num raio de 300 metros de uma igreja ou qualquer outro recinto que albergue assembleias de culto religioso.
Reuniões e disfarces – o estado da Carolina do Sul
Finalmente, na Carolina do Sul, um estado no sudeste dos EUA com 5 milhões de habitantes, os cidadãos são proibidos de participar em reuniões que decorram em propriedade privada se estiverem a usar um disfarce. Se não houver mesmo alternativa, será necessário pedir uma autorização por escrito ao dono ou ocupante da propriedade.
Mais uma vez, esta lei teve uma razão de ser quando foi originalmente escrita em 1962. Neste caso, os legisladores da Carolina do Sul queriam diminuir a influência regional do infame Ku Klux Klan, um movimento dedicado a preservar a supremacia da raça branca, cujos membros são famosos por usar um longo robe branco que lhes tapa a cara.