“Para aqueles que se libertaram de um fardo que carregaram demasiado tempo, para aqueles que vão fazer isso e às vezes duvidam, quero dizer simplesmente: estamos aqui. Escutamo-vos, acreditamos em vocês. E nunca mais estarão sozinhos.” Foi assim que o Presidente de França, Emmanuel Macron, anunciou que o Executivo vai mudar a lei para proteger melhor as crianças vítimas de incesto e de violência sexual. Em declarações à estação televisiva TF1, Brigitte Macron, a Primeira-dama de França, acrescentou que “é absolutamente necessário que estas ações sejam conhecidas e que não sejam silenciadas.”
Esta reforma surgiu no seguimento de uma “segunda vaga” do movimento #MeToo em terras francesas. Há três anos, este movimento popularizou-se nas redes sociais através da denúncia espontânea e em massa por mulheres de casos de violência sexual, que levou a reformas políticas e ao julgamento de homens acusados de assédio sexual por todo o mundo. Agora, em França, surgiu o #MeTooInceste – um novo movimento, cujas denúncias se focam nos casos de incesto que envolvem crianças no país. Milhares de testemunhos de pessoas que relatam casos de assédio sexual na sua infância já foram divulgados nas redes sociais – e os políticos franceses foram obrigados a dar uma resposta.
A Família Grande
Na origem do #MeTooInceste está a publicação do livro “A Família Grande”, de Camille Kouchner. Na obra, a advogada denúncia o padrasto Olivier Duhamel, aclamado cientista político e comentador televisivo em França, por ter abusado sexualmente do seu irmão gémeo quando tinham apenas 14 anos – apesar de ser seu padrasto, a lei francesa considera este um caso de incesto, uma vez que engloba todos os casos de relações familiares segundo as quais o casamento é proibido. No seu depoimento, Kouchner contou como o padrasto abusava do seu irmão antes de irem dormir, durante um período de dois a três anos. O irmão, vítima do abuso, pediu-lhe que ela “guardasse segredo.”
O livro de Kouchner recebeu uma enorme atenção mediática imediatamente após o seu lançamento, no início do mês de janeiro. Enquanto professor emérito da prestigiada universidade Sciences Po, em Paris, e presidente do clube social de elite “Le Siècle”, Duhamel está no centro da polémica do país. Pouco tempo depois, o professor veio a demitir-se das suas funções. No entanto, o escândalo não ficou por aqui: de acordo com o jornal Le Monde, Frèdèric Mion, diretor da Sciences Po, sabia destas alegações desde 2018 – e os estudantes da universidade estão a exigir a sua demissão. Por sua vez, Élisabeth Guigou, antiga ministra da justiça de França e amiga próxima de Duhamel, demitiu-se na semana passada da sua posição de diretora de um comité de violência sexual contra crianças, apesar de ter afirmado que desconhecia estes abusos. Assim, o polémico caso de incesto que envolve vários membros da elite francesa promete não ficar por aqui.
Por detrás deste caso está um problema estrutural, mas silenciado, em França – o incesto e a violência sexual de crianças. “O incesto é como um elefante na sala de que ninguém que falar. É a forma de abuso sexual mais comum, mas a menos falada”, disse Patrick Loiseleur, vice-presidente da organização Face à l’inceste (“enfrentar o incesto”), ao New York Times.
Os números não enganam – de acordo com um estudo publicado pela organização de Loiseleur em novembro de 2020, um em cada dez franceses afirmam ter sido vítimas de incesto – um número que está progressivamente a aumentar, uma vez que as pessoas se sentem mais confortáveis para dar os seus testemunhos. Uma semana depois do lançamento do livro de Kouchner, mais de 20 mil utilizadores já tinham utilizado o hashtag #MeTooInceste. As histórias são várias: “quando tinha oito anos, fui abusada pelo meu tio”; “o meu pai, dos sete aos catorze anos”; “era suposto serem umas férias, que rapidamente se tornaram num pesadelo.”
Neste momento, a lei francesa apenas proíbe relações sexuais entre um adulto e um menor com menos de 15 anos – e mesmo estes casos não são automaticamente considerados como violações. São necessárias outros fatores para se chegar a esse veredicto: coerção, ameaças, ou violência. Por sua vez, o incesto apenas é considerado um crime em caso de abuso sexual, como uma violação ou uma relação entre um adulto ou um menor – o que deixa muito a desejar para aqueles que defendem uma intervenção mais forte nesta área. “O incesto tem de ser identificado como um problema de saúde pública, cujo combate requer um grande investimento”, afirmou Loiseleur, alertando que “as vozes das vítimas estão a ficar cada vez mais altas.”
Assim, foi perante esta crescente polémica e atenção mediática do caso de Duhamel e do movimento #MeTooInceste que Macron foi levado a implementar reformas num curto espaço de tempo. Por um lado, o Presidente anunciou que o prazo de prescrição para denunciar casos de violação de menores subiu de 20 para 30 anos. Por outro lado, foram introduzidas no Parlamento francês duas propostas de lei que visam a implementação de uma idade de consentimento para relações sexuais com menores. O Presidente ainda anunciou que o Estado irá reembolsar os tratamentos psicológicos das vítimas e pediu ao ministro da Justiça, Éric Dupond-Moretti, e ao secretário de Estado da Infância e Família, Adrien Taquet, que iniciem uma consulta sobre as novas propostas jurídicas. Mais uma vez, o movimento #MeToo, propagado nas redes sociais, levou a importantes reformas sociais.