Desde janeiro que as autoridades de Hong Kong estão empenhadas em dominar o Sars Cov-2. Até ao início de março, a propagação do vírus parecia controlada. Registavam-se menos de 10 novos casos por dia, o que significava que as medidas de saúde pública então adotadas tinham funcionado. Com taxas de infeção baixas, população de máscara e recomendações para continuar a lavas as mãos, as autoridades da região concordaram que se podia descontrair um pouco.
Só que esse acabou por não se revelar o melhor caminho para controlar o contágio: assim começaram a encher as ruas, bares e restaurantes, os números voltaram a crescer. Os rumores de que eram assintomáticos a tentar escapar ao clima de pandemia que se instalara na Europa e na Ásia foram, em muitos casos, confirmados: num dia havia 95 casos, poucos dias depois já ultrapassavam os 300. A tão temida “segunda onda” da epidemia parecia estar a atingir a cidade. A solução, decidiram as autoridades locais, era isolar quem vinha de fora e estivera em contato com alguém infetado.
Campos da quarentena…para sempre?
A solução escolhida já estava a ser adotada desde o início do ano – até a Disney cedeu terreno para instalar um campo de quarentena. Agora, as autoridades já se socorreram também de uma série de outros parques de campismo e afins usados por turistas. Instalaram contentores a servirem de casas e é para lá que seguem todos os casos suspeitos – qualquer pessoa que as autoridades de saúde decidam que precisa ficar em isolamento, depois de um contacto com alguém que testou positivo.
Mas não se julgue que seguem donos das suas vidas. A vida em quarentena, como os asiáticos a imaginaram, tem refeições organizadas, verificações de temperatura duas vezes ao dia e funcionários equipados a rigor para enfrentar a Covid-19. As casas estão organizadas em fileiras, cercadas por altas barreiras amarelas.
Tara, a jornalista americana, acabou por se ver ali instalada depois de se saber que dois dos seus amigos estavam infetados. “Como não tinha sintomas, não podia fazer o teste. Mas o departamento de saúde de Hong Kong decidiu que corria um risco suficiente para ser levada para isolamento, com uma monitorização adequada.” Os amigos, que tinham alguns sintomas, foram levados ao hospital para mais exames e tratamento. Tara foi antes enfiada num autocarro, depois de lhe medirem a temperatura, e levada para um dos muitos centros de quarentena que se multiplicaram por toda a cidade.
Aquela espécie de passeio noturno por Hong Kong, antes de entrar no campo, pareceu-lhe mais saído de um filme do que a vida real. Passaram por vários postos de controlo de segurança, onde estavam mais funcionários equipados a rigor. À chegada, voltaram a medir-lhes a temperatura. Saíram do autocarro e foram conduzidos a uma sala de espera… para o briefing de boas-vindas à quarentena.
Regime “tudo incluído”
As instruções foram dadas em cantonês e em inglês. Informaram-na, e aos outros que chegaram, que receberiam três refeições por dia, à escolha num menu predefinido e que teriam obrigatoriamente de medir a temperatura às oito da manhã e às quatro da tarde. Se tivessem dúvidas ou solicitações, podiam enviar mensagem para um determinado número de telefone. Questões de saúde ou sintomas de Covid-19 deveriam ser encaminhadas para outro contato. Além disso, eram todos obrigados a permanecer ali durante duas semanas. No caso de Tara, isso quereria dizer que só poderia sair perto da meia-noite do dia do seu aniversário.
Ainda assim, apesar do cenário, a vida no centro acabou por não se revelar nada do que esperava. Tara já tinha visto vídeos de outras instalações do género, encaminhadas por grupos do Whatsapp, que mostravam salas vazias através de janelas com grades. Mas o que a esperava ali pareceu-lhe, à primeira vista, um “acolhedor dormitório universitário”.
Tinha móveis novos ainda com as etiquetas da loja e tudo cheirava a desinfetante. No pacote de boas-vindas, havia massa, champô, gel de banho e pasta de dentes, ao lado de uma chaleira e um secador de cabelo. Desfez as malas e logo lhe chegou uma mensagem a pedir-lhe para escolher as opções da alimentação – uma mistura de pratos asiáticos e ocidentais, com opções vegetarianas e tudo.
Podia até passear do lado de fora da casa, de máscara claro, para usufruir do ar fresco e fazer exercício, em vez de ser obrigada a passar duas semanas num quarto. Os confinados eram mesmo autorizados a conversar entre si, embora houvesse sinais por todo o lado para “evitar reuniões” para “impedir a propagação de novos coronavírus”. Foi nessas incursões que conheceu funcionários de um bar, uma comissária de bordo e um casal de reformados.
Com capacidade para cerca de 130 pessoas, cerca de metade dos quartos estava ocupada, embora houvesse chegadas e partidas na maioria dos dias. Uma semana depois da sua chegada, estabeleceu-se uma rotina surpreendentemente normal.
O “novo normal”
As refeições eram entregues em carrinhos com bandejas, deixados do lado de fora da porta de cada um. Eram ainda autorizados envios de fora do campo e Tara recebeu não só lanches e bebidas como um reforço para a sua instável ligação à internet. Neste cenário, as verificações de temperatura e constantes chamadas do pessoal médico do campo podiam ser irritantes, mas eram sempre apresentadas com um benefício para a sua saúde e de todos.
Visto do resto do mundo, o formato escolhido é desconcertante: parece de uma cautela exagerada, mas também prova o empenho do governo de Hong Kong em reprimir casos importados e pressionar a complacência local. Qualquer pessoa que tenha um teste positivo é hospitalizada, mesmo que não tenha sintomas e não seja um caso de alto risco – e só tem alta depois de duas análises negativas.
As medidas impostas vão mais longe: quem chega de fora tem obrigatoriamente de se isolar, em casa ou num hotel, durante duas semanas, sempre monitorizado por uma pulseira de rastreio. E estes esforços são todos acompanhados pelos habitantes de Hong Kong que alteraram por completo o comportamento. Usar máscara, higienizar as mãos o tempo todo, trabalhar e aprender em casa, além de manter sempre distanciamento social tornaram-se o “novo normal” por ali.
A rematar o relato da sua experiência, Tara dá por si a considerar que teve uma experiência de quarentena bem mais longa e estranha do que a dos seus amigos. Ainda assim, considera que teve sorte: não ficou infetada, não chegou a ser internada no hospital e as condições do campo eram relativamente boas.
A receber mensagens de apoio da família, amigos e colegas, confessa até que não se sentiu nada isolada. “É verdade que passei o aniversário sozinha, mas graças às videochamadas estive sempre acompanhada” descreve. “E agora que posso deixar a quarentena e voltar para casa terei o melhor presente de todos.”