Junto à embaixada americana em Londres, fortemente vigiada e onde se diz que a CIA terá os seus escritórios no quarto andar, localiza-se o Millenium Hotel. Foi aqui que, em novembro de 2006, dois agentes secretos russos, Andrei Lugovoi e Dmitri Kovtun, conseguiram finalmente sentenciar Alexander Litvinenko.
Depois de trabalhar como agente para o FSB (a agência de espionagem russa que sucedeu ao KGB), Litvinenko fugiu de Moscovo em 2000. Vivia em Inglaterra, onde era escritor, jornalista e, desde 2003, avençado dos serviços secretos de sua Majestade, o MI6, na qualidade de especialista sobre o crime organizado no seu país natal.
Os serviços secretos russos seguiam-no de perto. Havia razões de sobra para o fazerem. Além dos bons ofícios prestados por Litvinenko à coroa britânica, o antigo operacional da FSB estava também a passar informação sensível ao serviços secretos espanhóis sobre a máfia russa na Península Ibérica. Tudo isto era do conhecimento do Kremlin. Com um detalhe de particular importância. As ligações perigosas denunciadas por Litvinenko iam até ao mais alto magistrado da nação, Vladimir Putin. E tinham sobretudo a ver com a velha amizade entre o Presidente e um seu professor Anatoli Sobchak, primeiro autarca a ser democraticamente eleito em São Petersburgo, após a implosão da URSS. Uma dupla que, entre 1990 e 1996, governou a cidade dos czares com o apoio de setores ligados supostamente ao submundo. Ora este historial era conhecido de Litvinenko e ele preparava-se para testemunhar perante um procurador espanhol – um facto que terá supostamente acelerado os esforços do Kremlin para o silenciar.
Lugovoi, um antigo guarda-costas do Kremlin, estava em Londres com a família para ver um jogo do CSKA contra o Arsenal. Alexander Litvinenko conhecia Lugovoi desde os anos 90, quando ambos trabalhavam para o oligarca Boris Berezovski. Em 2005, Lugovoi voltou a estabelecer contacto com Litvinenko, sugerindo que trabalhassem juntos para incentivar empresas ocidentais a investir na Rússia. Às 11h41 do dia 1 de novembro de 2006, Lugovoi telefonou ao agente do MI6 e combinaram encontrar-se mais tarde no Millenium Hotel.
Segundo a Scotland Yard, Alexander teve uma agenda preenchida naquele dia. Primeiro, apanhou o autocarro de Muswell Hill, no norte de Londres, onde morava, e depois o metro para Picadilly Circus. Às 15 horas, almoçou num restaurante de sushi com o sócio Mario Scaramella. Por esta altura já tinha evitado várias chamadas de Lugovoi, que começava a tornar-se inoportuno. Nova chamada. Lugovoi pediu a Litvinenko que se despachasse, uma vez que brevemente teria de sair para o estádio.
As câmaras do hotel mostram Lugovoi a chegar à receção às 15h32 e a pedir direções para a casa de banho. Às 15h45 é a vez de Kovtun repetir o procedimento. As análises viriam a mostrar contaminação por altos níveis de radiação alfa na casa de banho do hotel, indicando polónio-210, uma substância radioativa e letal. Às 15h59, Alexander entra no hotel e chama Lugovoi, que lhe indica os lugares no bar. O polónio encontrado mais tarde no hotel foi escolhido pelos assassinos por julgarem que não podia ser detetado, segundo a Scotland Yard.
Alexander viria a dizer a Brent Hyatt, detetive da Scotland Yard, que Lugovoi sabia que ele não bebia álcool e que não gastava dinheiro facilmente. Quando se sentaram, o empregado perguntou se Alexander iria tomar alguma coisa, ao que ele respondeu que não. Lugovoi disse-lhe que brevemente teriam de ir para o estádio e ofereceu o resto do chá que estava em cima da mesa. O bule deu para encher meia chávena. Alexander deu 4 goles e pousou a chávena. O chá estava frio. Os três, Litvinenko, Lugovoi e Kovtun, falaram brevemente sobre a reunião do dia seguinte numa empresa de segurança privada. Litvinenko terá então suspeitado de Kovtun. Lugovoi olhou para o relógio, disse que a mulher o esperava e saíram. O encontro durou 20 minutos.
Dezassete dias depois do encontro, Alexander Litvinenko estava deitado no hospital, mortalmente doente. O caso confundiu os médicos, que suspeitavam de envenenamento por tálio, mas Litvinenko não sentia dor ou dormência nos dedos e nos pés, sintoma habitual em situações relacionadas com esta substância.
Também a polícia não conseguia ter uma ideia clara do que estava a acontecer. Um russo envenenado, que falava mal inglês, um enredo confuso que envolvia visitas de Moscovo e um leque de possíveis locais do crime. Brent Hyatt e Chris Hoar, os detetives da Scotland Yard, entrevistaram Alexander Litvinenko na unidade de cuidados intensivos do 16º andar do University College Hospital.
Alexander tinha sido admitido no hospital como “Edwin Redwald Carter”, o seu pseudónimo britânico. “Testemunha crucial” na investigação, respondeu a 18 entrevistas que totalizam 8 horas e 57 minutos. Estas conversas estenderam-se de 18 de novembro até perto das 21 horas de dia 20. As transcrições só foram divulgadas em 2015. São o testemunho de um fantasma. Um fantasma que usa as últimas energias para resolver o mistério do seu próprio assassínio.
Carter-Litvinenko sabia como as investigações funcionavam e isso fez dele a testemunha ideal. Nas transcrições, descreve detalhadamente os suspeitos e antecipa-se à polícia, dizendo que não os podia incriminar porque não havia provas suficientes. Disponibiliza ainda um relatório completo sobre a sua carreira no FSB e fala sobre a boa relação que mantinha com a jornalista russa Anna Politkovskaia, outra inimiga de Putin, morta em outubro de 2006 à porta do seu prédio em Moscovo.
Com o tempo a esgotar-se, faz o que pode para que o mistério se resolva. Nas gravações feitas pela Scotland Yard diz que só Kovtun, Lugovoi e o seu sócio italiano poderiam tê-lo envenenado. Debilitado, revela aos agentes que os seus papéis mais importantes estavam em casa, com informação comprometedora acerca de Putin e de pessoas do seu círculo mais restrito.
As suspeitas sobre Lugovoi agravam-se quando Carter fala sobre os números de telemóvel secretos que ambos usavam para comunicar e pede à esposa para trazer uma foto de Lugovoi que tem em casa. Entretanto, descreve-o com uma minúcia crucial para a investigação e diz que não o considera seu amigo, mas seu sócio.
“Não tenho dúvidas de quem tenha cometido este crime, recebo frequentemente ameaças desta gente”, afirma ele, nas gravações, esclarecendo que “isto foi feito pelos serviços secretos russos.” Carter diz saber como funciona o sistema e que a ordem de matar um cidadão noutro país só pode ter sido dada por uma pessoa.
“Quem é essa pessoa?”, pergunta Hyatt.
“Essa pessoa é o Presidente da Federação Russa, Vladimir Putin.”
Com o estado de saúde de Alexander Litvinenko a agravar-se, George Menzies, seu advogado, começou a escrever uma declaração em nome do doente, fazendo o melhor por representar aquilo que acreditava serem os sentimentos e estado de espírito de Alexander. Da declaração constavam o amor à sua esposa, o orgulho em ter obtido nacionalidade britânica e as suspeitas do que esteve na origem da súbita doença. A esposa, Marina, reagiu negativamente ao texto, afirmando que aquilo siginificava uma capitulação, mas convenceu-se de que “seria melhor agora do que mais tarde”.
Alexander disse que o texto era exatamente o que ele queria dizer e assinou por baixo no dia 21 de novembro. Litvinenko viria a falecer no hospital, após três paragens cardíacas no dia 23 de novembro de 2006.
Os resultados do relatório elaborado pelo juiz Robert Owen foram divulgados esta quinta-feira, 21, e apontam diretamente para o Presidente russo. Putin terá aprovado a execução de Alexander Litvinenko, com o crime a ser levado a cabo pela dupla Andrei Lugovoi e Dmitri Kovtun, quando o FSB era liderado por Nicolai Patrushev. O documento levanta a hipótese de este comando assassino se ter deslocado a Londres com a missão de silenciar o antigo espião russo e acabar de vez com as suspeitas de pedofilia que recaíam sobre o Chefe de Estado russo. Litvinenko acusava-o até de ter destruído vídeos em que Putin mantinha relações sexuais com menores.