Foi atriz, realizadora, deputada, agora é autarca. Diz que não é dada a saudosismos e que nunca fez planos para o futuro. Aos 50 anos, Inês de Medeiros preside um dos maiores municípios do País, conquistado, por um punhado de votos, à CDU. Eleita pelo PS, recusou o abraço de uma geringonça local e aliou-se ao PSD para gerir o concelho. Elegeu como missão devolver a Almada a sua centralidade, rompendo a “muralha de aço” que tem impedido a cidade de olhar Lisboa nos olhos.
Enquanto não arranja alternativas para desviar o trânsito de pessoas e de carros do centro, quer resolver o problema “inadmissível” dos bairros de barracas – embora, como afirma, sem o grau de tensão e de conflitualidade do vizinho Bairro da Jamaica (Seixal) – e devolver a memória ao antigo presídio militar da Trafaria, que planeia transformar num centro de arte e tecnologia.
Ao fim de pouco mais de um ano de mandato, mostra-se à vontade no papel de autarca, mas admite que todos os dias tropeça em temas que dariam para fazer um bom documentário. “A nossa vida é sempre uma recolha de material para qualquer coisa”, diz.
Já arrumou a casa? Qual foi a maior surpresa resultante de mais de quatro décadas de gestão da CDU em Almada?
Esta câmara nunca mudou de cor política. Criam-se muitos hábitos quando não há mudança. E, quando há, os hábitos permanecem. No início do mandato, éramos um corpo estranho. Agora somos menos. O que mais nos surpreendeu foi uma vivência alheada do resto do mundo, como se Almada fosse uma terra muito longe de tudo, o que é muito estranho, num município de uma extraordinária centralidade.
Almada sofria do estigma da Margem Sul?
Esse estigma foi em parte real e em parte alimentado. O próprio (des)ordenamento do território reflete como o município se via e se queria projetar. Quando chegamos de cacilheiro a Cacilhas, pomos os pés em terra e deixamos de ver Lisboa. Há uma espécie de muro, de muralha de aço [risos]. Não faz sentido sermos o município da resistência. Os próprios almadenses sentiam um desfasamento entre as potencialidades de Almada e a realidade. Tem de haver outra dinâmica.
O destacamento de funcionários da Câmara Municipal do Seixal [liderada pela CDU] para a festa do Avante! também aconteceu em Almada?
Quando chegámos, estava em curso uma ação da Inspeção-Geral de Finanças, que já produziu um relatório preliminar. Pedimos uma auditoria complementar aos procedimentos internos e externos, como, por exemplo, à atribuição de apoios. Sempre que há uma situação pouco clara, faço algo para clarificar e remeto-a para as entidades competentes. Mas não me apetece lançar esse debate. Muitas dessas situações resultam de hábitos de funcionamento, de fornecedores… O nosso intuito não é fazer o processo do passado, mas construir o futuro. Um mandato é muito curto; tenho pouco tempo para me dedicar a isso.
No ano passado, a Festa do Avante! dirigiu-nos um pedido oficial de empréstimo de baias, árvores e cadeiras, nos termos mais transparentes possíveis. Cedência de funcionários não, mas houve cedência de algum material. A Festa do Avante! é uma referência, eu própria cresci a ouvir muitos músicos que iam lá tocar. Não temos qualquer objeção em conceder apoios, mas funcionários não. Antes de chegarmos, não sei o que acontecia.
Que marca quer deixar como autarca?
Neste mandato, a marca de um impulso. Almada tem de sair de um estado de bela adormecida e acordar para todo um fervilhar que existe na Área Metropolitana de Lisboa, assumindo a sua centralidade, tendo um espaço público mais qualificado, sendo um município de referência a nível universitário e criando um conjunto com a capital. Somos dois municípios que se olham nos olhos. Encaramo-nos de frente.
Lisboa e Almada precisam de mais ligações físicas? De uma nova travessia sobre o Tejo?
Precisamos de pelo menos mais uma ligação física, seja ela ponte ou um túnel. A Ponte 25 de Abril está claramente saturada. Há quem defenda que é melhor uma ponte, há quem diga que é melhor um túnel. Eu respondo que, por enquanto, o melhor é o barco. Precisamos urgentemente de ter mais navios a atravessar o Tejo: de mais transportes públicos mas também de embarcações turísticas. Vamos tentar que o barco que liga a Trafaria a Belém chegue também a uma zona mais central de Lisboa.
Temos de arranjar alternativas para que as pessoas não se vejam obrigadas a virem ao centro de Almada para atravessar a ponte, apanhar o comboio ou até mesmo o cacilheiro. Tudo se concentra no centro de Almada. Precisamos de arranjar soluções de maior fluidez, de maior resposta…
Qualquer almadense diria que é para ontem…
E eu concordo. Só posso concordar.
É muito pouco o que está a dizer.
A maioria dos almadenses, 52%, trabalha em Almada, 46% deles deslocam-se diariamente para Lisboa e uma pequena parte para o Seixal. O trânsito na ponte não é só de Almada; é de todos os municípios a sul. Este é um local de passagem que recebe tráfego de todos os lados. Não vamos eliminar os carros, mas a única solução é melhorar os transportes públicos. Também gostaria que as pessoas tivessem de ir menos à margem norte. Projetos como a Cidade da Água [nos antigos terrenos da Lisnave] incluem a habitação, o comércio e os serviços. Quanto maior for a economia local, menos pessoas terão de atravessar o rio.
Existem dois grandes projetos na calha: a Cidade da Água e o Cais do Ginjal. Há outros em perspetiva?
Estamos a terminar o plano de pormenor e o contrato para a reabilitação do Ginjal, para que o promotor privado possa arrancar com a obra. Isto envolve o cais e a proteção da arriba até ao cimo, onde há uma Casa da Juventude. Na Margueira [antigos terrenos da Lisnave], estamos a analisar o caderno de encargos. A Parpública e a Baía do Tejo lideram o projeto da Cidade da Água, mas compete ao município estudar soluções para a mobilidade. Além disso, estamos a olhar para zonas ribeirinhas, como o Olho de Boi e a Quinta da Arealva, e temos um grande projeto para a Trafaria, em parceria com a Universidade Nova, para abrir um instituto de arte e tecnologia.
Um autarca deixa sempre uma marca de betão? É inevitável?
Não, não. Eu não gostaria nada de deixar essa marca. Estamos a falar de reabilitação, mais do que de construção. É obra, sim, mas, mesmo no projeto da Trafaria, referimo-nos à reabilitação do antigo presídio [militar, encerrado após o 25 de Abril]. Queremos preservar a zona mais emblemática das celas enquanto um espaço expositivo, para manter a memória. Não sei se não haverá lugar para uma construção nova, mas espero que não seja a do betão pesado.
Almada é o concelho da Grande Lisboa com o maior número de famílias em bairros de barracas. Sente-se mais pressionada a resolver a situação, depois dos incidentes no Bairro da Jamaica?
Almada tem a sorte – e isso é mérito dos executivos anteriores – de não ter o mesmo grau de tensão e de conflitualidade. No caso do Bairro da Jamaica, a forma como o espaço foi ocupado estimula a agressividade e o confronto. Não estou a dizer que os nossos bairros de barracas são bons para se viver. São inadmissíveis e nós temos de resolver a situação. Podemos adotar, aqui e ali, medidas de mitigação, como no Segundo Torrão [na Trafaria], evitando, assim, as puxadas ilegais de eletricidade, até por razões de segurança. No entanto, temos de ter a consciência de que aquele bairro, até pela proximidade com o rio, não pode continuar ali. Ou recua ou as pessoas são realojadas.
Qual é o seu plano?
Estamos a fazer o levantamento não só das famílias dos bairros de barracas mas também das que vivem em habitações degradadas e insalubres, para nos candidatarmos aos fundos para a reabilitação. Depois, terá de ser verificada a situação da habitação social. Temos um parque habitacional maior do que o do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU), mas há fogos em muito mau estado, sem acompanhamento e sem fiscalização. Temos famílias com sete pessoas num T1 e pessoas sozinhas num T4. Há também práticas ilícitas de tráfico de chaves. Essas situações têm de ser resolvidas. Não está excluída a construção de habitação social, mas não é uma prioridade. Não queremos mais guetos.
Como define os acontecimentos no Bairro da Jamaica? Há racismo em Portugal ou estamos perante um caso de violência policial?
Há quase 20 anos, quando realizei a minha primeira longa-metragem – o documentário O Fato Completo ou à Procura de Alberto –, fiz um casting com jovens de origem africana, nascidos em Portugal, e fiquei impressionada, porque quase nenhum deles se sentia português. Alguns, até me disseram: “Já olhou para mim? Acha que alguém me considera um português?”. Esses jovens, que hoje são adultos, não tinham tido meios para conhecerem o país de origem, mas diziam que eram cabo-verdianos, angolanos, santomenses.
Existe uma incapacidade de reconhecer que Portugal é multicolor, mas isso é indesmentível. Podemos discutir se somos menos ou mais racistas, se é um racismo soft ou um racismo duro, mas dizer que não há racismo em Portugal é absurdo. Sabemos que existe. O pior dos racismos, do qual as pessoas falam sem qualquer pudor, é o anticigano.
Como se faz a integração?
Faz-se, por exemplo, quando os partidos sentirem vergonha das suas bancadas parlamentares. Mas também se faz com um combate feroz aos que são contra o politicamente correto. O politicamente correto é sinal de civilização. Ser contra, é sinal de estupidez. Essa moda de que somos modernos, porque somos contra o politicamente correto, é burgesso e é estúpido. Claro que temos de ser politicamente corretos!
Que conselho gostaria de dar à ministra da Cultura? Isto a propósito de ser contra o politicamente correto…
[Risos.] A ministra é alguém de quem sou amiga. Vou tentar ser neutra e imparcial, mas não lhe gabo a sorte. É claramente insuficiente a afetação de verbas à Cultura. O conselho que lhe dou é que ela mantenha a energia e a perseverança – e também a capacidade de inovar que sempre demonstrou.
E deve mudar o discurso?
É bom que cuide um bocadinho da forma como o diz [risos].
A atual ministra vem da administração do Estado…
Um ministro da Cultura não tem de ter um passado na Cultura, mas é obrigatório que tenha sensibilidade cultural. A cultura não tem de ser utilitária. É uma válvula de escape das tensões sociais, transformando-as em criatividade. Saber se é alguém ligado à cultura é secundário, mas o que importa é que tenha essa sensibilidade e essa visão, e a Graça Fonseca tem-nas. Se ela pudesse introduzir algum Simplex na administração cultural, que é um meio tão heterogéneo, isso seria fantástico.
Fala sobre a cultura com bastante entusiasmo. Vê-se como ministra da Cultura, no futuro?
Estive seis anos no Parlamento a debater estas questões e também a criticar o meio cultural, que não é capaz de apresentar-se perante o poder político de forma unida. Agora que passei para o outro lado, percebo as dificuldades do poder político. É muito difícil termos uma voz, coerente e unida, sem dizer mal do colega do lado. Mas dava jeito [risos]. Como presidente da Câmara Municipal de Almada, estou a aprender imenso. Nunca fiz planos para o futuro. Carpe diem.
Tem mais saudades do plateau, de viver em Paris ou do Parlamento?
De viver em Paris não tenho saudades nenhumas. Tenho saudades de ter tempo para passear em Paris. Gosto da cultura francesa, gosto dos franceses, apesar de terem um lado muito chato; gosto dos parisienses, apesar de serem insuportáveis, mas Paris é uma cidade muito dura para se viver. Eu sou mesmo lisboeta – e agora almadense. Passo cá 17 horas por dia. Gostei muito de ser deputada, mas não prevejo nem excluo continuar a sê-lo. Não sou dada a saudosismos, mas é verdade que todos os dias encontro temas bons para o documentário, até mais do que para a ficção. Tão bons, tão bons…
Está a inspirar-se?
A nossa vida é sempre uma recolha de material para qualquer coisa. Às vezes gostava de parar um bocadinho para filmar, mas não me é possível. Tenho aprendido tanto. Até envelhecer me tem dado gosto. Não tudo, mas… [risos]