Surpreendida pela “luz fantástica”, Susana Costa apaixonou-se pela casa, quando nela entrou, pela primeira vez, em outubro passado. Um momento com onze anos de atraso a que ela e Nuno Oliveira resistiram, de forma estoica, juntamente com outros 44 resistentes do imbróglio das Residências Martim Moniz. Com a escritura inicial marcada para dezembro de 2003, só assinarão os papéis em janeiro de 2015, data em que receberão as chaves do seu T2, sorteado, em 2001, no concurso da Epul Jovem. O programa da empresa, constituída em 1971 – como um instrumento de ordenamento do território ao serviço da Câmara Municipal de Lisboa -, nascera em 1996, com a intenção de combater a desertificação de Lisboa, colocando no mercado habitacional fogos a preços competitivos e exclusivamente para jovens, em zonas centrais. De uma lista de 12 empreendimentos, dos quais o Martim Moniz é o oitavo, a Epul Jovem foi responsável pela construção de 2 425 casas, em zonas como Paço do Lumiar, Telheiras, Vale de Santo António, Alto da Faia, Quinta dos Barros, Graça ou Entrecampos.
Fotografias para mais tarde recordar
Amigos desde a adolescência, Susana e Nuno andavam juntos, de bicicleta, na terra dos avós dela, na Murgeira, perto de Mafra, onde os avós dele também tinham uma casa. Começaram a namorar em outubro de 1999, “no dia em que a Amália Rodrigues morreu”, recordam.
Aliciado pelos boatos de que o eixo da Avenida Almirante Reis ia ser melhorado e que um dos centros comerciais da Praça do Martim Moniz seria demolido, Nuno, 38 anos, viu no concurso da Epul e nos anúncios de “casas, a bons preços, no centro da cidade”, uma oportunidade de se mudar de Odivelas para Lisboa. A sorte bateu-lhe à porta com o número 65 e inscreveu-se nas categorias T2 duplex e T3. A sua primeira escolha recaiu num T2 com 76 metros quadrados e vista para o Castelo de S. Jorge por 22 900 contos (114 mil euros). Deu 500 contos de entrada e, até 2007, amortizou 75 mil euros. Falta-lhe pagar cerca de 50 mil euros de uma casa que só será sua onze anos depois. “A boa parte do negócio” é o metro quadrado ao preço de 2001 (€1 487).
Em setembro de 2002, alguns meses antes de casar, o atual auditor interno numa empresa do setor energético recebeu uma carta da empresa municipal a anunciar a “suspensão da obra por não se enquadrar na envolvente histórica e urbana da zona”, dando uma previsão de mais um ano e três meses para reformularem o projeto. Nuno e Susana suspenderam também as subidas regulares ao Castelo de S. Jorge para tirar fotografias às obras com a intenção de registar a evolução da edificação dos prédios. “Até o meu avô andava, de vez em quando, a rondar as obras… faleceu sem ver o prédio de pé”, lembra Nuno. “Começámos a ficar nervosos com a falta de comunicação por parte da Epul, não partilhando o estado real da obra. Tínhamos a possibilidade de rescindir mas não quisemos. Não gosto de desistir e continuava a acreditar que, um dia, viria morar em Lisboa.” Para Susana, 37 anos, enfermeira no Hospital ?D. Estefânia, morar naquela casa era ideal, “assim ia a pé para o trabalho”.
Com o novo projeto arquitetónico, em 2006, o casal teve a possibilidade de rever a tipologia da casa e a sua localização. Em janeiro, entrarão à mesma num T2, com mais nove metros quadrados e um pátio interior do lado das traseiras, mais resguardado do bulício das ambulâncias e dos carros de bombeiros. “Foi uma escolha consciente, para se conseguir dormir.” Entretanto, já nasceram dois filhos, com 7 e 5 anos, e estão bem instalados num T4, em Odivelas. Para já, não pensam em vender a casa da Epul e, apesar de exaustos e sem grandes motivos para festejar, querem abrir uma garrafa de champanhe. “Agora, é rentabilizar o negócio. O sonho passou a investimento.”
Onze anos a valorizar
Para Luís Osório nem chegou a existir a ilusão de morar na sua casa com um quarto e uma sala com kitchnet. “A vida não é de sonhos.” Pouco agradado com alguns acabamentos como os estores de manivela, a placa de gás ou o pavimento, vê a casa do Martim Moniz como um investimento: ?”É para alugar a estrangeiros, para estadas de curta duração”, conta. Só não desistiu da compra, em homenagem à sua mãe, falecida em 2006, que sempre lhe disse que uma casa na Baixa da cidade era um investimento melhor do que no Alto da Faia. Aos 25 anos, quando se inscreveu no Epul Jovem escolheu um T1, com 55 metros quadrados, “um dos mais baratos”, por 16 mil contos (80 mil euros). À medida que o projeto foi sofrendo alterações, Luís mudou de um T1 nas traseiras, para um T1 central e agora, finalmente, vai escriturar um T1 com vista para a renovada Praça do Martim Moniz. “Onde antes havia droga e prostituição, agora há esplanadas, cafés e bom ambiente.” Valorizada a zona da cidade, Luís diz não vender a casa por menos de 200 mil euros.
Nesta delonga de onze anos, foi ao banco uma mão cheia de vezes, para renegociar o empréstimo, cujos juros estão a ser pagos pela Epul desde junho de 2002 (18 meses antes da data inicial marcada para as escrituras). Nascido em Lisboa, aos 7 anos mudou-se, com a família, para o Brasil, de onde só voltou aos 21. Lá morou numa dezena de casas e passou por oito escolas, razões para se ter tornado num homem pragmático e desapegado. Aos 38 anos, gere a sua empresa de próteses dentárias, a Biofisa Osstem Implant, e as diversas viagens de trabalho realizadas todos os anos fazem com que a casa onde mora, na Quinta do Lambert, funcione como hotel.
Uma casa sempre em festa
Terão alguma vez os arquitetos da Epul Jovem projetado uma casa com três quartos (T3) para um casal com sete filhos entre os 15 e os 2 anos?
Provavelmente, não. “Um quarto ao lado da cozinha foi pensado, obviamente, para ser um escritório. Não pensaram em famílias grandes. O maior erro deste projeto foi fazer casas de tipologia pequena [39 T0 e 95 T1]”, aponta Ricardo Roque Martins, 41 anos, arquiteto e professor de Artes Visuais e de Religião no colégio Planalto, onde também estudou. Outras “soluções menos académicas” de uma das primeiras 164 casas construídas, em 1999, no Paço do Lumiar, são a ausência de hall e o facto de o corredor passar pela sala, fazendo com que a zona social não seja autónoma. “Esta é uma casa muito utilitária. Para viver em condições ótimas teria de ter um quarto para cada criança. Mas, com sete filhos, tivemos de fazer adaptações.” Arranjar uma mesa redonda para a sala, por exemplo. “É a única solução que deixa tudo à mesma distância de todos”, explica o patriarca. Ricardo já namorava havia sete anos com Marina, 41 anos, educadora de infância, quando se candidatou a uma das casas dos seis primeiros blocos de habitação da Epul Jovem, nas ruas Professor Alfredo de Sousa e Professor Manuel Viegas Guerreiro. Bastava ter entre 18 e 30 anos e aceitar o ónus de não a vender nos cinco anos seguintes. Tendo a família como único e grande projeto de vida, Ricardo e Marina escolheram um T3 com 99 metros quadrados por cerca de 20 mil contos (100 mil euros). “Lembro-me de visitar a obra, com o terreno em lama, ver as fundações e as primeiras lajes a subirem”, conta.
Em 1999, Ricardo e Marina casaram-se, foram morar para a casa nova e nasceu o Bernardo. “Durante alguns meses ainda tive um escritório só para mim, com estirador e tudo. Agora, é o quarto da Maria [10 anos], da Leonor [8 anos] e do Vicente [5 anos]”. “Quase todos os meses há uma festa de anos, só quando vão cinco dos sete para os escuteiros é que a casa fica mais sossegada”.
Quinze anos depois de comprar a casa, Ricardo e Marina assumem que, sem o programa jovem da Epul, talvez morassem numa moradia, em Loures ou Odivelas. “Somos o paradigma de que a habitação social não é só para os pobres. Não é uma questão de dinheiro, é uma questão de existirem as condições mínimas e aqui existem. Porque é que em Portugal a casa é considerada um luxo e não um bem de primeira necessidade como o leite e o pão?”
Um compromisso para a vida
Há um mês, terminaram as primeiras pinturas exteriores do prédio roxo, vizinho do lado do edifício azul, onde moram os Roque Martins. O jornalista desportivo Luís Simões, 41 anos, conheceu Ricardo logo em 1999 quando integraram o primeiro grupo de moradores a tratar da administração do condomínio dos seis blocos habitacionais. Tal como Ricardo, também Luís já conhecia Telheiras/Paço do Lumiar desde os tempos em que vinha de autocarro visitar a namorada Cleia Cunha. Numa das suas incursões românticas por Telheiras passou por um cartaz que dizia: “Até que enfim! Habitação para jovens a partir de 7 900 contos” (perto de 40 mil euros). “Lembro-me perfeitamente dos panfletos a preto e branco com as diversas tipologias”, conta Luís que ficou em 25.º lugar, em cerca de 300 candidaturas ao primeiro concurso da Epul Jovem, enquanto Cleia era a 90.ª dos suplentes.
“As pessoas tinham medo de comprar em planta. Mas, no segundo projeto, na Quinta do Castanheiro, também em Telheiras, chegaram às dez mil inscrições”, referem. “Na planta da casa víamos o atual Eixo Norte-Sul tão perto que parecia estar à nossa janela”, recorda Cleia Cunha, 37 anos, zooarqueóloga desempregada. Juntos, escolheram um T3 com 95 metros quadrados por 20 mil contos (100 mil euros). Hoje, falta-lhes pagar perto de 30 mil euros e têm a noção de que se não tivessem adquirido casa através da Epul Jovem teriam ido morar para fora de Lisboa. Assustados com o compromisso a que a casa obrigava nos próximos anos, dois de obras mais cinco sem a possibilidade de vender, Cleia e Luís resolveram casar em agosto de 1998. “O compromisso de só dentro de sete anos nos vermos livres da casa, se alguma coisa corresse mal, foi o fator de união.” Em quinze anos, viram chegar mais gente ao bairro, permitindo o convívio entre pessoas de diferentes estratos sociais, abrir creches, escolas, parques infantis e o “jardim mais bonito da cidade”, a Quinta Nossa Senhora da Paz, nas traseiras do templo Radha Krishna. Tudo pronto para quando Luís e Cleia tiverem o primeiro filho.