A poeta Ana Luísa Amaral morreu na sexta-feira, aos 66 anos. Este é perfil que a VISÃO publicou na edição de 10 de junho de 2021:
Por estes dias, Ana Luísa Amaral bem mereceria ter os privilégios reservados a CEO e outras ditas espécies alfa, como o de dispor de assistentes para arrumar a imparável máquina da vida. Os seus últimos dias, admite, têm sido um torvelinho de solicitações, congratulações, autógrafos, entrevistas, depoimentos, sentimentos em roda livre… A atribuição do Prémio Rainha Sofia, honra literária dada a pouquíssimos poetas de língua portuguesa (Sophia de Mello Breyner, em 2003, Nuno Júdice, em 2013, e o brasileiro João Cabral de Melo Neto, em 1994) acendeu um poderoso holofote sobre esta autora com uma trintena de livros publicados e uma imbatível ética de trabalho – mas pouco habituada ao desassossego da popularidade literária. Do outro lado da linha, a voz célere desmente os 65 anos cumpridos de Ana Luísa Amaral. Fala de uma “enorme alegria” e corre como nas palavras da “sua” Emily Dickinson (1830-1886), que traduziu: “Viver é algo tão espantoso que sobra pouco tempo para qualquer outra coisa.” Mas a lucidez depura tudo com um gume igualmente usado nos seus poemas: “A palavra ‘holofote’ não me agrada. Lembra-me um bocadinho a estrela rock… Mas o facto de a luz desse ‘holofote’ estar a vir do estrangeiro, mais do que de cá, é curioso, não é?” Há de ficar para o pequeno anedotário literário nacional que Ana Luísa Amaral, ao receber o telefonema a anunciar-lhe a conquista do Prémio Rainha Sofia, perguntou atarantadamente: “Seguro? De certeza?” A interlocutora espanhola confirmou e a autora portuguesa devolveu-lhe estas palavras imortais: “Sabe, estou a passear a minha cadelita, Emily Dickinson.”
Um prémio “limpo”
Nada disto é por acaso. Ana Luísa Amaral desfaz qualquer ideia de carreira-escadote (“a minha carreira foi a de professora”) e nunca arrumou a literatura em planos rarefeitos e inalcançáveis. “Tudo isto faz parte da vida. A poesia faz parte do mundo, está sempre, sempre, sempre ligada a ele, ao mesmo tempo que o transfigura”, diz. A importância deste galardão, assume-a com graciosidade: “Só o tempo dá a perspetiva das coisas, sabemos disso. Mas há prémios e prémios. E este é extraordinário porque abrange os milhões de falantes tanto de espanhol como de português. No meio de tantos poetas extraordinários que existem neste território, ser distinguida é uma honra enorme.” Amplificada pelas circunstâncias do júri não integrar nenhum português, e pela proposta do seu nome ter sido feita pelas universidades do Porto e de Évora e redigida pela poeta Rosa Maria Martelo. Di-lo assim: “Fico muito feliz por ser um prémio ‘limpo’, percebe?”
Ser autora premiada não é uma viagem desconhecida para Ana Luísa Amaral, que, suave, suavemente, tem acumulado vários prémios que importam. Os atentos vizinhos espanhóis distinguiram-na, em finais de 2020, com os prémios Leteo e Livro do Ano atribuído ao volume What’s in a Name (pela Associación de las Librerias de Madrid). Em 2018, recebera o Prémio Internazionale Fondazione Roma: Ritratti di Poesia (a autora está traduzida numa dúzia de países, da Europa à Ásia e Américas). Cá dentro, a escritora tem um rosário de distinções difícil de igualar: venceu o Prémio Literário Casino da Póvoa e o Grande Prémio de Poesia APE/CTT, ambos em 2007, o P.E.N Clube Português de Novelística 2014, o Prémio de Ensaio Jacinto do Prado Coelho 2018, o Prémio Vergílio Ferreira atribuído já este ano… Os galardões recompensaram uma obra lírica, sedimentada, singular, seguríssima. Face à conquista do Rainha Sofia, de que a portuguesa foi finalista por duas vezes (e que oferece €42 mil euros atribuídos pelo Património Nacional Espanhol e pela Universidade de Salamanca, a edição de uma antologia poética da autora e a realização de umas jornadas dedicadas à sua obra na Universidade de Salamanca), o jornal El País apressou-se a dar-lhe honras de capa, atribuindo-lhe “um lugar absolutamente próprio e original no panorama da poesia lusa contemporânea”. Em letra de imprensa, elogiou a poeta como uma “profunda conhecedora da tradição ocidental (com lugar destacado para a anglo-saxónica)”, que “decidiu cultivar o seu espaço poético através de um exercício radicalmente singular, construído através de um processo de revisão contínua da tradição nacional portuguesa e do seu cânone, que revisita, recria e subverte em muitos dos seus poemas”.
“A poesia é sempre do seu tempo”
“Escrevo porque preciso de escrever, é e foi sempre uma necessidade para mim. Certa vez, a Clarice Lispector respondeu: ‘Não sou profissional, sou amadora, porque amo a literatura’; eu roubo essa resposta porque a acho muito bonita. Amo a poesia”, declara. O seu discurso, apesar das décadas de experiência académica, mantém-se refrescantemente coloquial, atencioso, claro. Não surpreende ouvi-la, subitamente, a mencionar a “dimensão da inspiração”, palavra que Ana Luísa prefere à muito citada “oficina” porque acredita não se tratar apenas de técnica e trabalho: “Há sempre um lado inexplicável, um mistério, na escrita. Acredito nisto. Não sei explicar muito bem porque é que coloco ali aquele adjetivo específico e não outro, porque falei ali de um cão e não de outra coisa qualquer.” E recorda um episódio exemplar com o poema Nu – Estudo em Comoção, guardado no seu belíssimo livro What’s in a Name: “Em que meditas tu/ quando olhas para mim dessa maneira,/ deitada no sofá/ diagonal ao espaço onde me sento,/ fingindo eu não te olhar?/ Em que pensa o teu corpo/elástico, alongado,/ pronto a vir ter comigo/ se eu pedir? As orelhas contidas em recanto,/ as patas recuadas,/ o que atravessa agora o branco dos teus olhos:/ lua em quarto-crescente,/um prado claro?/ E quando dormes, como noutras horas,/ que sonhos te viajam:/ a mãe, a caça, a mão macia, o salto/ muito perfeito/ e alto, muito esguio?” A estas linhas sensoriais, a sua habitual tradutora para inglês trocou a “mão macia” por “mouse” [rato]. “Mas Margareth, olha que é um cão…”, disse-lhe Ana Luísa. Mas a moral que lhe interessa aqui é outra: “Isto não faz mal, porque não interessa a quem lê se é um gato, um cão, a Lídia Jorge, a sombra de Ricardo Reis, para poder entender um poema…”, defende. E oferece a sua experiência de leitora amantíssima: “Isso acontece-me tantas vezes, quando leio um poeta que adoro, um Blake, uma Emily Dickinson, um Camões… Camões, caramba, que escreveu: ‘Um não sei quê, que nasce não sei onde/ vem não sei como, e dói não sei porquê.’ Isto é radicalmente contemporâneo. A poesia é sempre do seu tempo. A grande poesia é capaz de atravessar tempos porque é ética. E, para ser ética, não precisa de ser explicitamente interventiva – no sentido antigo do novo realismo, de engagé. Toda a poesia, mesmo a lírica, é uma arma. Porque é que os poetas, os escritores, vão para a prisão? Eles só têm uma caneta e um papel…”
No caso de Ana Luísa, esse arsenal pode ser complementado. Podemos falar de poetas com a prodigiosa capacidade de recitar a sua poesia de memória. “Sei os meus poemas praticamente todos de cor e os dos outros poetas que eu amo. Mas só tenho memória para isso, infelizmente…”, assume, divertida com as distrações da vidinha. E logo cita o poema chamado ironicamente de Psicanálise da Escrita: “Todo o poema/ é um estado de paixão/ cortejando o reflexo/ daquele que o criou.” Mas o mundo deixa-lhe marcas na escrita, um vocabulário a fazer-se planta trepadeira. Dentro dos seus livros, coabitam Grécia Antiga, os “carreiros de gente a parecerem oceanos a lentes de distância” em Aleppo, Calais ou Lesbos, os grupos de gente sentada à mesa com cerveja e amendoins, o amor livre para todos e o livre pensamento, as madrugadas insones da sua autora. Leiam-se as primeiras linhas do poema Entre as Duas e as Três: “Queria falar do que não tem concerto:/ as letras desenhadas e compostas/ com que confundo o espaço do papel/, a angústia compassada no contar/ e a súbita alegria de ser eu/ penosamente, às duas da manhã (…).” A autora, que publicou muita poesia, mas também romance (Ara, 2013), peças de teatro e contos infantis, ensaio (e foi tradutora de Shakespeare, Updike ou da Prémio Nobel Louise Glück, em A Íris Selvagem) assume desassombradamente que lhe é mais fácil escrever do que publicar livros.
“Fazer um livro é uma arquitetura: envolve processos de inclusão, de exclusão… Quando se escreve, escreve-se só para nós, e mais nada. Não se pensa no Outro. Acontece é que o Outro, a formiga, o refugiado, Deus, os buracos escuros, as ondas gravitacionais, tudo isso entra no que escrevemos… As fronteiras entre o corpo que escreve e o mundo são porosas.” E escrever é organizar-se a si própria? Uma terapia? Ana Luísa vai buscar argumentos à sua arca. “Psicanálise da Escrita começa assim: ‘Mesmo que fale de sol e de montanhas/ mesmo que cante os ínfimos espaços/ ou as grandes verdades/ todo o poema/ é sobre aquele/ que sobre ele escreve (…).’ Eu só consigo pensar nestas coisas depois. Não parto para a escrita, a dizer que vou brincar ali… Mal de nós seria se escrevêssemos para o mundo, para os críticos, para as modas, ou para o que fosse. Infelizmente, há quem faça isso. Eu não. Não tenho programas, não tenho afiliações, não pertenço a movimentos nem grupos, não pertenço a um lado.”
Distâncias
Esta independência estende-se às geografias biográficas. “Nasci em Lisboa, cresci em Sintra e, aos 9 anos, mudei para o Norte por razões familiares. Aliás, um dos meus livros tem o título Entre Dois Rios e Outras Noites [2008]. Talvez não seja por acaso que esta posição do intermédio, do avesso, apareça tanto na minha poesia…” Leça da Palmeira é o lugar a que, hoje, chama casa, o sítio onde arruma o computador com a placa de cortiça povoada de fotografias, onde vive com a cadela Emily Dickinson e a gata Kitty, onde guarda duas caixas cheias de poemas inéditos (“às vezes, reciclo-os, transformo um poema de duas páginas num poema de duas linhas”, confidencia). A escritora recorda-se de, em menina, aí ter chegado de noite, de sentir os “cheiros mais acres” e os solavancos do carro por causa dos paralelepípedos nas ruas portuenses. “Habituei-me ao mar de Leça da Palmeira, às nortadas, às marés vivas de Agosto, à pronúncia diferente deste nevoeiro”, escreveu anos mais tarde nas páginas do Jornal de Letras. Hoje, diz, é um mar seu. Na casa de infância, a poesia era esquecida: o pai gostava de biografias e ciência, a mãe preferia os policiais, que Ana Luísa diz, sem complexos, também adorar. Na infância, impressionou-se com clássicos – O Patinho Feio (“chorei desalmadamente”), O Soldadinho de Chumbo, O Cavaleiro da Dinamarca de Sophia, e, sobretudo, com um poema de Rui Knopfli, escondido numa antologia escolar, que, certamente, lhe recordou a sua mudança infantil, do sul para norte: “Não conheço este mar que me vem beijar os pés, o meu é mais azul, mais doce na ternura do espraiar, nem mesmo estas palmeiras são iguais às da minha terra.”
Filha única, aluna num colégio de freiras espanholas onde aprendeu a fazer churros, foi alvo das brincadeiras cruéis – inventaram um jogo do “mata a lisboeta”. Ela vingava-se, levando os jornais que tratavam a região como província, imitando “a flor do Principezinho de Saint-Exupéry que mostrava os espinhos”… Levou anos, conta, a fazer as pazes com o Norte. Hoje, continua sem sombra da característica pronúncia. Em 1976, entrou para a Faculdade de Letras da Universidade do Porto, onde viria a tornar-se professora de Literatura Inglesa e Americana, trabalhando em Estudos Feministas e Literatura Comparada – lugar onde, diz, deu tudo. Foi aí que Ana Luísa, que já escrevia versos desde cedo, foi empurrada por mão amiga para ser a poeta que é hoje – e para publicar o seu primeiro livro. Maria Irene Ramalho Sousa Santos, orientadora da sua tese de mestrado sobre o shakespeariano King Lear, deu-lhe a conhecer a poeta Emily Dickinson, uma leitura com “quietude vulcânica” que lhe suscitou algo da ordem da epifania. A ensaísta de Coimbra foi também a primeira leitora dos seus poemas, instando-a vigorosamente a publicar. Ana Luísa estava em Inglaterra quando recebeu um postal daquela a dizer: “É mesmo poeta.” E quando o primeiro livro foi editado, a primeira crítica, no extinto Independente, saudou-a como “uma voz nova na poesia portuguesa que vai dar que falar. Tanta qualidade arrepia”. Maria Irene passou-lhe ainda textos feministas como A Mulher Eunuco de Germaine Greer – “Abriram-me a cabeça”, diz. Ana Luísa Amaral tem mantido um ativismo constante, defendendo causas várias, desde as questões LGBT ao feminismo. É da sua responsabilidade a edição anotada, “limpa de gralhas”, de um livro seminal, agora a cumprir 50 anos: Cartas Portuguesas, de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa. “Estudos feministas resumem-se a uma expressão: direitos humanos”, constata, lapidar.
Regresse-se à poesia: “Depois do poema estar escrito, há necessidade de partilha, porque somos humanos. Defendo que a poesia, tal como toda a arte, é comunicação. Não acredito que haja pessoas a escrever apenas para a gaveta. Há sempre alguém, nem que seja um irmão, um amigo…” Ou 700 milhões de potenciais leitores no espaço abrangido pelo Prémio Rainha Sofia. Há quem defenda que Ana Luísa Amaral não foi suficientemente aplaudida pelo feito, em Portugal. A ex-ministra da Cultura Isabel Pires de Lima condenou, numa crónica publicada no jornal Público, um “silenciamento nacional, institucional e mediático” em torno da atribuição do prestigiadíssimo galardão: “A poesia de Ana Luísa Amaral não acompanha modas e, sendo uma poesia de elevada erudição, tem a capacidade de integrar o pequeno nada do quotidiano e a maior denúncia da crueldade social. E faz isso incorporando a mais alta tradição poética ocidental e cristã, que transfigura e subverte, com a maior comunicabilidade poética que a aproxima de amplos públicos. Talvez seja esta eficácia poética única aliada à lente feminista com que olha o mundo e à prática de uma ética cidadã incómoda que explicam este manto de silêncio (…).”
Ana Luísa Amaral prefere sublinhar um outro lado nesta conquista: “O Prémio Rainha Sofia também foi importante porque pude partilhá-lo com os meus amigos, com a minha mãe, que tem 89 anos, com a minha filha, Rita [para quem escreveu vários poemas]. Fizeram-no mais prémio. O mais importante na vida é o amor nos seus vários cambiantes.” Lá atrás, a filha de 36 anos ocupa-se com livros maternos para autografar. E Ana Luísa irá entregar-se ao prazer assumido de cozinhar. Lições de vida? “Nós sabemos muito pouco de tudo, do universo, do cérebro… Somos como as moscas junto ao vidro transparente, que continuam ali, a fazer zzzzzz…” Jangadas para a sobrevivência? “A poesia, a arte, os pequenos gestos de encontro aos outros, o agradecer por ter nascido num país em paz, onde há sol, onde não temos de entrar numa barcaça para sobreviver… Comer um belíssimo bacalhau à Gomes de Sá…”