José Luís Peixoto não planeou escrever este livro. O personagem – Manuel Rui Nabeiro, fundador e dono dos cafés Delta – é que o desafiou a fazê-lo. Em 2019, por ocasião do lançamento de Autobiografia, romance centrado num jovem escritor a quem é proposto escrever a biografia de José Saramago, Nabeiro assistiu a uma entrevista televisiva de José Luís Peixoto. Não se conheciam, e o contacto com o escritor ainda demorou algum tempo a concretizar-se. “Quando me disseram que o Sr. Nabeiro queria falar comigo, fiquei muito curioso. Fui a Campo Maior e ele disse-me que gostava muito de ver as suas memórias fixas num livro, numa biografia. Achei muito engraçado”, diz o autor, sublinhando as coincidências com o enredo de Autobiografia. Quando voltaram a encontrar-se, propôs-lhe escrever um romance biográfico: “Tinha mais a ver com o meu trabalho”, afirma. O empresário aceitou a sugestão, e assim nasceu Almoço de Domingo, editado pela Quetzal, que chega nesta quinta-feira, 25, às livrarias.
Ao longo de uma carreira de mais de 20 anos, Peixoto nunca se viu, nem se vê, como um biógrafo. “Adoro biografias, leio muitas biografias e textos históricos, mas acho que não seria capaz de fazer uma biografia como essas que gosto de ler”, brinca o escritor, explicando que “uma biografia é um compromisso com uma história factual e um romance é um compromisso com a ficção. Este romance é um pouco híbrido, em certos aspetos, mas o seu compromisso é com a história ficcional. É um romance biográfico”.
Ao receber o convite, José Luís Peixoto confessa que ficou interessado em fazer o livro. “Ia ter o privilégio de estar em contacto com as memórias de um homem que não é um homem qualquer. Tem uma história bastante rica”. E, também, alguns pontos em comum com o escritor. Ambos nasceram no Alentejo – Peixoto em Galveias e Nabeiro em Campo Maior -, estão muito ligados às origens e às respetivas famílias, e perderam o pai com a mesma idade, aos 17 anos.
Reconhecendo a existência de “aspetos sensíveis”, ao tratar de forma ficcionada as memórias do fundador do império dos cafés Delta, o autor afirma que acabou por não ser um trabalho muito difícil. “Disse-lhe que seria um livro feito a partir da perspetiva dele. Entreguei-lhe, em três ou quatro fases, uns blocos de texto praticamente terminados. Os únicos acertos que fez foram de pequenas coisas que não estavam corretas. Em relação a outros aspetos, mais ousados, ele até achou piada”.
Memórias como o passado contrabandista da família Nabeiro e a fuga do empresário para Espanha, nos anos 80, para escapar a um mandado de captura por suspeita de evasão fiscal, são retratados em Almoço de Domingo, embora sem muitos pormenores. “Não houve nenhum limite nem nenhum problema”, garante José Luís Peixoto. Mas o escritor admite que numa biografia essas circunstâncias teriam de ser “muito mais detalhadas; os temas estão ali, mas quem os quiser aprofundar deve procurar outras fontes”.
José Luís Peixoto e o empresário ainda conversaram pessoalmente cerca de uma dúzia de vezes, mas a Covid-19 trocou-lhes os planos e o livro chegou a estar parado, entre março e junho do ano passado. “Tínhamos de estar à distância, com máscara, ainda fizemos uns encontros por zoom, mas tanto ele como eu gostávamos de estar na presença um do outro. A qualidade da comunicação é diferente”, admite Peixoto.
Em Almoço de Domigo, José Luís Peixoto criou um personagem facilmente reconhecível pelos leitores mas, curiosamente, escondeu-lhe o apelido. Rui Nabeiro é apenas o “senhor Rui”, ou “Rui”, quando se confronta com as memórias de infância que preenchem boa parte dos três dias em que decorre a ação do romance. “Quando imaginei o livro, pensei dar-lhe outros nomes, mas as pessoas que lidam diretamente com ele chamam-lhe ‘senhor Rui’. Já há tantos elementos a identificarem a história deste homem que, ao omitir o apelido Nabeiro, que tem um peso enorme, achei que atenuava um pouco a presença biográfica para que o personagem pudesse ser também uma figura exemplar, um homem de 90 anos”, afirma.
Para o escritor, o romance é também “uma reflexão sobre a idade e sobre a velhice. Naquela idade, olha-se para a vida a partir de uma perspetiva específica. A questão da memória é importante. No livro, há sempre memórias, o que significa que se está a olhar mais para o passado do que para o futuro”.
O futuro só acontecerá na última parte do livro, quando a família se reúne para festejar os 90 anos do protagonista no almoço de domingo. É nesse momento que se dá uma sobreposição dos tempos e das memórias do personagem. “Aquilo que Rui Nabeiro mais valoriza são os filhos e os netos, muito envolvidos numa empresa que não é propriamente uma mercearia… Ele nunca a quis vender, apesar de lhe terem oferecido números astronómicos, inumanos…. O que é que outros fariam nessa situação?”, interroga-se o escritor. Segundo a revista Exame, Rui Nabeiro é o 15º homem mais rico do País, com uma fortuna calculada em 454,2 milhões de euros.
Os 90 anos de Rui Nabeiro, reais e ficcionados, serão festejados no próximo domingo, dia 28, em plena pandemia. Mas, por decisão do autor, a Covid-19 não está presente no livro. “Quando nos livrarmos disto, não vou querer ler livros sobre a pandemia. Neste caso concreto, iria datar bastante o romance, apesar de ser sempre um romance datado”, acrescenta.
Almoço de Domingo é a segunda obra que José Luís Peixoto publica desde o aparecimento do novo coronavírus. Em agosto de 2020, lançou o livro de poesia Regresso a Casa.