É o único jornalista da equipa de investigação que revelou o encobrimento de casos de pedofilia na Igreja Católica, em 2002, que se mantém na Spotlight, a divisão de jornalismo de investigação do jornal norte-americano The Boston Globe. Encara a investigação como “uma missão” e, por isso, nunca sentiu necessidade de mudar. Filho de pai açoriano, da ilha de S. Miguel, a sua relação com Portugal sempre foi ténue, limitando-se a raras visitas e a parcas palavras: “Não fala português”, confessou Michael Rezendes, 61 anos, à VISÃO (com sotaque, claro). Quando o ator Mark Ruffalo – nomeado para o Oscar de Melhor Ator Secundário pela interpretação de Rezendes – se sentou na sua sala de estar para o entrevistar sentiu que os papéis se tinham invertido. Agora, era ele quem seria investigado, mas não poderia estar mais satisfeito com o resultado.
Até que ponto se reconheceu no Michael Rezendes interpretado por Mark Ruffalo?
[Risos] Reconheci-me quase totalmente. Foi como olhar para um espelho de há 13 anos. O Mark Ruffalo fez um trabalho incrível e todos os meus amigos e familiares dizem que ele me apanhou na perfeição.
O filme é um retrato fiel da investigação jornalística conduzida pela equipa Spotlight?
É uma representação incrivelmente verdadeira, tanto da substância do que fizemos, como do espírito com que o fizemos.
Ouvi dizer que a maior “liberdade criativa” do filme é a cena em que paga 80 dólares a um funcionário público para lhe fotocopiar uns documentos de que precisava…
[Risos] Eu gosto sempre de clarificar que nenhuma lei foi quebrada enquanto investigámos esta história. Nessa cena houve alguma “liberdade criativa”, mas a maneira como as coisas aconteceram foi quase tão dramática como aparece no filme, apenas demorou mais tempo.
Qual foi o envolvimento da verdadeira equipa Spotlight na produção do filme?
Não havia qualquer obrigação de nos envolverem, mas a verdade é que estivemos muito envolvidos no processo. O realizador e o argumentista, Tom McCarthy e Josh Singer, escreveram o guião juntos e enviaram um primeiro rascunho para toda a equipa para que cada um desse o seu contributo. Além disso, o Tom e o Josh convidaram-me e ao Walter Robinson para revermos o guião com eles. Tentamos ajudá-los a serem o mais autênticos possível. Levei-os num passeio de carro por Boston, mostrei-lhes as paróquias, o local onde o Padre John Geoghan molestou as crianças, a catedral de Boston, onde vive o Cardeal… Enquanto decorriam as filmagens também estivemos muitas vezes com eles. Tanto em Boston como em Toronto, onde filmaram a maior parte do filme.
Sentiu que os papéis se tinham invertido? Agora, era uma equipa de cinema que o estava a investigar…
Sim, absolutamente. Senti-o especialmente quando o Mark Ruffalo veio a minha casa para falar comigo sobre o filme. Chegou a minha casa, sentou-se na cadeira onde eu agora estou sentado e, sem grande introdução, abriu um bloco de notas, ligou o gravador do telemóvel, e começou a fazer-me perguntas. Eu pensei: “Isto é altamente intrusivo!”. Depois apercebi-me de que o que estava a acontecer era uma inversão dos papéis. Eu tenho feito exatamente a mesma coisa a muitas pessoas ao longo dos anos. Era justo que eu passasse pelo mesmo. Fui investigado por um excelente repórter: o ator Mark Ruffalo.
Qual foi a maior dificuldade que a verdadeira equipa Spotlight enfrentou durante a investigação?
A Igreja é uma organização muito sigilosa. Nos Estados Unidos, a Primeira Emenda da Constituição, como a maior parte das pessoas sabe, protege a liberdade de imprensa, o que muita gente não sabe é que também protege a liberdade religiosa. Por isso, a Igreja está isenta de tornar públicos muitos dos seus documentos, ao contrário das agências governamentais, empresas ou associações sem fins lucrativos. O principal desafio foi penetrar esse véu de secretismo para descobrir a verdade sobre o que a Igreja estava a fazer. uma tarefa que exigiu um grande esforço.
Como olha para o jornalismo de investigação atualmente?
Creio que estamos a viver uma altura complicada para o jornalismo de investigação porque, pelo menos nos Estados Unidos, as empresas de comunicação social estão a enfrentar muitos desafios financeiros e não há, de longe, tanto dinheiro como costumava haver. Creio que na maioria dos jornais a investigação está a diminuir, é uma tragédia. Não acredito que uma democracia possa funcionar sem alguém capaz de responsabilizar as instituições e pessoas com poder por aquilo que fazem; e acho que ninguém além dos jornalistas o fará.
Uma das razões para eu adorar o filme é ele mostrar o quão importante o jornalismo de investigação é. Pessoalmente, sinto-me um privilegiado porque no Boston Globe, embora tenhamos sofrido cortes – houve despedimentos e fechámos todas as nossas delegações – a equipa da Spotlight é maior hoje do que na época retratada no filme [2001]. No filme temos quatro jornalistas, agora somos seis. Aumentámos o nosso compromisso com o jornalismo de investigação, mas acho que o Globe é uma exceção, creio que na maioria dos jornais do país o jornalismo de investigação está a diminuir. É uma tragédia.
Acredita que O Caso Spotlight pode alertar para a importância do jornalismo de investigação?
Esse é um dos motivos para eu gostar tanto do filme. Spotlight tem duas mensagens, uma é sobre a importância do jornalismo de investigação, a outra é sobre a importância de estar alerta para a questão dos abusos sexuais dentro da Igreja. Tenho esperança de que o filme possa contribuir para mudanças nessas duas áreas. É um facto que o filme está a ter impacto nas redações de todo o país. Há, por exemplo, o caso do Los Angeles Times, que recentemente decidiu criar uma unidade de investigação, e também ouvi diretores de outros jornais dizerem que o filme os ajudou a impedir cortes nas equipas de investigação.
A Igreja está a fazer o suficiente para combater os abusos sexuais praticados por clérigos?
Penso que nos Estado Unidos, e seguramente em Boston, a Igreja já fez alguma coisa para tentar prevenir os abusos sexuais praticados por clérigos. Mas não creio que as mesmas medidas tenham sido tomadas em todos os Estados Unidos ou em todo o mundo. Seria bom se toda a gente tomasse o que aconteceu em Boston como um exemplo e tentasse replicar as mudanças introduzidas pela arquidiocese de Boston, mas não acredito que isso esteja a acontecer tanto quanto deveria. Lamento que a Igreja ainda não tenha tomado atitudes mais concretas para combater o problema.
No final do filme aparece uma longa lista de cidades e países com ramificações do escândalo, mas não há nenhuma referência a Portugal. A vossa investigação não vos conduziu até aqui?
Não, mas isso não significa que não existam ramificações em Portugal, apenas significa que nós não as encontrámos.
Atualmente, qual é o poder da Igreja em Boston?
Hoje em dia, o poder da Igreja em Boston está bastante diminuído por causa do escândalo. Antes de publicarmos a nossa história existia uma obediência inquestionável à Igreja. Na maior parte das vezes, o que a Igreja queria, conseguia. Devido ao nosso trabalho, as pessoas estão mais disponíveis para questionar o que a Igreja quer ou diz.
O poder político da Igreja está diminuído e posso dar um exemplo claro disso mesmo. Por exemplo, antes de a nossa história ser publicada, havia uma lei no Massachusetts que obrigava certas profissões a denunciarem qualquer suspeita de abuso sexual de crianças. Há uma longa lista de profissões com esta obrigação, mas os padres sempre estiveram isentos de a cumprir. Depois de publicarmos as nossas histórias, o Estado aprovou uma lei que também obriga os padres a denunciarem suspeitas de abuso sexual de crianças.
Diz que esta foi a primeira história viral, apesar de ter sido publicada em 2002, numa altura em que praticamente não havia redes sociais.
É interessante porque nós publicámos a nossa história no despertar da era da internet, não havia redes sociais, mas o artigo estava a ser enviado por email para todo o mundo. Também foi muito importante termos publicado online os documentos internos da Igreja em que se baseava a nossa história para que as pessoas pudessem ler os nossos textos que eram bastante chocantes e também os documentos da Igreja que descrevíamos para verem por elas próprias que era tudo verdade e que não se tratava de uma loucura do Globe. A história tornou-se viral ainda antes de haver redes sociais porque era enviada por email para todo o lado.
Coube ao Michael escrever a primeira reportagem publicada no Globe sobre o tema, em janeiro de 2002. Como é que foi sentar-se para escrever um artigo como este?
Foi um pouco louco… Escrevi um rascunho, passei-o aos meus colegas de equipa para eles sugerirem alterações, depois passei-o ao Ben Bradlee Jr. e ele também fez algumas sugestões. A seguir dei-o ao Marty Baron, no filme ele aparece a editar o texto. Quando ele começa a riscar os adjetivos do texto, foi mesmo assim. [risos] É uma dramatização ele estar a editar o texto com uma data de pessoas à volta, na realidade eu entreguei-lhe o texto e ele editou-o sozinho no gabinete, mas devolveu-o com muitos adjetivos eliminados. O processo de edição tem de ser muito cuidadoso. É muito intenso porque não podemos cometer erros. Tudo tem de estar certo, não podemos cometer um único erro.
Quais são as características essenciais de um jornalista de investigação?
Temos de ser céticos relativamente ao que as pessoas com autoridade nos dizem. É preciso ter o impulso de fazer perguntas e descobrir a verdade. Creio que todos os repórteres deviam ser jornalistas de investigação, demasiadas vezes os repórteres estão com pressa, têm prazos para cumprir e aceitam o que os políticos lhes dizem como se fosse o evangelho e repetem-no jornal. Acho que isso se chama estenografia, estenografia glorificada. É tirar notas, mas não é verdadeiramente jornalismo. Para ser um bom jornalista de investigação é preciso ter fome de verdade e ceticismo acerca daquilo que as pessoas no poder nos vão dizer.
Tem alguma ideia sobre qual será o futuro do jornalismo?
Não, não tenho. Creio que ninguém tem. Se eu soubesse qual será o futuro do jornalismo provavelmente estaria a ganhar muito mais dinheiro do que ganho atualmente. [risos] Quem quer que diga que sabe qual será o futuro do jornalismo não estará a dizer a verdade. Ninguém sabe.
Qual é a sua ligação com Portugal?
Tenho uma relação muito forte com Portugal porque parte da minha família é dos Açores, de São Miguel. O meu avô e o meu pai vieram para os Estados Unidos de lá. Em 2003 visitei a aldeia do meu pai [Água Retorta] e vi a pequena casa onde ele viveu. Também fui ao continente com a minha família, fomos a Lisboa, Coimbra e ao Algarve. Vocês têm um país belíssimo.
Sabe algumas palavras de português?
Muito poucas… Tudo o que consigo dizer é: “não fala português”. [risos] Quando eu era pequeno conseguia perceber porque toda a minha família portuguesa falava em português, mas depois de ir para a escola comecei a falar só em inglês…
Continua a fazer parte da equipa de investigação Spotlight. Porque é que nunca sentiu necessidade de mudar?
Fui repórter de política durante muitos anos. Cobri política presidencial e acompanhei campanhas… Mas foi na investigação que encontrei o meu verdadeiro lugar no jornalismo. O que eu mais gosto na equipa Spotlight é que eu não vou ouvir políticos, tirar notas do que eles dizem e escrevê-las no jornal. Faço investigação. Consigo informações que não querem que eu tenha, escrevo histórias que mais ninguém tem e que podem provocar mudanças e tornar o mundo um sítio melhor. É quase como uma missão. Quando temos um trabalho que nos permite instigar mudanças, melhorar a vida das pessoas e dar voz a quem não a tem, é sinal que encontrámos um emprego fantástico.