Logo de início, ainda no genérico, uma cena de amor converte-se numa cena de ódio, de prisão, claustrofobia, violência doméstica. Um truque bem feito que nos deixa entrar num jogo emocional com o espectador, como naqueles desenhos em que o pato se transforma num coelho ou vice-versa. A desconstrução é feita através da proximidade do plano. Sabemos das artes plásticas, que, por vezes, temos de nos afastar para ver melhor. É uma máxima que também funciona para a vida: demasiado perto não se vê bem e tudo parece enorme, às vezes assustador, outras vezes magnífico.
Florbela é o segundo filme de Vicente Alves do Ó, que tem um percurso já longo no curto panorama nacional, sobretudo como argumentista. Estreou-se como realizador, no ano passado, com Quinze Pontos na Alma, um mergulho no universo misterioso de uma mulher, num cenário cheio de glamour. Desta vez, apaixonou-se assim perdidamente por Florbela Espanca. Qualquer um se apaixona pela sua poesia, claro, mas o realizador foi mais longe, investigou e deixou-se deslumbrar pela mulher. E fez, como o próprio anuncia, não um biópico, no sentido clássico, mas um filme inspirado na vida e na obra. Ironicamente, escolheu o período em que ela não escreve – opção inteligente e interessante, como quem quer explicar qualquer coisa através da sua ausência ou da sua negação. Aqui é a vida a explicar a poesia, tal como a poesia explica a vida.
Mostra, faz mesmo questão de mostrar, por vezes de forma excessiva e quase exibicionista, uma mulher à frente do seu tempo, em conflito com o meio, mal entendida, mal interpretada – apesar de a ação não decorrer no moralismo extremo do Estado Novo, mas ainda na 1ª. República, que Vicente retrata como uma época de grande boémia aristocrática, ao melhor estilo parisiense, em que não resiste ao glamour (que acaba por ser uma das suas imagens de marca). Tem mesmo cenas aparentemente escusadas, que servem, por um lado, para expandir o estilo do próprio realizador, por outro para vincar de forma extrema a ideia de que Florbela era vanguardista, não só na escrita como nos costumes.
Mais ainda do que a relação com o meio, a grande ênfase vai para a incapacidade de lidar com o outro e consigo própria, que se resume na frase: “Eu não sei viver”. A paixão pelo irmão ultrapassa e inviabiliza qualquer relacionamento estável. E o filme debate a incapacidade de ser feliz, apesar do esforço. A Florbela que encontramos é uma mulher desavinda com a vida, egocêntrica, neurótica e histérica, em convulsão interior, entre o fascinante e o insuportável.
Vicente Alves do Ó importa esta história para o seu universo extremamente feminino e com traços de glamour que por vezes se transformam num pesadelo estético, e um ultrarromantismo fora de moda. Sobretudo, gostemos ou não, percebemos que o realizador, ao segundo filme, cimenta uma linguagem que se concretiza num olhar, num estilo e até numa temática – mantém-se o fascínio pelo universo feminino ou, se quisermos, pelo mistério feminino, pelos grandes enigmas das mulheres. Para o bem ou para o mal, a marca está lá.
Florbela, de Vicente Alves do Ó, com Dalila Carmo, Albano Jerónimo, Ivo Canelas; José Neves, Rita Loureiro, 119 min