O canto do pardal persa
Se olharmos para os filmes de Hollywood há quase sempre um herói que tenta salvar a Humanidade, a namorada, a cidade da aniquilação terrorista/catástrofe natural/vírus/super-vilão. As outras opções recorrentes são as aventuras de um grupo de amigas/os em busca do amor perfeito num contexto superficial com piadas deprimentes pelo meio e clichés embaraçosos. Depois há a incessante “animatorreia” tridimensional ou simplesmente mais uma trapalhada qualquer com o Adam Sandler. Filmes de digestão fácil que vão para a “reciclagem” da memória durante os créditos finais, deixando apenas a frustração pelo tempo perdido e a irritação das cascas de milho entre os dentes. Felizmente há critério e cinema fora do circuito comercial, como por exemplo o lindíssimo “O canto dos pardais”, do realizador iraniano Majid Majidi. Com este filme o espectador não entrará numa espécie de coma induzido à consciência e ao pensamento. Em “O canto dos pardais” somos guiados por uma narrativa de acontecimentos normais, mundanos, mas repletos de magia e significado. Neste filme, de 2008, Majidi retrata a vida de uma família pobre dos arredores rurais de Teerão. Um pai, Karim, que trabalha num quinta de avestruzes, uma mãe iraniana que não usa burka nem é espancada em nenhuma altura do filme e um bando de crianças que ambicionam ser milionários criando peixes dourados. A trama é simples: uma das filhas de Karim parte o aparelho auditivo, nas vésperas dos exames escolares (um acidente destes num filme de Majidi equivale à aproximação de um meteorito à Terra numa película hollywoodesca). Depois de ser despedido da quinta de avestruzes por deixar fugir um animal, Karim ruma a Teerão onde se torna, inadvertidamente, taxista. Pelo meio há um acidente de motorizada, a solidariedade dos vizinhos e família e o deslumbramento pelo excedente material (lixo) que a cidade produz, uma fugitiva avestruz que marca a sua omnipresença com ovos. Mas a simplicidade do enredo é apenas um veículo para a inocente eloquência da lente Madiji. Peixes dourados a caírem no esgoto em slow motion, uma porta azul-turquesa no deserto, um homem mascarado de avestruz num cenário lunar e todos os pequenos acontecimentos que parecem quadros em movimento. “O canto dos pardais” tem imagens de uma beleza capaz de fazer brilhar o mais pobre dos subúrbios de Teerão. Mesmo quando as personagens do filme passam por pequenas tragédias, há um elemento de humor que dilui o desespero, ou quando a câmara de Majidi foca uma criança a chorar não o faz de uma forma exploratória ou piegas. É como se as personagens dos filmes de Majidi fossem os descendentes das personagens sofridas, estóicas e bem-humoradas das obras do escritor franco/egípcio Albert Cossery. E aqui se encontra a falha de “O canto dos pardais”. Na exorbitante humildade que alimenta condescendência e que pode pintar a personagem principal como uma espécie de Chaplin persa, alegremente a mastigar a sola de um sapato. Mas, admito, é uma falha nascida do excesso de reflexão.
Outra característica transversal na obra da Majid Majidi é o profundo humanismo, seja no brilhante “The Children os Heaven” (o único filme iraniano nomeado para os Óscares), em “Baran” ou em “The color of paradise”. Este é o tipo de arte que humaniza uma nação que está sobre a mira da máquina de guerra americana, pelo menos dos candidatos republicanos à Casa Branca em 2012. Ok, o Irão ofereceu-nos Khomeini e actualmente Ahmadinejad, mas aposto que se Michele Bachmann visse um filme de Majidi não seria tão peremptória na necessidade de uma acção militar. Talvez tivesse de engolir um enorme sapo religioso logo no início do filme depois de ler “em nome de Alá”. Mas quem poderá pensar em “eixos do mal” perante uma obra tão cândida e emocional?
Mas voltando a “O canto dos pardais”. Este é um filme que deve ter deliciado os críticos mais imaginativos, com o mundo de potenciais metáforas por descobrir e infinitos paralelismos por fazer. Uma autêntica mina de simbolismo nos conflitos entre a realidade rural e a grande metrópole, ou mesmo o materialismo da sociedade de consumo face à solidariedade de uma classe esquecida à beira do deserto. A tentação especulativa perde interesse face ao gracioso imaginário de Majid Majidi, um realizador que consegue dizer muito com pouco, usando com mestria os diálogos curtos e uma belíssima fotografia. No final do filme fica uma sensação de deslumbramento contido e uma ideia algo romântica de um país diabolizado vezes sem conta.