Antes dos psicanalistas invadirem as cidades tomadas pelo stress, as pessoas resolviam os seus problemas psicológicos de joelhos em frente a um padre. No confessionário ou no divã, de forma mais profunda ou superficial, moralista ou científica, libertadora ou temerosa, bem paga ou económica, o objetivo é a libertação da culpa e a regeneração do indivíduo. Mas, de alguma forma, o confessionário e o divã competem entre si e opõem-se mais do que se complementam, assim como acontece em geral com a religião e a ciência. Talvez o padre seja um psicanalista empírico e tradicional, e o psicanalista um padre sem batina e amoral. Mas qualquer comparação do género pode-se revelar ofensiva para ambas as classes, embora pareça óbvio que teriam toda a vantagem em comunicar.
Em Habemus Papa, Nanni Moretti, um ateu praticante, diverte-se com o Vaticano e tudo aquilo que tem de mais absurdo, exibindo não raras vezes o ridículo das suas normas e preceitos. Mas dificilmente será acusado pela Igreja com provas palpáveis, porque o filme não vai contra qualquer dogma ou regra elementar católica ou, se o faz, é de forma suficientemente subtil para que possa ser explicado com clareza. Seria fácil ao realizador de Palombella Rossa ridicularizar explicitamente alguns aspetos da Igreja de Roma, como o sacerdócio das mulheres, o uso do preservativo, a riqueza ostentada pelo Vaticano, o seu regime absolutista, mas de forma inteligente evita esses pontos centrais, para contar uma história em torno da eleição do Papa e assim torna-se ainda mais eficaz e assertivo. Aliás, o ‘folclore’ ritualista medieval não necessita de qualquer caricatura, basta a cerimónia fúnebre mostrada no início do filme.
O ponto mais sublime a que consegue chegar é dar a vitória da psicologia sobre a religião, ou pelo menos sobre aquela religião, colocando a figura do psicanalista, desempenhada pelo próprio Moretti, num patamar superior, perante um colégio episcopal psicologicamente débil que sofre, no mínimo, de um défice parental.
O mundo do Vaticano que se nos apresenta é frágil, ingénuo e absolutamente infantil. Moretti faz daqueles cardeais um grupo de homens bizarros, afastados do mundo real, que foram privados de brincar na infância e que agora têm comportamentos ingénuos e sobretudo uma sede de realidade.
Tudo isto a propósito de um Papa que tem um surto depressivo no momento em que é eleito e recusa-se a assumir o ‘cargo’. O que aparentemente é simples, na Igreja Católica assume outra proporção, pois apesar da eleição ser feita pelos cardeais, é entendida como um desígnio divino pelo que, ao mostrar um Papa não preparado para o ofício, é desafiada a existência ou eficácia do próprio Deus. É assim que Nanni Moretti, de forma subliminar, sem entrar por uma euforia anticlerical, não abordando sequer os pontos mais polémicos, derrota este Vaticano enquanto nos diverte com um filme hilariante.
Michel Piccoli que, em Um encontro Único, de Manoel de Oliveira, fez de Khrouchtchev, contracenando com João Bénard da Costa, que fazia de Papa João XXIII, agora é ele próprio o Papa que não quer ser Papa, com o qual facilmente nos identificamos e tem mais características humanas do que divinas, como se querem os homens. Habemus Papa é um filme sobre um homem que não queria ser Deus.