Durante dois anos, Jéssica Sofia Tomás Biscaia, a criança que morreu em Setúbal, alegadamente na sequência de agressões, foi sinalizada, há dois anos, em situação de risco. Um despacho do juiz André Marques do Tribunal de Família e Menores de Setúbal, detalha todo o acompanhamento da criança até ao arquivamento do processo, a 30 de maio deste ano, tal como adiantou a CNN/Portugal
De acordo com o documento, em maio de 2020 o Ministério Público instaurou um “processo judicial de promoção e protecção” de Jéssica Biscaia, nascida a 26 de janeiro de 2019, tendo por base uma suspeita de “violência entre os progenitores ocorrida na presença da criança”.
A 25 de junho daquele ano, após uma avaliação “feita pela equipa técnica multidisciplinar da Segurança Social de Setúbal”, audição dos pais e da avó materna, “foi aplicada a favor de Jéssica medida de promoção de apoio junto dos pais, com supervisão da avó materna” durante um ano. Esta medida, segundo o juiz, obteve o “consentimento” dos pais e da avó materna e estabelecia “um conjunto de obrigações de cuidados relativos à criança” que afastassem qualquer situação de violência entre os progenitores.
Um ano depois – junho de 2021 – a equipa da Segurança Social efetuou uma avaliação do contexto familiar, “propondo-se a manutenção” da medida de promoção e protecção, “por se considerar existirem ainda fragilidades associadas ao agregado familiar, designadamente a existência de períodos de ruptura e de reconciliação dos pais”. Sendo assim, a avó materna assumiu a “responsabilidade de supervisionar os cuidados parentais à neta”. A 24 de junho de 2021, a Segurança Social relatou ao tribunal que “de acordo com a informação prestada pela avó materna, a situação de violência entre o casal acalmou”. Os episódios, segundo os técnicos, “ocorriam devido ao facto de nenhum” dos elementos do casal “trabalhar e consequentemente não haver dinheiro para fazer face às despesas da família”.
Já este ano, em março, Jéssica foi inscrita numa creche e o seu plano se vacinação estava cumprido. Em maio, a Segurança Social deu conta que os pais já se tinham separado – estando o homem a trabalhar no estrangeiro desde o início do ano – e a mulher refeito a sua vida com outro companheiro.
Durante uma visita à nova casa de Jéssica e da mãe, a Segurança Social reportou que a criança “apresentava os seus cuidados de higiene e vestuário assegurados, não evidenciando quaisquer outros sinais de perigo, mantendo-se a supervisão da avó materna, com quem a menina estaria todos os dias”. Para a elaboração do relatório ao tribunal, a equipa explicou ter feito consultas nas bases de dados da Segurança Social, entrevistas pessoais e contactos telefónicos com a avó materna, a mãe e o novo companheiro.
Com este quadro, o Ministério Público promoveu o arquivamento do processo de promoção e protecção da menor, tendo o juiz concordado a 30 de maio deste ano. André Marques garante que, após o arquivamento, “não chegou” ao tribunal “ qualquer sinalização de perigo efetuada a esta criança” até ao momento em que foi publicamente conhecida a sua morte.
Suspeitas de homicídio “hediondo” devido a “bruxaria”
Jéssica, de 3 anos, morreu esta segunda-feira, dia 20, em Setúbal, alegadamente devido a maus-tratos. Apesar de ter sido assistida e transportada para o Hospital de São Bernardo, do Centro Hospitalar de Setúbal, onde foi sujeita a manobras de reanimação, não sobreviveu aos ferimentos que tinha.
Foi precisamente nessa segunda-feira de manhã que, segundo a avó de Jéssica, Rosa Tomás, a mãe da menina reconheceu os sinais de maus-tratos, quando a foi buscar a casa da inicialmente denominada ama, Ana Cristina. No entanto, só algumas horas mais tarde é que a família pediu socorro às autoridades.
O diretor nacional da Polícia Judiciária já classificou este caso como um crime hediondo. Luís Neves diz-se “triste e revoltado” com o caso da menina de Setúbal. “Trabalhámos três dias em contrarrelógio na perspetiva de podermos apresentar um resultado”, afirmou o responsável da PJ esta sexta-feira, em conferência de imprensa.
“Procuraremos, com o desenvolvimento da investigação, apercebermo-nos de todos os aspetos que estão subjacentes – antes, durante e após – à prática deste factos, que – repito – são hediondos”, garantiu Luís Neves, em declarações aos jornalistas.
Os três detidos no âmbito da investigação à morte de uma menina de 3 anos em Setúbal foram levados esta sexta-feira de manhã para as instalações da Polícia Judiciária na cidade e deverão ser ouvidos esta tarde em tribunal
Inicialmente, pensava-se que Ana Cristina tinha ficado com Jéssica durante cinco dias a pedido da própria mãe. Contudo, João Bugia, coordenador da PJ de Setúbal, explicou em declarações à Lusa que a mãe da menina foi “ardilosamente enganada” e levada a entregar a filha devido a uma dívida de 400 euros que tinha para com a suspeita. “A mulher agora detida convenceu a mãe a levar a criança a sua casa com o pretexto de que a menina poderia ficar a brincar com a neta, da mesma idade, enquanto conversavam sobre a dívida”, referiu. No entanto, quando se quis vir embora, não foi permitido à mãe da menina levar a criança de volta para casa.
Essa dívida que Inês, a mãe de Jéssica, tinha contraído era fruto de uma bruxaria encomendada a Ana Cristina, que prometera que todos os problemas da sua relação com Paulo, o padrasto, ficariam resolvidos. A despesa ia aumentando todos os dias, sempre que Ana Cristina ligava para fazer ameaças e dizer que, além do preço, acresciam juros. Ninguém, além das duas envolvidas, sabia da dívida.
A ameaça de Ana Cristina tornou-se real quando esta pediu a Inês que levasse a filha, com algumas mudas de roupa, para sua casa. Jéssica ficou cinco dias em casa da raptora, que não deixou Inês levar a criança. Ao quinto dia de espera, a mãe da menina terá recebido mais uma chamada, em que lhe foi dito que podia ir buscar Jéssica, porque esta teria caído de uma cadeira. A dívida ficaria, então, paga, mesmo sem ter sido entregue qualquer dinheiro.
Cerca de cinco horas depois ter voltado a casa, o estado de Jéssica era grave: a criança terá começado a perder os sentidos e só quando a situação revelou estar no limite é que Inês pediu ajuda médica, sendo já tarde.
Esta sexta-feira, os suspeitos do homicídio da criança, Ana Cristina, 52 anos, o marido desta e a filha foram presentes a um juiz de instrução criminal de Setúbal.