A primeira plantação de canábis com a primeira licença de exploração para fins medicinais foi inaugurada com honras de “corte de fita”. Se a tesoura assentou bem nas mãos de Brendam Kennedy, o CEO da empresa canadiana Tilray que aplicou em Cantanhede 20 milhões de euros, também o secretário de Estado da Internacionalização, Eurico Brilhante Dias, fez tudo para assentar bem na fotografia. Aliás, o final do seu discurso não poderia ser mais promissor: “Hoje é apenas o princípio de uma grande, grande amizade”.
Não houve, por isso, razão para Brendan Kennedy fazer cara de poucos amigos. Até porque lá estavam convidados de todo o mundo, incluindo profissionais internacionais de saúde, autoridades governamentais e entidades locais. Todos seguiram em filinha pelo corredor, de onde se podia avistar, de um lado os diversos laboratórios investigação e tratamento da planta-mãe e, do outro, as compridas estufas onde a planta atinge a sua maturidade. O cheirinho, esse, invadia tudo e todos, bem como a temperatura morna indicada ao desenvolvimento da flor.
Para a Tilray, este será o seu campus na União Europeia, que irá também fazer pesquisa clínica e estudar as potenciais múltiplas aplicações de canábis na indústria farmacêutica e a sua transformação em medicamentos, aproveitando assim o Parque de Biotecnologia e a proximidade à Universidade de Aveiro. Anunciando já uma primeira colheita para o próximo mês e várias nos meses seguintes, a empresa de Nanaimo, cidade do Canadá na província da Colúmbia Britânica, aposta num crescendo de interesse dos países europeus e das suas farmacêuticas por este produto.
Apesar de ter sido fundada em 2014, a Tilray é já pioneira mundial na investigação, cultivo, produção e distribuição de canábis e canabinóides, orgulhando-se de servir “dezenas de milhar de pacientes e consumidores em 12 países e cinco continentes”. E se da plantação no Canadá sai o produto que vai passar a destinar-se essencialmente aos Estados Unidos, o parque de Cantanhede vai passar a ser “o centro nevrálgico” na distribuição por toda a Europa. Na Austrália, Alemanha e América Latina existem apenas sucursais de apoio ao comércio.
Um diretor financeiro que abandonou a diáspora
Nos 24 mil metros quadrados da Tilray em Cantanhede trabalham já 117 pessoas, mas a intenção é aumentar à medida que surgirem as colheitas e chegar aos 200 até ao final do ano. E o facto de ser esta uma indústria de “formulação precisa” e “cientificamente rigorosa” que pretende “fabricar produtos medicinais puros” a partir de 50 estirpes, levou o secretário de Estado da Internacionalização a dizer que serão “200 high skils” a serem empregados nesta unidade. Ou seja, é emprego para quadros bastante qualificados, quer na área de investigação medicinal, quer na biotecnologia e mesmo na agricultura.
Este espetro é transversal a vários setores e, por isso, estes investimentos são acompanhados pelo AICEP, pelas comissões de desenvolvimento regionais, o ministério da Agricultura e, claro, o Infarmed. De Cantanhede vai sair a flor inteira ou moída de canábis, óleos e cápsulas de espectro completo ou purificadas, bem como compostos clínicos.
Mas para Brilhante Dias esta é também “uma oportunidade de Portugal aumentar as exportações”, e dar cartas numa área que “pode captar novos investimentos e dar emprego a altos quadros portugueses que optaram pela diáspora e que agora poderão regressar. E este é mesmo o caso do português Zafrin Sansudin que, com 34 anos, conseguiu o cargo de diretor financeiro nesta unidade da Tilray, e regressou ao país que o viu nascer. “Mas, assim, continuo a trabalhar no mercado global, algo que não era possível há uns anos atrás em Portugal”, contou à Visão.
Depois de se ter licenciado, Zafrin, de ascendência indiana, trabalhou três anos na PricewaterhouseCoopers em Portugal, mas, com 27 anos, saiu para o Brasil. Ali ficou mais três anos a trabalhar na Groupon, desenvolvendo experiência na start up de comércio online, que lhe valeu depois uma transferência para a The Iconic, na Austrália, onde ficou mais três anos. Aos 33 anos teve de fazer o balanço e a sua vontade era regressar a Portugal. Assim fez. “Houve um lado pessoal que me levou a questionar o que queria do futuro”, confessou.
Quando ouviu falar do investimento da Tilray candidatou-se. Ficou com o cargo. “É uma ótima oportunidade de estar em casa e simultaneamente sentir que trabalho com vários mercados em todo o mundo.”
Nunca trabalhou neste setor, mas acredita que é o negócio do futuro. A prová-lo, diz, estão os contratos de venda e distribuição da empresa para a Alemanha, e a aliança global com a Sandoz AG, líder mundial em produtos farmacêuticos do grupo Novartis, para aumentar a disponibilidade de medicamentos de canábis “em todas as jurisdições do mundo onde os regulamentos o permitam”.
Este não é um negócio de quintal
Claro que o clima propício ao cultivo exterior, além de na estufa, e mão de obra qualificada disponível, foram razões que levaram a Tilray a decidir investir em Portugal. O que muito agradou a Helena Teodósio, presidente da Câmara de Cantanhede. “Este é um dos momentos que qualquer autarca gostaria de ver repetido no seu concelho”, frisou, evidenciando o seu território como sendo “fértil para o investimento estrangeiro”.
E não deixou de agradecer publicamente ao advogado que presta serviços jurídicos à Tilray, João Taborda da Gama, filho de Jaime Gama, (ex-ministro e agora também consultor do grupo canadiano), “a intervenção essencial” na concretização do feliz momento que não escondia estar a viver.
Mais cuidadosa e recatada andava Maria do Céu Machado, presidente do Infarmed, que depois de avançar que a canábis podia ser utilizada no tratamento da epilepsia ou na esclerose múltipla, ou mesmo em estados terminais de doença, sublinhava que era preciso, no entanto, mais estudos e monitorizar os efeitos e resultados do que já estava a ser aplicado.
Neste momento, e de acordo com Céu Machado, há 4 empresas licenciadas para plantar canábis para fins medicinais, 8 pedidos de licenciamento e conversações com 14 entidades com quem já tiveram reuniões a título de pedido de informações. “Estas últimas são maioritariamente portuguesas, porque isto exige investimentos avultados e plantações cuidadas. Não é no quintal”, brincou a presidente do Infarmed.
Feitas as contas, a canábis é negócio de grandes grupos e alta finança, onde a indústria farmacêutica mais tem apostado. Pelo menos enquanto não é licenciado o cultivo para uso recreativo.