O SEU NOME É JOSÉ
Ponto 1 – Foi por estes dias que um amigo meu faleceu. Não seria motivo de crónica, como o foi Saramago, pois não era figura pública nem tinha obra reconhecida nacional e internacionalmente. Mas era um construtor da vida, sábio e paciente. Por isso, tenho vontade de falar dele numa crónica de jornal.
Tinha nome, de conservatória e baptismo – era José. E viera do norte da Ilha à procura de melhores condições de vida. Não é que tenha chegado a Ponta Delgada e vencesse à primeira tentativa. Acompanhado pelo irmão, foi fazendo o que dizem os livros de auto-ajuda, “um passo de cada vez”. Talvez sem ouvir falar de tais livros. Mas tinha a percepção que o trabalho diário de mais de doze horas, a persistência nos momentos de desilusão, o momento adequado ao passo seguinte, eram o segredo principal do êxito. E venceu.
Estava sentado na vida, com futuro certo, quando um malfadado diagnóstico se lhe atravessa no caminho. Faz perguntas acerca do seu tempo de vida. Nada animador. Não desiste e luta como sempre fez com todos os obstáculos que se lhe depararam. Se até aí era um homem silencioso, passou a sê-lo ainda mais. E continuou a trabalhar, agora com uma dor aguda no peito e uma saudade da família e dos amigos a antecipar o momento da separação definitiva.
Não assisti aos seus últimos momentos. Porém, sei que os cânticos e as orações de esperança o acompanharam ao longo do seu processo de morte, dando-lhe a serenidade que no rosto transpareceu ao aproximar-se da entrada daquele espaço tão falado onde nos dizem que Deus espera por nós. Ao partir, um pássaro cantou a anunciar a sua saída do mundo velho e a entrada no mundo novo. Talvez, se falasse a nossa linguagem, o passarinho que soltou o seu canto naquele momento solene diria: – Estás muito cansado, José. Vem comigo. Eu sei o caminho.
E sete dias depois vi-me a cantar o Pai Nosso, de mão dada e em corrente com os outros membros do grupo, enquanto a imagem do meu amigo me fitava de um cantinho, ainda presente…mas em paz.
Ponto 2 – Enviaram-me por mail um trabalho escrito cujo título rezava assim: “Morte de um homem mau”. A referência era inequívoca, Saramago.
Não gostei. Quem pode arrogar-se de afirmar que alguém é mau? Lembram-se da mulher adúltera? Quando Jesus andava pelo mundo, levaram-lhe uma mulher para que a castigasse. O seu “pecado” era dar prazer aos homens. E eram os homens, velhos e novos, quem a queriam condenar. Jesus olhou a mulher, o grupo de indivíduos que à volta se juntavam, e disse: aquele de vós que nunca pecou, atire a primeira pedra. E, baixando a cabeça, pareceu ignorar o que se estava a passar. Os homens, um a um, começando pelos mais velhos, deixaram cair as pedras e afastaram-se. Quando Jesus olhou à volta, o cenário tinha mudado. Ninguém mais do que a mulher permanecia na Sua presença. Limitou-se a dizer-lhe: Vai em paz e não voltes a pecar.
Quem somos nós, peregrinos que caminhamos aos tropeções, para avaliar o íntimo de cada homem? Quanta miséria e podridão humana existe debaixo da “capa” com que cada ser se envolve? Que sabemos nós do próximo, dos seus cansaços e desilusões, das suas dores e angústias?
A vida e os percursos pessoais de cada um de nós pode dar a medida da nossa aparência, das nossas palavras, de muitos dos nossos actos. Mas não encerram toda a verdade sobre quem somos. Saramago era sincero. Muitos de nós, acoitados em redor de alguns movimentos religiosos e/ou outros, entendemos que, porque desfiámos o “rosário” dos nossos pecados junto de um ministro de Deus, estamos limpos. Hipócritas! É isso que muitos de nós somos.
Comecei este trabalho recordando o meu amigo José. Acabo-o, defendendo a memória de outro José, de sobrenome Saramago.
Que descansem em Paz…
Dra. Maria da Conceição Brasil mcbrasil2005@hotmail.com