Fazer um retrato do país em que vivemos é uma tarefa difícil por duas ordens de razões. A primeira, é que gosto tanto de Portugal que acabo, em muitas ocasiões, por gostar dos seus defeitos. A segunda, advém de ser, por gosto profissional, da área das econometrias e de lidar mal com tudo o que se não possa expressar em números.
Vou, por isso, tentar ser poeta. Ou seja, falar de alguns critérios que definem, do meu ponto de vista pessoal, um país. E, a partir daí, escolher as áreas onde, talvez, a nossa terra precisasse de algum afinamento dos seus parâmetros.
Primeiro que tudo, somos uma Nação coesa, cheia de pequenos conflitos, mas incapaz de fazer deles uma guerra. Nascido no Funchal ou em Frei de Espada à Cinta, ninguém questiona ser português. É um ponto essencial quando se pensa, hoje, em Portugal.
Segundo, é indubitável que nos últimos quarenta anos melhorámos muito o nosso estilo de vida. As novas gerações já têm um grau de instrução que nada tem a ver com analfabetismo dos seus avós. E se ainda não será o desejável representa, pelo menos, um progresso assinalável.
Terceiro, também não restam dúvidas que o acesso à saúde é, hoje, uma conquista que explica não só a largueza do topo da nossa pirâmide etária, como o facto da nossa mortalidade infantil ser das mais baixas.
Quarto, somos francamente bons no uso das novas tecnologias e estas permitiram que tenhamos um lugar de relevo em sectores em que o seu uso se torna de grande importância.
Quinto, embora tenhamos tido uma educação muito marcada pelos valores do cristianismo, ou talvez por causa disso, somos, de uma forma geral, bastante acolhedores, tolerantes e solidários.
Estas cinco razões que fazem tanta gente como eu, olhar para os portugueses com uma enorme bonomia, quando afinadas pela visão da economista que ainda sou, sofrem alguns desgastes.
Vou, então, tentar dar o outro lado da moeda que, por vezes, me entristece. Mas para o fazer, preciso de esclarecer quem me não conheça. Sou uma portuguesa que não tem qualquer filiação partidária e que, de política, percebe tanto como qualquer economista encartado, ou seja, nada. A agravar a situação, vivi sempre entre políticos, tive uma família de políticos e o meu voto, enquanto existiu, pertenceu sempre à escolha do “mal menor” e nunca foi, até hoje, mais do que isso.
Dir-se-á que no meu contexto familiar é surpreendente que assim acontecesse. Responder-vos-ei que foi a única forma de manter a minha sanidade mental e de continuar a ter opiniões exclusivamente pessoais. Por isso, quando lerem estas linhas, ficam já cientes que elas não obedecem senão à minha visão do mundo em que vivo.
Tentemos, então, afinar cada um destes cinco pontos e, talvez, no final consigamos ter algo parecido com este Portugal que, pese embora a afinação, eu diria que amo perdidamente.
Fomos e continuamos a ser uma Nação. Apesar de, um dia, se ter falado de uma eventual Madeira independente, de se dizer que é o Norte que puxa pelo país, que o Sul vive do sol e do turismo e de ter havido muita discussão a propósito do regionalismo, o certo é que todos se sentem bem portugueses e que a sua grande divisão nem é a política, mas sim o futebol!
Duas palavras para a primeira, mas que também servem para a segunda. Temos uma falha séria de tolerância política e raramente se consegue ter um diálogo, nomeadamente quando envolva correntes partidárias. Na dúvida basta olhar o currículo dos opinion makers para se perceber que dialogar, no caso, significa impor. Daqui nasce o “politicamente correto” que enviesa toda e qualquer discussão de pontos de vista.
No que à educação e saúde respeita, o problema é bem mais complicado. Tivemos um razoável SNS mas a politização do sistema, com clivagens profundas entre o público e o privado, tem conduzido a um esvaziamento gradual do primeiro, seja por razões salariais do sistema, seja porque no estrangeiro a procura o determina.
E, nesta área, os mais prejudicados são sempre aqueles que menos podem e mais precisam. Salvam-se aqueles que têm seguros ou bons subsistemas de saúde. As guerras das parcerias publico/privadas, vulgo PPP, também não tem ajudado nada na resolução de um problema que impunha que se vissem quais as que tinham contratos justos e funcionavam bem e as que funcionavam mal e, com estas, ou negociar novos contratos ou pura e simplesmente não os renovar. Porque, não tenhamos dúvidas, se é nos hospitais públicos que os médicos se fazem, também é verdade que o SNS não tem, hoje, capacidade para responder bem, à procura.
Quanto à educação, o problema começa logo nas creches que são insuficientes para colmatar a presença das mães que, na actualidade, não conseguem e não querem deixar de trabalhar.
No secundário – e não abordo, sequer, os conteúdos dos programas – ao mesmo tempo que se abriu um espaço ao diálogo com os pais, o aumento de alunos por professor tem, em certas escolas, conduzido a nítidas situações de desequilíbrio. As tabelas salariais e a falta de pessoal administrativo para vigiar os alunos, vem criando situações de tensão inadmissíveis num estabelecimento de ensino, obrigando, inclusive, à intervenção policial.
No superior, a profusão de cursos criados e a aplicação do sistema de Bolonha tem, a meu ver, deteriorado a qualidade do ensino ministrado. Se há cursos em que três anos de estudo, se podem considerar suficientes para entrar no mercado de trabalho, outros há, em que aquele período é manifestamente insuficiente.
Saliente-se, neste campo, que o programa ERASMUS contribuiu muito para uma globalização do ensino e preparou os alunos para uma visão muito diversificada das matérias que lhes dizem respeito. Foi e é uma maneira das novas gerações perceberem o que é a Europa a que pertencem.
Quanto às novas tecnologias, Portugal fez progressos enormes e que o prepararam razoavelmente para a era do digital que parece, felizmente, ser uma das preocupações governamentais. Tudo o que para a minha geração era um sonho irrealizável, transformou-se no dia a dia de cada um de nós. O telemóvel, a TV, o computador, os i.pad, alteraram radicalmente a nossa vida. As vantagens são tantas, que quase não damos pela dependência talvez excessiva, em que podemos estar a cair.
Hoje a expressão de que tanto gosto – falar olhos nos olhos – está a perder valor e isso preocupa-me. É que no mundo dos afectos nada a substitui. Nem mesmo as selfies com o nosso Presidente da República. Talvez por ele saber isso, é que é exímio na arte de olhar os outros!
Finalmente um tema que me é caro: a religião. No passado as relações entre a Igreja e o Estado eram muito próximas. Tanto, que um casamento religioso tinha validade civil e houve Concordatas assinadas entre o Estado e a Igreja. Esse tempo passou.
Agora o Estado é laico e há liberdade religiosa. Ficaram-nos desse tempo clerical, os feriados católicos – injustos para quem não vê respeitados os que advêm de outras fés – mas que crentes, ateus ou agnósticos aceitam demasiado bem.
Dada a laicidade estatal, aprovaram-se leis que criaram divisões, mas que também evitaram que as pessoas entregassem a sua vida nas mãos de gente inqualificada, corressem o risco de ser detidas ou fossem ao estrangeiro fazer aquilo que aqui lhes era legalmente vedado.
Podem ser muito difíceis de aceitar para quem professa a religião católica mas, uma vez deliberado, só pratica quem quer. Tenho uma visão nesta matéria que é eivada de tolerância, porque ninguém me obriga a seguir nada que eu não queira seguir. Antes todos tínhamos que obedecer a regras que, para alguns, eram mesmo afrontas.
Sei que a maioria dos católicos não pensa assim, mas a tolerância impõe que respeitemos os outros como queremos ser respeitados. E nada me impede que eu seja livre de defender aquilo em que acredito. Mas defender não é impor. Nestes casos mais fracturantes, talvez se devesse ter recorrido ao referendo. Ficaria tudo mais claro e a maioria ficaria mais respaldada.
A Igreja, feita de homens, tem vivido uma época conturbada, mas num tempo que não é o nosso, vai tentando compreender as mudanças do mundo que a cerca e tentando adaptar-se a elas. Devagar, nalguns casos. Mas sem esse vagar, esse tempo muito próprio, talvez já não tivéssemos Igreja!
Aqui ficaram pontos e contrapontos que talvez expliquem porque é que, a maioria de nós, ainda se sente mais portuguesa que europeia. É o meu caso. Já não será o dos meus netos que fizeram o ERASMUS e sentem que a Europa é também o seu berço. Mas para mim, ter nascido aqui é ainda o mais importante. E choca-me que certas pessoas conheçam mais e melhor o mundo do que o seu próprio país!