O dia que mudaria para sempre a sua vida já foi há 15 anos, muito tempo antes da morte de mulheres por culpa da violência doméstica fazer manchetes nos jornais ou diretos para a televisão. A referência à presença da filha da vítima no local, no momento do crime, era um detalhe que só aparecia no fim das notícias. Segundo esses relatos da altura, foi ao tentar defender a mãe que acabou por também ficar ferida numa perna. Mas Cláudia nem refere esse facto. Perante toda a história dramática que se seguiu, trata-se mesmo de um mero detalhe.
Recuemos então a 2004 e a uma das ruas de comércio mais movimentadas do Fundão, onde se situava a churrasqueira O Tostadinho, propriedade de Maria de Luz, então com 44 anos e uma filha menor a cargo. Cláudia tinha 11 anos e não se lembra de qualquer sinal de violência por parte de Manuel Neves antes daquela manhã. O homem, então com 54 anos, fora-lhe apresentado pouco tempo antes de casar com a mãe, havia quatro meses – e no seu entender de criança era tudo normal. Tinha duas irmãs, muito mais velhas, de um primeiro casamento da mãe, que já viviam sozinhas. Do pai nada sabia desde que, era ainda muito pequena, ele se separou da mãe. E viveram as duas sozinhas até aquele homem aparecer.
“Eles casaram em janeiro e a minha mãe foi morta em abril. Foi tudo muito rápido, mas não tenho qualquer memória de haver discussões entre eles. Lembro-me, isso sim, que, na noite anterior, eu tinha ido dormir a casa de uma amiga. E que, nessa noite, pouco depois da hora do jantar, a minha mãe apareceu a correr. Ele tinha-a ameaçado e ela vinha a chorar.”
Cláudia saberia, mais tarde, que ele, desempregado, passara o dia escondido num anexo da churrasqueira a espiar os gestos da mulher e a ouvir-lhe as conversas. Quando chegou a hora de Maria da Luz fazer o fecho da caixa, ele começou por insinuar que ela falava com gente a mais e depois, por entre ameaças várias, acabou a gritar que uma mulher casada não se comportava assim. Foi quando ela fugiu.
“Na manhã seguinte, bem lhe implorámos para ela não voltar lá, mas, para a minha mãe, a vida tinha de continuar. ‘Tenho fornecedores para pagar’, dizia ela. Acho que nunca acreditou que, apesar das ameaças, aquilo acontecesse realmente.”
Cláudia foi com a mãe. Estava já sentada numa mesa próxima do balcão quando Manuel Neves entrou. Ele sentou-se ao seu lado e chamou a mulher. Ela sentou-se à frente, ele pediu-lhe para se aproximar. É nesse momento que abre o casaco e tira duas facas.
“Só me lembro de lhe ter tentado atirar com as cadeiras e com o cinzeiro, com tudo o que tinha à frente, e ele só dizia: ‘sai da frente miúda, que não tens nada a ver com isto’.”
A churrasqueira ficava numa rua de comércio, estreita, e as pessoas à volta rapidamente se aperceberam do que estava a acontecer. “Houve quem se aproximasse, mas depois de ver o que se passava tivesse seguido caminho. Um dos fornecedores simplesmente largou as sacas de batatas junto da porta e foi-se embora. Tenho ideia de alguém perguntar: ‘O que queres que faça, miúda?’, e depois ter-se ido embora. A verdade é que ninguém interveio. E ele só parou quando teve a certeza de que ela estava morta.”
Foi então que o homem saiu da loja, e se encostou à montra da frente, onde a polícia o deteria mais tarde. Dentro do estabelecimento, sozinha e com a mãe estendida no chão, no meio de uma poça de sangue, é Cláudia que telefona à irmã, que vivia numa aldeia próxima, a pedir socorro.
O que se seguiu não foi menos penoso para aquela miúda que ainda nem era bem uma adolescente. “Fui obrigada a testemunhar em tribunal umas quantas vezes. À frente dele e só separados por uma barra de madeira. Tinha imenso medo. Aquilo é muito assustador”.
Há um momento em particular em que sentiu que tudo aquilo estava a ir longe demais. “Era um coletivo de juízes e perguntaram-me se me podia levantar e ir ao pé deles fazer um esquema a explicar o que aconteceu. Mal me levanto, fico cara a cara com ele, o homem que matou a minha mãe estava ali, à minha frente. Por mais tempo que passe não consigo esquecer-me disto.”
Em paralelo, ninguém sonhava que o horror se repetia, diariamente, na casa da irmã, a tal a quem Cláudia ligara a pedir ajuda. Era a pessoa de família mais próxima, já que a mãe viera da Madeira e o pai, que até era daquela zona, nunca mais dera sinal de vida. Só que… “Enquanto que na casa da minha mãe nunca presenciara qualquer situação de violência, na casa da minha irmã as agressões eram constantes”.
A caminho da casa-abrigo
Casada e com duas filhas, a irmã partilhava ainda a casa com os sogros. Perante a passividade destes, o marido passava a vida a intimidá-la: “vê lá se queres acabar como a tua mãe…”. Cláudia não se recorda de o cunhado bater nas filhas, mas assegura que nunca se inibiu das maiores barbaridades à frente delas. “A mais velha, que tinha uns cinco ou seis anos, já se metia na frente e comecei a temer que acontecesse alguma coisa.”
Foi quando resolveu pedir ajuda a quem estava à volta, dos pais das amigas aos professores. “Ignoraram-me por completo, acharam que estava a exagerar. E nos meios pequenos – estávamos em Dornelas do Zêzere – ninguém se quer meter.” Além disso, o sogro da irmã era o presidente da junta de freguesia e dominava um pouco a vida ali à volta. “Era preciso estar disponível para lhe fazer frente…”
Haveriam de passar uns dois ou três anos até Cláudia se deparar com um cartaz da APAV – Associação Portuguesa de Apoio à Vítima e resolver ligar. Atenderam da delegação de Coimbra, a mais próxima, e pediram-lhe para ouvir a irmã. “Só que ela era tão controlada que dificilmente tinha um momento sozinha para pegar no telefone sem que estivessem os sogros ou o marido ao lado”. Quatro meses depois, há luz ao fundo do túnel: são contactados por aquela associação porque havia quatro vagas numa casa-abrigo, o que era muito raro acontecer e tinham pouco tempo de se preparar para sair. “Eles ligaram numa quinta-feira, nós saímos na terça.”
Levaram apenas a roupa do corpo. Só para a mais pequena das crianças, que devia ter uns três ou quatro anos, é que se permitiram levar mais algumas coisas. E nem sonhavam para onde iam.
“Pediram-nos para apanharmos o autocarro em Castelo Branco, o mais afastado possível da aldeia para não dar nas vistas. E fomos até lá de boleia com uns amigos.” Na paragem do autocarro, fazem novo contacto a saber para onde compravam os bilhetes. Aí avisam-nas que o destino é Lisboa e indicam quem as vai buscar. “Só me lembro que vomitei a viagem toda, a pensar que, se corresse mal, a responsabilidade era minha. Tinha sido eu a pedir aquela ajuda…”, desabafa.
Na panela de pressão
Imaginem-se 20 e poucas pessoas dentro de uma casa, entre crianças e mulheres, cada uma aflita entre os seus afazeres e os seus problemas. Cláudia compara esse abrigo a uma panela de pressão. “Claro que é a solução possível, mas não é de todo ideal”.
Do que mais se lembra foi que teve de ir para uma escola nova, mas depois não podia dizer aos novos amigos onde é que vivia. Nem convidá-los a ir lá a casa. “Também só fui a casa de alguém passado muito tempo. O regresso à normalidade, esse, só acontece muito tempo depois da saída da casa-abrigo.”
E esse passo demora. “Era muito difícil para a minha irmã sair dali com três menores a cargo, arranjar emprego e dar conta de tudo.” Foi então que, com a ajuda da diretora técnica da casa, que era psicóloga, Cláudia começou a planear ir viver sozinha.
“Ainda fiz o 12º ano enquanto estava na casa abrigo e esse apoio foi muito importante para me focar na escola. Era muito importante seguir os estudos, e então começámos a pensar em conjunto qual seria a melhor forma de encontrar um espaço para ir viver sozinha.”
E foi assim que se mudou para um estúdio, estudando e trabalhando ao mesmo tempo. “Estive sempre perto delas e ajudei o máximo que consegui porque não sei fazer de outra forma. Mas permitiu-me fazer outras coisas por mim e não sentir mais que era um peso na vida delas”.
Uma vida (mais ou menos) normal
Começou por estudar Relações Internacionais e depois fez um mestrado em Comunicação. “Houve um tempo em que queria esquecer que tudo isto me tinha acontecido e focar-me no futuro. A minha mãe não tinha estudos e sempre me disse para estudar, que um diploma ninguém me tirava.”
Mas as conversas com as amigas traziam-na irremediavelmente de volta à questão. “Comecei a aperceber-me de que os casos de relações amorosas em que há violência são muito mais comuns do que a maioria das pessoas pensa. Pode ser com mais ou menos intensidade, e claro que nem sempre acaba em morte, mas…”
Ao mesmo tempo, andava em entrevistas pós-licenciatura. E as recordações não a largavam. “Sempre que me candidatava a um emprego, faziam-me imensas perguntas pessoais. Queriam saber os meus gostos, mas também onde vivia. E no tempo dessas primeiras entrevistas ainda estava na casa-abrigo, não podia dizer nada. Outras vezes, criava uma espécie de personagem, mas depois era tudo tão seco, tão superficial que nunca conseguia os trabalhos que queria.”
Eram tempos em que, por segurança, só muito poucas pessoas sabiam da sua vida, e só para o caso de acontecer alguma coisa. E depois houve um momento em que teve medo, muito medo.
“Foi quando o meu cunhado voltou a contactar-me. Houve muitas falhas no processo. Ele acabou por saber que estávamos em Lisboa. Soube onde eu estudava, onde a minha irmã trabalhava. Durante muito tempo, ela ia para o emprego acompanhada pela polícia. Depois, ele lá desistiu.”
“Não vou dizer que não tenho medo…”
Até que, no final do ano passado, começou a surgir a ideia de criar uma associação. Seguiram-se uma série de reuniões, com a Secretaria de Estado da Igualdade e com o Ministério da Justiça. Foi quando recebeu a primeira de uma série de notícias menos boas.
Primeiro, que um organismo criado em 2009 atribuía compensações a quem fora vítima de violência doméstica – e ela nunca recebera nada, nem sequer a indemnização estabelecida em tribunal.
“Nem vou receber nada agora, porque caducou. Supostamente, devia ter feito o pedido até um ano depois da maioridade.”
Como não tinha documentos para contestar a decisão, pôs-se ao telefone com o Tribunal de Castelo Branco. Até que, do outro lado da linha, lhe perguntaram se havia algo mais em que pudesse ser útil. E Cláudia lá arriscou a perguntar se lhe conseguiam dar uma previsão de quando é que o antigo padrasto sairia em liberdade condicional.
“O homem até se engasgou: ‘mas não sabe? Ele saiu há já dois anos. Desde o dia 5 de maio de 2017 que está cá fora. A família não foi informada?”
O homem fora condenado à pena máxima, contam os jornais da época, mas como cumprira prisão preventiva, o tempo de cadeia total ficara-se pelos 22 anos. A meio da pena, e como tinha bom comportamento, foi autorizado a sair.
“Esperava que me tivessem avisado. Fui a testemunha principal naquele processo, fui eu que pus aquele homem na prisão.Tento manter a calma porque ele já está livre há algum tempo e não me aconteceu nada. Mas não posso dizer que não tenho medo.”
E a Constituição, senhores?
Segundo a lei, aqui sobrepõe-se o direito de um homem que já cumpriu a sua pena – e que, também em nome da sua proteção, não tem de dizer onde está.
Cláudia não se conforma com esta resposta. Nem com o facto de ter perdido o direito à compensação. Reclamou. “Em 2009, quando essa comissão foi criada, eu estava na casa-abrigo. E aos 18 também. O Estado nunca quis saber onde eu estava. Entregaram-me à pessoa mais próxima, que era a minha irmã, mas nunca ninguém foi ver como ela vivia e o que se passava lá. Isto apesar de Constituição dizer que zela pelas suas crianças. Tive apenas direito a uma pensão de sobrevivência correspondente a 20% do que a minha mãe receberia se estivesse reformada à data da sua morte. Estamos a falar de 74 euros. O valor ainda foi atualizado até aos 90 euros. Mas como é que esperam que alguém viva assim?”
Evitar que mais crianças passem por isto é o objetivo maior de Cláudia e da Contra o Femicídio – Associação de Familiares e Amigas/os de Vítimas de Femicídio, agora a preparar um primeiro encontro nacional, antes do verão, para saber quais são as grandes dificuldades dos sobreviventes de violência doméstica. “Temos de fazer tudo para evitar mais mortes, mas enquanto isto continua a acontecer alguém tem de tomar conta destas crianças.”
Faz-se silêncio. Olhando para ela, ninguém podia adivinhar que carrega consigo esta história, ainda mais agora que está tão focada no futuro. Com emprego fixo há já quatro anos, acabou de casar e, conta com um enorme sorriso, sim, quer ter filhos – para logo a seguir segurar a expressão e assegurar que faz questão de lhes contar tudo por que passou. “Não tenho qualquer vergonha. Não podem ser as vítimas a ter vergonha.”