Avisamos já que este texto sobre humor não vai ter graça nenhuma.
Mas até podemos começar com uma anedota. Um bocadinho datada, é certo. Leva-nos até 1993 e é assim:
“Sabem o que é que no Alentejo – em Évora, melhor dizendo – fazem aos cadáveres das pessoas que morreram ultimamente? Levam-nos para reciclar, para aproveitar o alumínio.”
Ainda hoje é difícil percebermos o que iria na cabeça do então ministro do Ambiente Carlos Borrego para achar boa ideia, numa sessão pública, gravada por jornalistas, começar com esta piada uma intervenção sobre o caso grave que envolveu a morte de 25 pessoas, no Alentejo, na sequência de problemas na hemodiálise resultantes de um alto teor de alumínio na água da rede pública de abastecimento. Para os mais jovens ou desmemoriados: sim, isto aconteceu mesmo. Provavelmente, Borrego tentava usar o humor para desdramatizar, tornar mais leve um assunto muito pesado – ou, teoria um bocado louca, queria apenas ter piada. Fosse qual fosse o objetivo, o tiro saiu pela culatra de forma estrepitosa (e ainda não havia redes sociais…): foi rapidamente obrigado a demitir-se pelo Governo de Cavaco Silva.
O riso alimenta-se do inesperado, prefere o caos à ordem, o impulso à reflexão, vive melhor numa certa desordem e liberdade. Por isso, é muito difícil usar o humor num sentido teleológico, fazendo-o cumprir objetivos com uma estratégia bem definida de causa/efeito. É uma arma? Talvez, e até bem poderosa. Mas não é de confiança…
O único animal que ri (e faz rir)
Durante muito tempo, demasiado tempo, associou-se o humor a ações pouco nobres, até pecaminosas, ou, então, a alguma debilidade mental (o provérbio “muito riso, pouco siso” durou até aos nossos dias). A Filosofia nunca se deixou atrair muito pelo tema… No mundo teocrático, não havia grande lugar para a reflexão sobre o riso – pelo menos, enquanto assunto nobre e fundamental. Afinal, o riso era associado ao escárnio, à humilhação, ao gozo, ao lado mais disparatado ou mal-intencionado da vida na Terra – tudo muito pouco divino, portanto…
Não admira que o assunto tenha conquistado importância a partir do momento em que o Homem se colocou no centro do seu próprio mundo – o “penso, logo existo” de Descartes abriu caminho para um “penso, logo rio”. A modernidade abriu espaço para o riso.
“O maior inimigo do riso é a emoção”, escreveu Henri Bergson. “Isso não significa negar, por exemplo, que não se possa rir de alguém que nos inspire piedade, ou mesmo afeição: mas, nesse caso, será preciso esquecer por alguns instantes essa afeição, ou emudecer essa piedade. O filósofo francês nascido em 1859 atirou-se de cabeça a este tema em O Riso, Ensaio sobre o Significado do Cómico, publicado em 1900, ainda a tempo de desbravar caminhos numa matéria pouco pensada e estudada. Aí, começava por sublinhar como o riso é tão inequivocamente humano, só humano, demasiado humano: “Uma paisagem poderá ser bela, graciosa, sublime, insignificante ou feia, porém jamais risível. Riremos de um animal, mas porque teremos surpreendido nele uma atitude de homem ou certa expressão humana. Riremos de um chapéu, mas, nesse caso, o cómico não será um pedaço de feltro ou palha, senão a forma que alguém lhe deu, o mole da fantasia humana que ele assumiu. Como é possível que um facto tão importante, em sua simplicidade, não tenha merecido atenção mais acurada dos filósofos? Já se definiu o Homem como ‘um animal que ri’. Poderia também ter sido definido como um animal que faz rir, pois se outro animal o conseguisse, ou algum objeto inanimado, seria por semelhança com o Homem, pela característica impressa pelo Homem ou pelo uso que o Homem dele faz.”
Hoje, o riso e o humor são omnipresentes nas nossas vidas – até porque se tornaram um capital de primeira importância na indústria global do entretenimento. E têm, realmente, poder. Em Portugal, claro, é também rara a escrita ensaística sobre a matéria. Aproveitando muita reflexão, associada à prática quotidiana, o humorista Ricardo Araújo Pereira decidiu que tinha umas palavras a dizer sobre o assunto. Em 2016, RAP publicou A Doença, o Sofrimento e a Morte Entram num Bar, com o subtítulo Uma Espécie de Manual de Escrita Humorística. Não ambiciona ser um livro de Filosofia, mas ao tentar sistematizar, ponto por ponto, aquilo que faz rir, acaba por procurar algumas respostas sobre o fenómeno. A dada altura, Ricardo ensaia a sua conclusão: “Humor, ou sentido de humor, é, na verdade, um modo especial de olhar para as coisas e de pensar sobre elas. É raro, não porque se trate de um dom oferecido apenas a alguns escolhidos, mas porque esse modo de olhar e de raciocinar é bastante diferente do convencional (às vezes, é precisamente o oposto), e a maior parte das pessoas não tem interesse em relacionar-se com o mundo dessa forma, ou não pode dar-se a esse luxo.” Ou seja: “Somos treinados para saber o que as coisas são, não para perder tempo a investigar o que parecem, ou o que poderiam ser.” Ironicamente, este final aproxima bastante o trabalho do humorista ao do político. Ou não é a política, na sua definição mais nobre, a arte de procurar saber o que as coisas “poderiam ser”? E não faz também parte da política, na sua prática mais trivial de guerras e guerrinhas pelo poder, “investigar o que parecem” as coisas (até porque em política, já se sabe, “o que parece é”)?
Humoristas ao poder? RAP para São Bento? RAP para Belém?
A caneta e o riso
Nos regimes democráticos (e mesmo nos outros, à sua maneira), o humor foi sempre uma espécie de medida para aferir liberdades, de ponta-de-lança da liberdade de expressão. Estruturalmente caótico e indomável mas sempre em ligação direta com culturas, referências, hábitos, obsessões… Se muitas vezes os poderes têm a tentação de o regular, a verdade é que o universo do riso e do humor é o palco privilegiado da liberdade. Aquilo de que nos rimos numa época pode perder toda a graça uns anos depois (experimentem ir ao YouTube ver o vídeo do Max a cantar A Mula da Cooperativa…). O que numa certa altura parece inapropriado e inaceitável torna-se banal num futuro não muito distante (ou vice-versa). O comediante norte-americano Lenny Bruce, por exemplo, teve, nos anos 60 do século passado, vários problemas graves com a Justiça devido ao seu estilo desabrido e indecoroso; em 2003 foi perdoado postumamente (uma espécie de piada de humor negro…) pelo governador republicano de Nova Iorque George Pataki, reconhecendo o óbvio: o uso de palavrões, obscenidades e temáticas sexuais passou a ser uma espécie de inocente bê-á-bá de muitos espetáculos de stand-up comedy.
Mas a 7 de janeiro de 2015, da pior maneira possível, o debate sobre os limites do humor e da liberdade de expressão voltou a estar na ordem do dia. Ainda não era meio-dia em Paris quando dois irmãos armados até aos dentes entraram pela descontraída redação do jornal satírico Charlie Hebdo, onde começava mais uma rotineira (e, adivinha-se, divertida) reunião. Resultado: 11 mortos, oito deles ligados ao jornal (incluindo os desenhadores/humoristas Cabu, Charb, Honoré, Wolinski e Tignous). Em causa, aparentemente, a ousadia de fazerem caricaturas de Maomé. Durante vários dias, todos fomos Charlie. Mas, para muitos, este foi um golpe demasiado duro: mortes e sangue derramado em nome de uma piada? Não terão exagerado nas provocações? Para quê irritar fanáticos? Há, em França, uma longa tradição de imprensa satírica, com a irreverência, a provocação e mesmo o aparente mau gosto no seu ADN. Concorrente do Charlie Hebdo, mas muito mais antigo, o jornal Le Canard Enchainé (fundado em 1915!) titulava assim o seu editorial do número publicado a 14 de janeiro de 2015: “L’heure est tragique, rions!” (“A hora é trágica, riamos!”). Aí, o diretor Michel Gaillard recordava que os dois semanários eram “defensores virulentos da laicidade, como desmistificadores, provocadores, impertinentes, desrespeitosos. Mas tendo como únicas armas a caneta e o riso.” Lembrava, ainda, uma frase do fundador, Maurice Maréchal, dita um século antes: “O meu primeiro movimento quando sei de algo escandaloso é indignar-me; o meu segundo movimento é rir-me; é mais difícil mas mais eficaz.”
Quem se indignou com todo o debate sobre os limites à liberdade de expressão provocado pelo ataque terrorista ao Charlie Hebdo foi o jornalista britânico Mick Hume. No seu livro Direito a Ofender, a Liberdade de Expressão e o Politicamente Correto (editado, em Portugal, pela Tinta-da-China) esmiuçou o assunto. Na sua opinião, a solução só pode ser aumentar as liberdades, nunca relativizá-las ou diminuí-las. Chama “contra-Voltaires” aos seus alvos: aqueles que querem impor regras ao discurso (não só na comédia) em nome duma moral, de novas certezas e critérios. “Haverá coisa mais intrusiva do que tentar policiar algo tão involuntário como uma gargalhada súbita?”, pergunta. “Dantes, as queixas eram sobre comédia blasfema e indecente, e os censores eram políticos conservadores, polícias e padres. Agora, quem protesta costuma fazê-lo contra comediantes acusados de abordar tabus novos: racismo, sexismo, homofobia, transfobia, islamofobia, antissemitismo e os outros suspeitos do costume. E as exigências de que eles sejam calados tendem a ser feitas não pelas beatas de antigamente mas por ativistas radicais na internet, pelos meios de comunicação liberais e até por outros comediantes. Apoiados (pelo menos, no Reino Unido) por entidades reguladoras, políticos e os novos polícias do politicamente correto.”
E conclui, provocador: “A tentativa de impor códigos de comportamento à comédia reflete a ideia de que podemos, sabe-se lá como, aplicar um juízo político e moral ao humor. Que podemos, em resumo, impedir-nos de rir com uma coisa ofensiva ou controversa. Boa sorte com isso. E boa sorte a tentar impedir o corpo de espirrar também.”
Em defesa da sua tese recorda a comediante norte-americana e politicamente incorreta (muito antes de se usar essa expressão) Joan Rivers, desaparecida em 2014, aos 81 anos. A certa altura, provocou grande escândalo por fazer uma piada que envolvia a modelo alemã Heidi Klum, a palavra “brasa” e os fornos crematórios nazis… Sem nunca pedir desculpa por nada do que dizia, dessa vez resolveu acrescentar algo: “O meu marido perdeu a maior parte da família em Auschwitz. E posso garantir-vos que sempre fiz questão de recordar o Holocausto às pessoas por via do humor.” “Ao contrário de muitos alegados comediantes que chegaram depois dela, Rivers percebia que não basta tentar ser ofensivo – primeiro, é preciso ter piada”, acrescenta Hume.
O debate vai de tal maneira que nenhum humorista, hoje, pode já ouvir a questão “afinal, quais são os limites do humor?” sem suspirar e revirar os olhos (a sério: se forem entrevistar um humorista, evitem; até porque há outras maneiras de perguntar isso).
Num pequeno ecrã perto de si
Nunca, como hoje, pareceu haver tantos humoristas à nossa volta. O advento explosivo das redes sociais fez de cada um de nós um potencial comediante desejoso de provocar risos à primeira oportunidade (nem que seja a partilhar piadas requentadas).
Na introdução à sua (e de Inês Fonseca Santos) Antologia do Humor Português publicada em 2008 (na Texto Editora), Nuno Artur Silva escrevia, na introdução: “Quando se fala de humor em Portugal pensa-se logo no humor na televisão. Aliás, há uma tradição em Portugal de reduzir tudo o que se passa ao que se passa na televisão.” Bastaram dez anos para tornar datada esta afirmação. Nenhum jovem concordará com ela. Hoje, o humor está no YouTube, no Facebook, no Instagram, num pequeno ecrã perto de si, que debita dezenas de piadas, repentistas ou mil vezes repetidas, por dia. Também aí as televisões generalistas perdem, de forma rápida e irreversível, para os conteúdos difundidos na internet.
E nesse mundo com poucas regras da world wide web, sim, o humor é, hoje, visto por muitos como uma arma política poderosa. Como é que não nos apercebemos mais depressa da importância extrema que ferramentas como as atuais redes sociais e aplicações de comunicação como o WhatsApp iriam ganhar no contexto de campanhas eleitorais e planos de manipulação da opinião pública? Os velhinhos cartoons, de Bordallo aos dias de hoje, têm poder, sim, e chegam a muita gente; a sátira televisiva também. Mas só agora é possível difundir, de forma estratégica e extremamente precisa, mensagens para um grupo bem definido. Não é por acaso que muita da comunicação política na massiva campanha online de Donald Trump, nos EUA, e de Jair Bolsonaro, no Brasil, esteve assente em aparentes piadas, humor, a desacreditar adversários ou a defender uma maneira de ver as coisas. A difusão de memes, a repetição ad nauseam das mesmas graças e graçolas, tornou-se uma estratégia política, uma arma. Um exemplo? OK, só um. Na imagem, vê-se uma mulher à frente de um padre, num confessionário. Diz ela: “Sr. Padre, ontem matei um político.” Responde o padre: “Confesse só os pecados, não as boas ações!” Uma variação particularmente violenta, pronta a difundir e a receber likes e carinhas sorridentes, do mantra mais básico dos populismos, novos e velhos: “Os políticos são todos iguais.” Steve Bannon, estratega de Trump, pensou certamente algumas horas sobre o poder do riso…
O mais recente romance de David Grossman, Um Cavalo Entra num Bar (vencedor do prestigiado Man Booker Prize), centra-se numa noite de stand-up comedy. Mas nem por isso é um livro especialmente divertido, antes pelo contrário; o protagonista, Dovaleh, faz um longo e radical strip tease emocional, pensando no amigo de infância, na plateia, que não vê há uma eternidade. Nesse livro, o escritor israelita deixa-nos uma frase que diz mais do que parece: “É isso que o humor tem de bom. Por vezes é possível rir dele.” Riamos, pois, quando é possível. Humanos, demasiado humanos.