São precisas muitas experiências até os alimentos envelhecidos terem as características desejadas, explica o chefe do restaurante lisboeta Loco, Alexandre Silva, 37 anos. Essas tão desejadas características significam, na maior parte dos casos, “uma textura mais fácil de digerir e um sabor mais forte”. Aberto o apetite, impõe-se uma viagem ao mundo dos alimentos maturados e fermentados. O universo da comida envelhecida tem alguns representantes mais extremos. O ovo milenar, também chamado Ovo de Cem Anos, é um petisco chinês com um aspeto, no mínimo, duvidoso. Normalmente, usam-se ovos de pata, conservados numa mistura de argila, cinzas, sal e amido de arroz, durante diversas semanas ou meses. Após este processo de cura, se se conseguir ultrapassar a aparência, e o cheiro intenso a enxofre, experimenta-se um sabor alcalino e salgado que alguns aproximam ao do queijo. Yue Wang, 22 anos, filha dos proprietários do restaurante chinês Quanjude, um dos poucos locais onde é possível provar os ovos milenares em Lisboa, saboreia esta iguaria desde que se lembra. “Costumo comê-la como entrada, com tofu, molho de soja e vinagre. Também se pode temperar com alho”, explica, antes de deixar claro que o ovo não é cozinhado.
Excentricidade asiática? Não. Os portugueses também têm a sua. A caneja d’infundice é um prato tradicional da Ericeira, em que o peixe só é consumido 15 dias após ser capturado – e, durante esse período, não vai ao frigorífico. “A caneja [peixe da família do cação] não apodrece, passa por um processo que a mantém comestível”, explica Filipe Abreu, 66 anos, presidente da Junta de Freguesia da Ericeira e fundador da Confraria da Caneja D’Infundice, criada em 2015.
O peixe só é cozido no dia da refeição, com uma pitada de sal, acompanhado com batata cozida e o tradicional pão de Mafra. É obrigatório regar com muito azeite e não pode faltar o vinho tinto. De acordo com Filipe Abreu, “devido ao estado amoniacal do peixe, qualquer tinto parece vinho do Porto, tendo em conta o contraste de sabores”. O cozinhado deve ser feito longe do sítio da degustação, por causa do cheiro forte que se impregna nos convivas. “Quando o provamos, podem vir as lágrimas aos olhos, mas depois já não sentimos nada”, palavra de confrade, que não resiste a citar o poeta: “Primeiro estranha-se, depois entranha-se.” Mas só nos mais corajosos.
Reinventar o óbvio
“A carne maturada é muito mais tenra e saborosa do que a carne fresca”, garante Pedro Vivo, 50 anos, proprietário do talho A Vaca, em Lisboa, especializado neste tipo de produto. A carne é desidratada em ambiente controlado – a temperatura e a humidade são fatores essenciais –, evitando a proliferação de bactérias, mas promovendo o desenvolvimento de enzimas que a tornam mais tenra. O período de maturação varia, habitualmente, entre os 15 e os 60 dias. A confeção da carne maturada, que se distingue pela tonalidade escura, não tem qualquer segredo, basta temperar com sal para se sentir o verdadeiro sabor da maturação. A complexidade do processo de envelhecimento encarece o produto, um quilo de bifes da vazia com 30 dias de maturação ronda os 20 euros. No entanto, não é o preço que afasta os portugueses desta especialidade, acredita o chefe Kiko, 38 anos, proprietário do restaurante O Talho, em Lisboa. “Acho que não se coaduna com o gosto português; é uma carne com muita gordura e um sabor ao animal muito forte.”
Mais ao gosto do paladar português será o alho-negro. Neste caso, trata-se de uma fermentação, que pode prolongar-se até 40 dias, com temperatura e humidade controladas. “O alho perde a amargura e ganha um sabor tostado e doce, desfaz-se na boca”, descreve o chefe do Vidago Palace Hotel, em Chaves, Vítor Matos, 41 anos. E também desaparece o indesejado mau hálito causado pelo alho fresco. Uma das combinações preferidas do chefe é, precisamente, a conjugação do alho-negro com a carne maturada. Vítor Matos transforma o alho-negro num puré cremoso, adicionando caldo de galinha e vinagre balsâmico. Mas não é só o palato que sai beneficiado; alguns dos atributos do alho são potenciados por este processo. A nutricionista Ana Ni Ribeiro, 39 anos, reconhece os efeitos do alho-negro na diabetes: “Este tipo de alho é ainda mais eficaz no controlo dos níveis de açúcar no sangue, ajuda a retardar a libertação de insulina, o que é importante tanto para os pacientes diabéticos como para aqueles com propensão para desenvolverem a doença.”
Se o alho é fundamental na gastronomia portuguesa, o café é o remate indispensável. E este também pode ser vintage. “Devido ao tempo de estágio, o café envelhecido concentra mais os aromas e os sabores, com toques amadeirados, notas suaves de fruto e menos acidez”, explica o escanção Rodolfo Tristão, 39 anos. O processo pode prolongar-se ao longo de anos ou resumir-se a três ou cinco meses.
O chefe Alexandre Silva explica que o umami, um dos cinco gostos básicos do paladar humano, é potenciado por estas técnicas de envelhecimento. E, mais do que uma tendência, acredita que estes podem ser exemplos de combate ao desperdício alimentar, ao mesmo tempo que se (re)descobrem sabores, no mínimo, originais.
Comida vintage
O envelhecimento da comida resulta, habitualmente, em sabores mais intensos
Café velho
As bagas frescas de café podem envelhecer ao longo de meses ou anos e, ao mesmo tempo que vão perdendo água, ganham um sabor mais acentuado
Carne maturada
O período de maturação ronda os 60 dias e a carne pode criar uma espécie de nuvem de pelo à volta, mas o bolor fica no seu exterior
Caneja d’infundice
Depois da salga, as postas da caneja (peixe da família do cação) são embrulhadas em panos de linho durante duas semanas.