– RECORDE: Einstein tinha razão há cem anos: As ondas gravitacionais existem mesmo
Consta que em proporção a nossa espécie tem a infância mais prolongada de todas, com a exceção dos elefantes. Um burro recém-nascido põe-se logo de pé, ao passo que um bebé demora um ano até andar, e com muitos trambolhões. A maioria dos animais estão prontos para a vida adulta muito mais cedo do que nós, um desperdício de recursos, como quem quer que tenha de pagar as despesas com a educação dos filhos deve saber. Mas esta nossa «burrice» é apenas aparente: os antropólogos estão de acordo em que a nossa imaturidade prolongada é também um fator que pesa na nossa maior inteligência, bem como nas nossas habilidades técnicas e artísticas.
Não sei bem como se define um génio, mas se calhar é isso mesmo: uma pessoa que nunca saiu completamente da infância. Os chamados génios pensam um bocado como as crianças: não distinguem fantasia e realidade (e daí a sua criatividade), sobrestimam as suas capacidades (e daí acusações de arrogância, mas também uma poderosa fonte de motivação) e têm uma atitude um tanto elástica face à lógica. São pessoas que frequentemente tiveram infâncias lentas, o que explicará porque genialidade e atraso mental se confundam tantas vezes.
Einstein não começou a falar até aos quatro anos, muito embora quando finalmente abriu a boca tenha dito: «A sopa está demasiado quente.» Até ao fim da sua adolescência, os pais de Einstein temeram ter gerado um imbecil. O pior da fixação na infância dos génios é que está muito próxima daquela ligada a doenças mentais. Neste ano em que se celebra um dos maiores feitos de Einstein a teoria da relatividade geral, isto talvez seja motivo de reflexão. Até que ponto a genialidade e as patologias psíquicas são a mesma coisa? Qual o lado negro da genialidade?
Uma vez apanhei um elevador em que assim que se abriram as portas percebi de imediato que ia haver celeuma. Estava lá dentro um senhor de idade, de cara enrugada e cabelos brancos, que mal me viu deu um salto no ar, encolheu-se todo, e começou a fitar-me com aquela expressão esgazeada inconfundivelmente ligada ao desequilíbrio mental: um desassossego profundo, uma preocupação infinita com um grave perigo, que evidentemente existia apenas entre as paredes do seu crânio.
Entrei no elevador com os dois amigos que me acompanhavam, mas por qualquer motivo era eu o único a excitar as atenções deste senhor. Após o choque inicial, a estranha criatura abandonou a sua postura retraída e aproximou-se de mim, pondo-se a inspecionar-me cuidadosamente, de vários ângulos, sempre com um olhar lunático à beira do pânico.
A dada altura ergueu um dedo, mas quando estava prestes a tocar-me afastou-o bruscamente, como se tivesse medo de se queimar ou de apanhar um choque elétrico.
Quando saímos do elevador, perguntei aos meus amigos, que já sorriam:
Mas quem é aquele idiota?
Aí é que eles desataram a rir às gargalhadas.
Aquele idiota ganhou o prémio Nobel no ano passado.
Era John Nash, recentemente falecido, um matemático genial, pioneiro da teoria dos jogos, notório por sofrer de esquizofrenia paranoica, o que o rodeava de figuras imaginárias e seres sobrenaturais, em alucinações tão vívidas que o deixavam incapaz de distinguir real e imaginário. Em toda a minha vida foi a única ocasião em que alguém questionou a realidade da minha pessoa, e devo dizer que é uma experiência enervante.
Nash disse uma vez que «há uma relação entre pensar de uma forma não convencional e pensar criativamente. Nunca teria tido boas ideias científicas se a minha mente fosse normal.» E noutra ocasião: «Não diria que há uma ligação direta entre a matemática e a loucura, mas não há dúvida de que os grandes matemáticos sofreram de características maníacas, delírio, e sintomas de esquizofrenia.» Curiosamente Nash justificava a sua aceitação das «ilusões» da loucura precisamente por ter uma mente racional e matemática: «As minhas ideias sobre seres sobrenaturais surgiram-me da mesma forma que as minhas ideias matemáticas, portanto levei-as a sério.»
A julgar pelas afirmações do próprio, os canais mentais que o levaram à genialidade coincidiam em tudo com aqueles ligados ao que denominamos de patologia mental. Nash recusou medicação psicotrópica, dizendo que os efeitos secundários não são devidamente incluídos na equação, quando os médicos a receitam. A palavra «fármaco » em grego antigo quer dizer veneno: no caso de Nash, o pior efeito destas poções venenosas era o de lhe fechar uma janela privada sobre a clarividência matemática. O direito à loucura é algo que as multinacionais farmacêuticas, tão ocupadas em fazer dinheiro com os malucos, nunca hão de reconhecer. O dia chegará em que serão vistas como párias, tal como as tabaqueiras, a Coca-Cola ou a Nestlé.
Não está Nash sozinho no rol dos génios-doidos, os exemplos são inúmeros. Mas mais ninguém contribuiu tanto para o folclore como o físico Dirac, pai da antimatéria e das constantes variáveis. Vítima de graves abusos físicos e psicológicos durante a infância, Dirac muito cedo desenvolveu sintomas próximos do autismo: taciturnidade doentia, incapacidade de ver as coisas de forma não literal, um excesso de capacidade de processamento de detalhes irrelevantes.
Quando um colega russo lhe ofereceu Crime e Castigo, o seu único comentário foi: «É bom, mas num dos capítulos o autor põe o Sol a nascer duas vezes no mesmo dia.» Quando um visitante abriu conversa aventando um inglês «Está muito vento hoje, professor», Dirac levantou-se e foi-se embora, deixando o seu interlocutor a pensar que tinha cometido uma gafe mortal. Mas Dirac foi só até à porta, voltou e disse: «Sim.» As cartas de amor de Dirac à noiva são um monumento à falta de empatia. Quando a desgraçada se queixa de não lhe responder às perguntas, ele envia-lhe uma tabela, catalogando as cartas, as perguntas e as respostas omissas. Olhando para a sua produção científica, é óbvio que este tipo de pensamento descarrilado foi o que lhe permitiu descobrir matemática e física nova. Mas foi também algo que o torturou e afligiu a vida toda. A ele e aos que tiveram de o aturar.
Há a perceção de que os génios têm este tipo de conduta excêntrica como uma mera afetação, semelhante a usarem meias de cores diferentes. Mas a verdade é que são comportamentos incontroláveis, frequentemente dolorosos, a que achamos graça porque levaram à «genialidade», se não possivelmente tínhamo-los internado num hospital psiquiátrico. Ao longo da minha carreira científica, tenho visto de tudo à minha volta: bipolaridade, perturbação obsessivo-compulsiva, megalomania, esquizofrenia, narcisismo, síndrome de Asperger, mitomania, paranoia, egocentrismo, síndrome de Tourette… Não queria tornar isto num jardim zoológico, mas o freak show é incontornável.
Uma colega de doutoramento perdia frequentemente controlo de metade do corpo. Era um triste espetáculo ver a metade «boa» a tentar conter a metade «má», dava belas peixeiradas nas aulas. Um outro colega dos mesmos tempos, fosse para onde fosse, levava consigo uma comitiva de ursinhos de peluche. Cada urso tinha o seu nome e personalidade, e ele conversava com eles horas a fio, muito mais do que connosco.
Um colega catedrático foi recentemente apanhado com dois quilos de cocaína num aeroporto, acreditando piamente que estava a retribuir o amor eterno de uma dama que conhecera na internet: uma modelo de biquínis com menos 40 anos que ele. Entre os diagnósticos citados em tribunal contam-se: «idade emocional de uma criança de três anos», síndrome do idiota-prodígio, megalomania, delírio fantasista.
Já um outro colega importantíssimo sofre de síndrome de Tourette, por forma que é incapaz de falar sem gritar: o número de vezes que fomos expulsos de restaurantes, devido aos justíssimos protestos das pessoas de outras mesas, é embaraçoso. Viveu a vida toda com a mãe e é incapaz de se vestir sozinho, muito menos sair à rua sem ajuda.
Se é verdade que nem todos os doentes mentais são génios, já o oposto parece ser correto. E é importante que isto se saiba. O conceito de génio mais não é que um mito conveniente que gostamos de usar para explicar progressos que são tão repentinos que parecem vir da magia. Tanto que caímos na hagiografia ao descrever as vidas de génios, ocultando o lado negro da genialidade no final cut. Foram precisas décadas até o mau feitio de Einstein, a sua vaidade e falta de simpatia com os outros, especialmente com as mulheres, terem transparecido nas biografias.
Não percebo este pudor. Não há génio sem senão. A verdade é que as vidas dos génios têm sempre um colorido semelhante ao das biografias dos grandes criminosos. E nem tudo corre mal: Schrodinger descobriu a sua famosa equação num fim de semana à Luiz Pacheco, na companhia de uma menor, chamemos-lhe Lolita.
Mas gostava de ir mais longe e argumentar aqui que são precisamente os senãos dos génios o que os torna no que são.
Stephen Hawking publicou o artigo onde prevê que os buracos negros emitem radiação térmica já muito debilitado pela sua doença neurológica. Num curso de mestrado que dei, costumava dedicar-lhe cinco aulas. Hawking mal conseguia escrever e era incapaz de desenhar quando o publicou, pelo que não explica nenhuns passos intermédios. É um ótimo exercício preenchê-los. Mas o que os alunos mais gostavam era do elemento de suspense: começa-se a ler aquilo e a reação inicial é atirar as mãos à cabeça e gritar: «Ai que este gajo se vai espetar!» A demonstração matemática no artigo é uma obra-prima na arte da aproximação. Fizesse ele mais aproximações e o cálculo não era válido, fizesse menos e seria impossível fazê-lo. Por páginas e páginas, o trapezista da cadeira de rodas equilibra-se na fina linha entre os dois precipícios. Chega-se ao fim e vemos que só foram calculadas duas das três coisas necessárias e pensamos: «Pronto, agora é que foi!» Mas à última hora o mágico vai desencantar uma identidade matemática relacionando estas três quantidades, a qual não é válida para buracos negros, mas uma simples adaptação da mesma é…
E de repente cai tudo no seu devido lugar. Puro génio! Fica-se com a impressão de que só uma pessoa com uma deficiência tão grave era capaz de fazer aquilo. Qualquer outra tentaria resolver o problema à força bruta. E falharia.
Há animais perfeitamente caricatos, como a toupeira ou o papa-formigas, que tornaram defeitos em virtudes, assim opera a seleção natural. O ser humano talvez seja o mais ridículo de todos, com as suas fraquezas físicas e debilidades crónicas. E daí que tenhamos prosperado procurando virtudes inesperadas, convertendo os muitos handicaps que temos em proveitos. Os senãos dos génios são apenas um exacerbar deste aspeto da nossa humanidade. Em vez de escondê-los, devíamos admirá–los. E já agora respeitar traços idênticos em pessoas que não foram bafejadas com a sorte de serem génios.
Um grande amigo, perito mundial em gravidade quântica, sofre desde a primeira adolescência de alucinações e distúrbios mentais. Os médicos são incapazes de o diagnosticar, não sabem se o mal é físico ou psicológico, o que quer que isso seja. O que é certo é que este seu lado psicótico, e as visões-alucinações associadas, fizeram dele um fervoroso seguidor dos filósofos gnósticos, tanto que se dá ao descaramento de misturar misticismo religioso com mecânica quântica e relatividade geral, o tão celebrado bebé do nosso querido Einstein.
Estas misturadas parecem ofender algumas sensibilidades científicas. Mas, quando lhe foi sugerido que os seus delírios místicos provavelmente resultam de falta de oxigénio no cérebro, a sua resposta foi: «Se calhar as pessoas normais têm oxigénio a mais.»
NOTA: Artigo publicado originalmente na VISÃO 1174, de 3 de setembro de 2015, por ocasião do centenário da Teoria da Relatividade