O que têm em comum o advogado Garcia Pereira, o deputado bloquista José Soeiro, o dirigente do PS Manuel Pizarro, o bispo D. Januário Torgal Ferreira, o economista Ricardo Paes Mamede e o colunista João Miguel Tavares? Por escrito ou de viva voz, partilham a suspeita de que a Câmara Municipal do Porto substituiu Célia Carvalho na Comissão de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (CPCJP) como retaliação por um artigo do marido sobre o falhanço das políticas sociais do município. Ora, ela não se casou com José António Pinto, conhecido assistente social na cidade, por ele ser de vidro. Pelo contrário. Fazendo jus à alcunha do mítico extremo esquerdo do Benfica que o popularizou entre os mais frágeis da sociedade, Chalana não se limita a driblar problemas: vai para cima deles. “Tenho indícios e razões para pensar que afastaram a Célia por causa das minhas denúncias sobre o abandono dos mais desfavorecidos”, explica à VISÃO. E, pela primeira vez desde a sua chegada ao bairro do Lagarteiro, em 1997, ele sente-se a pisar território desconhecido. “Sempre critiquei os executivos camarários nestas matérias, mas só o de Rui Moreira tentou calar-me”, desabafa.
Esta é a versão dele. Célia Carvalho não fala e a câmara tem outra versão. Pelo meio, há episódios por clarificar.
Tudo começou a 1 de fevereiro no Público. Este Porto não é para todos, artigo de opinião de José António Pinto sobre a falta de políticas “robustas e consistentes” na área dos direitos humanos, tinha um destinatário e uma passagem incendiária: “O Porto tem mais homens, mulheres e crianças a viver na rua. E a morrer na rua.”
Rui Moreira levou-a à letra. O executivo anunciou uma queixa à Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) e Chalana, militante comunista, foi acusado de propagar “mentiras” e um “infundado alarme social”. Publicitada no site oficial da autarquia, a queixa só tem um problema: não existe, confirmou a própria ERC à VISÃO.
Por essa altura, Ernesto Santos, autarca do PS em Campanhã, onde o “doutor Pinto” é assistente social, recebeu um telefonema indignado. “Rui Moreira ligou, é verdade, mas disse-lhe que a junta de freguesia não se revia no conteúdo do artigo nem naquele retrato social”, explica, recusando pormenorizar. “O que falámos nessa conversa é do âmbito das relações institucionais e guardo-o para mim.”
A 18 de fevereiro, o Teatro Rivoli acolheu um Concerto pela Paz, mas Daniel Vieira, um dos vereadores da CDU em Gondomar (o outro é Chalana), sentiu o cheiro a enxofre. O responsável pelo pelouro da Habitação e Ação Social no município portuense, seu velho conhecido das lutas políticas na terra dos ourives, cumprimentou-o agastado com o artigo de José António Pinto. “Devia ter mais cuidado com o que escreve”, terá sugerido Fernando Paulo, considerando grave o facto de Chalana ser assistente social e marido da presidente de uma CPCJ no Porto, sem que ambos tivessem reportado casos de crianças a morrer na rua. O eleito comunista alegou que o autor conhecia bem a realidade da cidade e apenas dramatizara o alerta, mas Fernando Paulo manteve a sua. Chalana foi vetado enquanto interlocutor junto das equipas da autarquia, após instruções do vereador nesse sentido, e o executivo de Campanhã foi informado da decisão. A câmara desmente, porém, esta versão dos acontecimentos: “Não faz qualquer sentido.”
Antecessor de Fernando Paulo no pelouro, o socialista Manuel Pizarro, sabe bem o que é ter José António Pinto e as suas causas à perna. “Ui, é terrível de aturar! Todas as semanas recebia cartas de moradores que tinham sempre o seu estilo inconfundível”, graceja, resumindo: “Discordo dele muitas vezes, mas o Chalana dedica-se como ninguém àqueles que vivem mergulhados em situações de pobreza, abandono e exclusão. Se não exagerar um bocado, corre o risco de não ser ouvido”, reconhece o líder do PS-Porto, relevando ainda “a sua capacidade de dizer as coisas de frente e de estar sempre disponível para colaborar nas soluções”. Para o atual vereador sem pelouro, é já “relativamente clara” a associação entre o artigo de Chalana e o afastamento da sua mulher, Célia Carvalho. “No passado, eu e outras pessoas ainda travámos tiques e posturas autoritárias de Rui Moreira e dos seus mais próximos, mas agora é a loucura total. Estamos a viver momentos de asfixia e compressão democrática na cidade”, acusa.
O “caso” Célia
Foi em agosto que a preocupação da câmara se virou para Célia Carvalho, presidente da CPCJ Porto Central e representante do município no organismo. Numa reunião tensa, ocorrida na autarquia no dia 28 na presença de dirigentes de outras entidades públicas, Fernando Paulo anunciou o que já corria nos bastidores: admitiu ter intenção de a substituir há meses, mas decidira esperar pelo final do mandato, em setembro. Segundo explicou, a decisão precipitara-se por não tolerar ilegalidades relacionadas com a antecipação de eleições naquela CPCJP, sem que a autarquia fosse consultada sobre a continuidade ou a substituição da sua representante. Alguns dos presentes estranharam o timing e a justificação: na verdade, alegaram, não é regra ouvir as entidades nas circunstâncias referidas pelo vereador, embora algumas comissões já o façam. Célia Carvalho insistiu que Fernando Paulo justificasse as razões do seu afastamento, tal como já solicitara por email. Mas o vereador tê-la-á mandado calar-se, acusando-a de falta de caráter e anunciando que a sua situação interna seria revista.
E foi. De 11 a 19 de setembro, Célia esteve isolada numa sala do departamento municipal de recursos humanos, obrigada a pesquisar matérias sobre o bem-estar dos funcionários. Depois transferiram-na para a área da Proteção Civil, onde se encontra. “Nunca foi posto em causa o trabalho da referida técnica”, reage a autarquia, escudando-se na legitimidade para escolher outro representante na CPCJP e na alegada limitação do mandato da visada. A autarquia e Célia esgrimem pareceres jurídicos opostos a fundamentar a legalidade das suas ações. A câmara usou igualmente argumentos aduzidos por Honório Novo, responsável pela CPCJP Ocidental e militante comunista, numa exposição enviada à presidência. Já o advogado Garcia Pereira vai defender Célia Carvalho. Numa carta aberta a Rui Moreira, considerou que a cliente foi alvo de “perseguição, discriminação e pública humilhação”. A vereadora da CDU, Ilda Figueiredo, batalha por mais esclarecimentos. Por agora, recusa associar os “casos” de Célia e Chalana e reconhece a legalidade da decisão do executivo, mas, adverte, “nem tudo o que é legal é legítimo. A autarquia não apresentou uma justificação válida para substituir a técnica. Falta informação”. Ângelo Gomes, procurador-adjunto no Tribunal de Família e Menores de Vila Nova de Gaia, não conhece o caso mas conhece Célia. “Seria, para mim, muito estranho que fossem postas em causa a sua qualidade, a sua dedicação e a sua competência”, assume.
Em setembro, D. Januário Torgal Ferreira, natural do Porto, revisitou o artigo da polémica, entre tantos que guarda da autoria do assistente social. “Prefiro sempre o exagero ao silêncio, mas mais uma vez é um texto escrito por alguém com sensibilidade e saber. Não notei qualquer alarme social por causa disso”, comenta à VISÃO o bispo emérito, inclinado para a tese de que “a autarquia geriu mal o processo e deixou pairar a ideia de culpabilidade”. D. Januário ainda tentou falar sobre o tema com o presidente da câmara, através do gabinete, sem êxito. Ter-lhe-ia sido mais fácil encontrar Rui Moreira nas redes sociais, comentando a alegada ligação entre o artigo de José António Pinto e a substituição de Célia Carvalho. “É uma teoria que não cola”, escreveu no perfil do arquiteto e urbanista Tiago Mota Saraiva, ressalvando ter “apreço pessoal” por Chalana.
No Expresso e no Público, José Soeiro (deputado do BE) e João Miguel Tavares (colunista) desafiaram Rui Moreira a dissipar as dúvidas sobre um processo que, segundo eles, transpira de intimidação e tentativa de silenciamento de uma voz incómoda. Chalana é o assistente social a quem um júri constituído pelos deputados Fernando Negrão (PSD), Guilherme Silva (PSD), Maria de Belém (PS), Telmo Correia (CDS), António Filipe (PCP), Cecília Honório (BE) e José Luís Ferreira (PEV) atribuiu, em 2013, o Prémio Direitos Humanos do Parlamento, realçando “o seu trabalho e empenho pessoal na resolução dos problemas daqueles que são socialmente mais desfavorecidos e vulneráveis”. À época, ele agradeceu a distinção, comovido. Mas deixou por lá a medalha, dizendo que a trocava por outro modelo social. Para já, vai continuar à espera.